Um dos pontos mais destacados ao longo da revisão da Lei de Zoneamento de São Paulo no ano passado foi que não seriam feitas alterações nas Zonas Exclusivamente Residenciais (ZER), onde praticamente só é permitido construir casas. A recente derrubada pela Câmara Municipal de parte dos vetos feitos pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), porém, muda a classificação de diversas vias do entorno do Jockey Club, na Cidade Jardim.
Uma das mais importantes leis urbanísticas, o zoneamento determina o que pode ser construído ou funcionar ao lado da sua casa ou em qualquer outro lugar da capital paulista. Também delimita áreas de preservação e com maiores restrições.
Essa nova alteração libera a construção de prédios e atividades de comércios e de serviços variadas na Rua Doutor José Augusto de Queiroz, na Rua Severo Dumont, na Rua Doutor Alberto da Silveira, na Rua Fonseca Teixeira e em outras vias do distrito Morumbi, na subprefeitura Butantã, zona sul paulistana. A mudança está em vigor após ser promulgada pelo presidente da Câmara, Milton Leite (União Brasil), no dia 17.
Parte das antigas ZERs e das Zonas Corredor (ZCor) da Cidade Jardim passaram a ser Zona Eixo de Estruturação da Transformação Metropolitana (ZEM). A nova classificação foi instituída em cerca de 200 imóveis do bairro, incluindo ainda uma quadra que antes era Zona Mista (na qual já eram permitidos predinhos).
A mudança permite ampla variedade de serviços comerciais e de serviços. Além disso, dá aval à construção de prédios com até 28 metros de altura e o dobro do volume construtivo permitido hoje (limitado a uma vez a área do terreno e 10 metros de altura) em ZER e ZCOR.
Além disso, por meio de um Plano de Intervenção Urbana (PIU), como o recentemente aprovado na Vila Leopoldina, uma ZEM pode passar a ter parâmetros ainda mais flexíveis, de “eixo de verticalização”. Entre eles, estão o aval para prédios altos e o acesso a diversos incentivos atrativos para construir — como tem ocorrido no entorno de estações de metrô, por exemplo.
Hoje, essas quadras da Cidade Jardim tem uso predominante “residencial horizontal de alto padrão”, conforme classificação do IPTU. A vizinhança é formada majoritariamente por casas, parte delas cercada por muros, com alguns comércios horizontais nas Zonas Corredor, como farmácias e pet shop.
A mudança surpreendeu moradores da região. A Sociedade Amigos Cidade Jardim (SACJ) discute uma estratégia de contestação, que possivelmente envolverá ajuizar uma ação e o contato com o Ministério Público de São Paulo (MP-SP). Especialistas ouvidos pelo Estadão e pareceres técnicos da Prefeitura apontam que a nova classificação viola artigos do Plano Diretor e da própria Lei de Zoneamento.
A população do entorno tem relatado imóveis da área vendidos recentemente ao Grupo RZK (também grafado como Rezek) — o mesmo do Reserva Raposo. Ao Estadão, o grupo confirmou ter terrenos na vizinhança, para os quais desenvolvia projetos de condomínios residenciais horizontais. Com o novo enquadramento como ZEM, afirmou que o perfil do empreendimento será revisto diante dos novos parâmetros permitidos.
“A empresa ressalta que não participou ou sugeriu qualquer alteração, mas afirma que ela está alinhada com o Plano Diretor do município, que foi amplamente discutido por profissionais capacitados. O Grupo RZK entende também que a região é um eixo natural de crescimento da cidade e a mudança de zoneamento trará desenvolvimento e mais segurança para a região”, completou.
A alteração só foi possível por meio da determinação de uma nova descrição para esse tipo de zona, promulgada na Lei de Zoneamento revisada. O Estadão identificou que essa mudança foi proposta em emenda do vereador Sidney Cruz (MDB). Ele também apresentou emenda de ZEM específica para aquele entorno, mas em áreas ligadas ao Jockey, como de estacionamento, as quais não foram acatadas na versão final.
