“Ao longo do tempo, as pessoas vão entender que essa é a parte mais importante”, garante Alex Allard, o francês idealizador da Cidade Matarazzo, na região central da cidade de São Paulo. Ele se refere à abertura ao público da Casa Bradesco, neste domingo, 15, a qual marcará uma nova fase do megacomplexo de luxo — paulatinamente inaugurado desde 2021, conhecido pela capela que “flutuou” a 31 metros de altura durante escavações de pisos subterrâneos anos atrás.
O novo espaço cultural traz uma exposição do artista indo-britânico Anish Kapoor, batizada de Inflamação, com obras de grande porte que ocupam dois pavimentos de um dos blocos do antigo Hospital Umberto I, hoje endereço da Cidade Matarazzo, a uma quadra da Avenida Paulista, no distrito Bela Vista. Mesmo com a reformulação da construção, resquícios da instituição de saúde foram intencionalmente preservados, até mesmo algumas pichações.
A abertura marca, também, o novo momento da obra do complexo, de proporções monumentais e complexa engenharia: os cinco blocos do antigo hospital tiveram as fundações e a sustentação reforçadas para manter as características originais da fachada. Simultaneamente, ocorreram a demolição do miolo do predinho e as escavações a até 20 metros de profundidade. Ou seja, ficou o “esqueleto” original, enquanto o interior (e o subsolo) foi reformulado.
Allard compara a ambição do projeto às grandes catedrais europeias católicas construídas há séculos, pelo apuro arquitetônico e as intervenções de importantes artistas. “Somos criadores de um templo, um templo dos tempos modernos, que faz com que qualquer pessoa que entre fique inspirada”, descreve.
O empresário fala em obsessão por detalhes, qualidade e técnica, o que o levou a reunir mais de uma centena de designers, artistas e arquitetos para o projeto de todo o complexo. O espaço foi parcialmente inaugurado em 2021, com novos trechos inaugurados paulatinamente até a entrega total — estimada entre abril e junho do ano que vem. “É uma entrega progressiva, porque o lugar é absolutamente gigante”, justifica ele, que prefere chamar o complexo de um “ecossistema”.
Hoje, a Cidade Matarazzo soma o Hotel Rosewood e seus restaurantes — dispostos na antiga maternidade e em uma nova construção, a Torre Mata Atlântica —, a Capela Santa Luzia e o Edifício Aya (escritórios). Há, ainda, a Soho House, clube de criativos global cuja primeira sede da América do Sul foi inaugurada em junho, de anuidade entre R$ 8,1 mil a R$ 20,6 mil, com descontos para jovens adultos abaixo dos 27 anos.
‘Esse lugar abandonado virou o mais valioso do Brasil (mesmo) com dois andares’
As fases seguintes da obra envolvem, ainda, a inauguração de novos restaurantes (incluindo da chef Bela Gil e uma unidade do libanês Em Sherif), boutiques, serviços de bem-estar e diversos nos demais blocos do hospital. Todas as operações passam pelo crivo de Allard, a fim de que estejam alinhadas aos preceitos da Cidade Matarazzo (desde a prioridade a alimentos de pequenos produtores até o citado consumo consciente).
Além disso, há a construção em andamento de um boulevard em parte da Rua São Carlos do Pinhal e da Alameda Rio Claro, interligando o complexo à Paulista. A ideia é se conectar com os parques (cuja concessão pública por 25 anos tem Allard como um dos responsáveis) e os demais centros culturais da avenida.
O custo estimado de todo o megacomplexo é de R$ 3 bilhões. “É um desafio financeiro, porque toda a Faria Lima acha que tem que fazer 25 andares para ganhar dinheiro, e eu estou mostrando que esse lugar (que era) abandonado virou o mais valioso do Brasil (mesmo) com dois andares (o antigo hospital). E o que vai nos permitir convencer que esse novo lado da Paulista é também é um novo lado do mundo? O sucesso financeiro”, avalia.
Para Allard, comparar a Cidade Matarazzo à maioria dos empreendimentos de hoje é como equiparar uma bolsa Birkin de U$ 200 mil a uma bolsa de plástico feita na China vendida a R$ 5. ”Quando você sai da curva, tem um custo, mas tem também essa força de surpreender”, defende. A partir dos resultados em São Paulo, está com novos projetos para construções históricas de Salvador e do Rio.
Na Casa Bradesco, por exemplo, a assinatura principal é do franco-argelino Rudy Ricciotti, em parceria com o escritório brasileiro-norueguês SPOL Architects, mas outros espaços envolveram nomes como o premiado arquiteto francês Jean Nouvel, o também arquiteto francês Philippe Starck e o artista brasileiro Vik Muniz, dentre outros.
Obra foi ‘invertida’ e se expandiu para abaixo do nível do solo
Na parte de engenharia, o processo que permitiu a criação da Casa Bradesco é chamado de “obra invertida”, por fazer o oposto do tradicional: o prédio (hospital) já existia e, portanto, os pavimentos subterrâneos foram construídos depois. Somou-se, ainda, a complexidade de sustentação das fachadas enquanto a parte interior era demolida. Como as instalações são tombadas, a alternativa identificada para a expansão foi, portanto, “crescer” abaixo do nível do solo.
A que essa construção fora do comum poderia ser comparada, então? A de um túnel, por exemplo? Mais complexo do que isso, responde um dos responsáveis. Na prática, foram duas obras dentro de uma, com o desafio de manter o “esqueleto” original intacto. Dessa forma, o uso de maquinário pesado foi restrito, a fim de evitar danos ao que deve ser preservado.
“Aqui, a dificuldade é manter a construção tombada e conseguir executar tudo. Essa obra é completamente atípica, foram anos de estudo para definir as soluções técnicas”, pontua Gerson Sallum, diretor técnico das obras da Cidade Matarazzo. Outro ponto foi garantir que a estrutura suportasse obras de arte de grande porte, de toneladas.
Como é a Casa Bradesco, novo espaço da Cidade Matarazzo?
Na Casa Bradesco, o maior exemplo dessa intervenção é o teatro subterrâneo com pé direito de cerca de 18 metros, com inauguração ainda neste ano, em soft opening. O espaço apresentará um painel de LED de 850 m², cujas imagens estarão em diálogo com as festas, os concertos, os balés e outros eventos e espetáculos previstos para o espaço multilinguagens.
Já os demais pavimentos da casa deixam o passado como hospital em maior evidência, em conjunto com as intervenções do novo projeto contemporâneo de Ricciotti, como o uso de madeira de demolição nos revestimentos do teto e de parte das paredes internas. Isso se soma à presença de marcas do tempo variadas, como pichações, descascados etc.
Originalmente, a parte da Casa Bradesco era o bloco E do hospital, onde havia o ambulatório e a residência das freiras. Segundo dados do conselho estadual de patrimônio, esse trecho data de 1918.
Entre programação cultural, eventos, gastronomia, capela e hotel, a ideia é que a casa amplifique a variedade de roteiros que mesclam diferentes experiências do complexo. “Vai acabar virando um hub 24 horas: as pessoas vão poder vir aqui e ter diferentes experiências a todos os momentos”, descreve Benjamin Ramalho, diretor executivo do Bioma de Cultura do complexo.
“Temos uma cultura no Brasil, em São Paulo, de derrubar e fazer novo, e, aqui, realmente, é ligado à nossa história. É um prédio 100% contemporâneo em termos de serviços e segurança, mas isso está escondido, para mostrar o prédio antigo”, explica o arquiteto norueguês Adam Kurdahl, da SPOL Architects. Ele também descreve o chão como um grande espelho d’água, pelo aspecto brilhoso, discreto, a fim de não interferir tanto na experiência daqueles que visitam as exposições.