Até a revisão, a lei proibia a demarcação de uma ZEM na chamada Macroárea de Urbanização Consolidada (que abrange distritos com urbanização estabelecida, como a maior parte de Perdizes, Alto de Pinheiros, Morumbi, Vila Mariana e Jardim Paulista, por exemplo). Esse tipo de zoneamento era permitido em locais com boa infraestrutura e subutilizados, como em antigas áreas industriais, a exemplo de trechos dos distritos Lapa, Santo Amaro e Belém, dentre outros.
Em lei, o objetivo das ZEM é “promover usos residenciais e não residenciais com densidades demográfica e construtiva altas, bem como a qualificação paisagística e dos espaços públicos, de modo articulado ao sistema de transporte coletivo e com a infraestrutura urbana de caráter metropolitano”.
O Estadão procurou o relator da revisão do zoneamento, Rodrigo Goulart (PSD), e a presidência da Câmara sobre as alterações. Em nota conjunta, defenderam que a discussão e aprovação da lei ocorreram de “forma democrática, legal e com ampla aprovação do plenário”, após o recebimento de “sugestões acolhidas durante todo o processo de revisão”.
“Sobre o ponto específico questionado pela reportagem, o objetivo é garantir um desenvolvimento urbano equilibrado, considerando as particularidades locais, como informa o parecer aprovado pelas comissões durante o processo legislativo”, acrescentou a nota.
A votação que derrubou os vetos ocorreu no dia 10, com a retomada de outros trechos igualmente criticados por pareceres técnicos municipais, nos quais foram chamados de “retrocessos” e “incentivos excessivos”.
Também procurado, o vereador Sidney Cruz justificou que as emendas foram propostas após a identificação de que algumas áreas na cidade “estavam deterioradas e necessitavam de adequações urbanísticas”, assim como negou relação com o mercado imobiliário.
Ainda afirmou que as alterações que propôs estão de acordo com a legislação. “A defesa da derrubada do veto se deu para restabelecer a decisão da maioria dos vereadores”, indicou em nota ao Estadão.
Além disso, alegou que a mudança que propôs envolve uma “localização estratégica para o desenvolvimento urbano do município” e que teve o objetivo de promoção de novas atividades, “revitalização urbana” e “maior dinamismo” na vizinhança. “Com relação à empresa ou às empresas que estariam interessadas ou adquirindo áreas, desconheço e não acompanho o mercado imobiliário”, finalizou o vereador em nota.
A alteração na antiga ZER não tinha ganhado repercussão até então, mas era conhecida de parte dos vereadores. O vereador Eliseu Gabriel (PSB) atribuiu a situação ao avanço do mercado imobiliário durante a aprovação final da revisão do zoneamento, no fim de dezembro.
“Vejam o que aconteceu na Cidade Jardim. (...) Será um caos completo. Um lugar que não tem nada a ver com isso. É a fúria imobiliária. É a fúria das construtoras”, declarou à época.
Na votação dos vetos, o caso voltou a ser mencionado na casa. O vereador Adilson Amadeu (União Brasil) chegou a mencionar que votou favoravelmente à derrubada dos vetos porque teria terrenos na área envoltória do Jockey — o que seria uma ironia e crítica ao mercado imobiliário, segundo nota que enviou ao Estadão. Mesmo assim, a alteração para ZEM passou praticamente despercebida do debate público.
A alteração no mapa ocorreu no 2º substitutivo ao projeto de lei de revisão do zoneamento, apresentado pelo relator dois dias antes da votação final. Mesmo aprovada pelos vereadores, a mudança havia sido vetada pelo prefeito em janeiro, diante de pareceres técnicos municipais contrários. Neste mês, porém, esteve entre os vetos derrubados em definitivo pelo Legislativo.
A situação também chama a atenção porque o zoneamento do próprio Jockey mudou com a revisão. O local passou a ser classificado como Zona Especial de Proteção Ambiental (Zepam), atribuída porque passou a constar na lista de parques municipais com criação proposta na nova lei do Plano Diretor, promulgada no ano passado.
Por que mudança havia sido vetada? O que dizem especialistas?