Na prática, contudo, as grandes aberturas em vidro e as janelas do segundo pavimento tendem a atrair olhares dos visitantes. Delas, é possível observar a Torre Mata Atlântica, com árvores em suas varandas, a capela restaurada e a antiga maternidade, transformada em parte do hotel. Por enquanto, todavia, a vista estará coberta para não interferir com a mostra de Kapoor. A exposição tem curadoria de Marcello Dantas, com uma obra inédita pensada especialmente para esse espaço.
A exposição de abertura da Casa Bradesco terá ingressos a R$ 80, além de entrada grátis às terças-feiras, mediante reserva pelo aplicativo oficial da Cidade Matarazzo (o Mata App). A médio prazo, a ideia é desenvolver um sistema que proporcione entrada franca para a população de baixa renda a qualquer dia.
Projeto da Cidade Matarazzo começou há mais de uma década; relembre história
Popularmente conhecido como Hospital Matarazzo, o Hospital Umberto I remonta a 1904, com uma expansão paulatina ao longo de décadas. O espaço onde tantos paulistanos nasceram e foram atendidos permaneceu em atividades até meados dos anos 1990.
A desativação resultou na falta de um uso fixo por décadas — período em que recebeu apenas eventos pontuais, como uma edição da CasaCor e um desfile de Alexandre Herchcovitch, por exemplo. Alguns projetos foram ventilados, mas não tiveram andamento.
A situação começou a mudar após a compra pela Boulevard Matarazzo Empreendimentos (liderada pelo Grupo Allard), em 2011. Dois anos depois, foi modificado o tombamento das construções menos antigas, o que viabilizou a obra da Torre Mata Atlântica e do Edifício Aya, por exemplo.
A primeira inauguração foi da capela, em 2021. Desde então, o templo católico recebe missas periódicas, concertos e celebrações (como casamentos).
No mesmo ano, o hotel teve o seu soft opening, com a inauguração de mais restaurantes ao longo de 2022, como o Taraz (do chef Felipe Bronze). Paralelamente, árvores têm sido plantadas pelos jardins e até nas sacadas da torre, assim como algumas soluções de engenharia fora do comum chamaram a atenção durante as obras, a exemplo da capela “flutuante”, que viralizou em 2019.
Para Allard, a inauguração fracionada dos espaços se deve em parte ao porte de cada um. O hotel é, por exemplo, pensado para reunir as elites que antes consideravam aquele como o “lado errado da Paulista”. A expressão é utilizada para se referir às críticas por empreender no distrito Bela Vista, menos valorizado que a vizinhança do outro lado da avenida, nos Jardins.
Desde então, o hotel tem recebido também eventos sociais diversos, desde bailes de carnaval até lançamentos de marcas de luxo. Segundo o empresário, foram mais de 2,3 mil no último ano. Já o Aya, por outro lado, é pensado para fomentar novas ideias entre grandes lideranças empresariais e de startups, com um viés que envolve também uma preocupação ambiental. “São os CEOs que têm condições de regenerar as empresas”, descreve Allard sobre o público.
Já a Casa Bradesco é pensada para trazer artistas contemporâneos, com obras que fomentam reflexões sobre a sociedade. “Essa exposição (de abertura) é para isso: chamar a atenção com beleza, com estética, mas, também, para se indignar. Não tenho dúvida que vai ser um sucesso, que vai mudar a cidade”, aponta.
Casa Bradesco
Alameda Rio Claro, 190 – Bela Vista
Exposição “Anish Kapoor – Inflamação”
De 15 de setembro a 15 de janeiro
De terça-feira a domingo, das 10h às 22h
Ingressos: R$ 80 (de quarta a domingo), com desconto para clientes Bradesco e meia entrada para os casos previstos por lei; entrada gratuita às terças (mediante reserva pelo app)
Entradas antecipadas pelo aplicativo Mata App
Há opções também de tour guiado
Mais informações em: cultura.cidadematarazzo.com.br