A alteração havia sido negada por Nunes após indicação em pareceres técnicos municipais. Nas razões de veto, justificou-se que “o incremento de adensamento não condiz com o entorno predominantemente residencial, pois acabaria descaracterizando-o”, ressalta a justificativa. A maior parte da ZER da Cidade Jardim foi mantida mesmo com a revisão.
Além disso, a Coordenadoria de Legislação de Uso e Ocupação do Solo (Deuso) e a Coordenadoria de Planejamento Urbano (Planurb) apontaram a impossibilidade de demarcar ZEM em áreas consolidadas. Nos pareceres, diziam estar “conceitualmente errado” esse tipo de medida e destacaram um artigo do próprio Plano Diretor que veta a criação de “eixos de verticalização” em ZER e ZCOR.
Com amplo apoio na Câmara e pré-candidato à reeleição, Nunes respondeu a jornalistas que a derrubada dos vetos faz parte da democracia. Disse ainda que os artigos que mais o desagradavam seguem vetados. “Acho que erraram, mas foram responsáveis dentro do contexto daquilo que a gente imagina de cidade”, disse ao ser questionado no dia seguinte à votação.
Especialistas ouvidos pelo Estadão também apontam discordâncias dessa mudança em relação aos textos da Lei de Zoneamento e do Plano Diretor. Para eles, há margem para contestações judiciais. Também há estranhamento sobre as justificativas apresentadas até o momento, principalmente pela demarcação como ZEM, uma classificação não criada para esse tipo de situação.
Diretor de Arquitetura, Urbanismo e Design na Uninove, Daniel Todtmann Montandon salienta que o primeiro artigo do zoneamento diz que “não incidirão índices e parâmetros urbanísticos menos restritivos do que aqueles atualmente aplicados” nas ZERs. “Isso (a ZEM na Cidade Jardim) pode gerar insegurança jurídica e ser objeto de litígio, caso haja tentativa de aprovação de algum novo empreendimento”, avalia.
Diretor de Coordenadoria de Legislação de Uso e Ocupação do Solo durante a elaboração da Lei de Zoneamento de 2016, ele explica que a ZEM foi criada à época especificamente para áreas ligadas a Planos de Intervenção Urbana (PIUs), como o chamado Arco Tietê e outros. “É para ser demarcada em caráter pontual e somente dentro da referida macroárea”, afirma.
Montandon também aponta que a Cidade Jardim não poderia ter ZEM. Por isso, se a legislação não vetasse regras menos restritivas naquele entorno, as opções mais flexíveis seriam outras, como Zona Mista (”miolo de bairro”), Zona de Centralidade (”centrinhos”) e ZEU (”eixos de verticalização”, perto de metrô, trem e corredor de ônibus), por exemplo.
Professora de Direito na FGV e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Bianca Tavolari avalia que esse caso demonstra falta de alinhamento entre as regras urbanísticas da cidade, mesmo com as recentes revisões. “A Câmara não está mais preocupada em alinhar os instrumentos para torná-los sistemáticos e funcionando”, diz.
Ela também considera genérica a justificativa apresentada pelos vereadores para derrubar o veto. Além disso, diz que a classificação como “ZEM” pode ser identificada como ilegal, pois a legislação municipal impede “eixo de verticalização” em áreas exclusivamente residenciais.
O que diz a Sociedade Amigos Cidade Jardim?
Presidente da Sociedade Amigos Cidade Jardim, o advogado Marcelo Gatti Reis Lobo diz que não esperava a derrubada do veto à mudança no bairro. “A associação falava muito dessa situação, mas imaginávamos que o bom senso fosse prevalecer”, diz. “Houve transformação em uma zona que praticamente ninguém conhecia. Ali, absolutamente não tem nada a ver com estruturação metropolitana”, avalia.
Segundo ele, a associação discute a melhor medida para contestar a mudança. “Sem dúvida, não vamos ficar inertes”, afirma. “Provavelmente, envolverá as vias judiciais e o Ministério Público na investigação”, completa.
Por outro lado, a associação é favorável à transformação do Jockey em parque. Por isso, argumenta que um novo zoneamento menos restritivo no entorno prejudicaria a visualização do espaço (que é tombado como patrimônio cultural) e traria impactos negativos ao entorno, como no trânsito e na qualidade de vida dos moradores.