Qual é a altura permitida para uma construção na sua rua? Pode ter bar? Ou dark kitchen? E o limite de barulho? Grande parte das atividades e mudanças urbanas que impactam no dia a dia da população estão reunidas em uma única lei. Mais conhecida como zoneamento, a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) está em fase de revisão na Câmara Municipal ao longo das próximas semanas. A votação final está marcada para 7 de dezembro.
O projeto reúne uma série de mudanças propostas pela Prefeitura de São Paulo. Antecipadas pelo Estadão, são alterações significativas e que vão transformar o cotidiano de diversos bairros da capital paulista, tais como a ampliação das quadras com incentivos municipais para prédios altos, o desestímulo à construção de microapartamentos para hospedagem, a permissão de restaurantes para até 500 pessoas em parques, restrições para a demolição de vilas e a proibição a ferros-velhos e comércio de material reciclável no centro, dentre outras.
O texto tem recebido críticas de uma parte dos especialistas e de associações de bairro. Representantes do setor imobiliário também já se manifestaram contrariamente a algumas mudanças. Organizações variadas têm procurado o Legislativo em busca de novas alterações, especialmente do relator, Rodrigo Goulart (PSD), o qual declarou que estuda mudanças no texto em entrevista ao Estadão.
O Estadão ouviu especialistas sobre o tema nas últimas semanas, consultou o projeto de lei diversas vezes e explica a seguir algumas das principais mudanças. Há, também, um mapa interativo exclusivo, que permite a consulta às quadras que o projeto propõe incentivos para prédios sem limite de altura. Ao fim do texto, outra ferramenta permite visualizar o zoneamento em vigor.
Moro na vizinhança de estação de metrô, trem ou corredor de ônibus. O que muda?
Quadras próximas da maioria das estações de trem e metrô e de corredores de ônibus são as que mais recebem incentivos municipais atrativos para o mercado imobiliário, enquanto a maioria dos demais endereços têm restrições construtivas. Nesses locais, os “eixos” de transporte, há isenções de parte das taxas e aval para edifícios sem limite de altura, por exemplo.
Os eixos de verticalização concentram mais da metade dos apartamentos lançados na cidade, principalmente em bairros de classes média e alta, como Brooklin (zona sul), Butantã e Pinheiros (oeste). Em vizinhanças mais afastadas do centro e periféricas, a mudança tem sido menos expressiva, mas também ocorre.
A nova lei do Plano Diretor (promulgada em julho) permite a expansão desses eixos. Essa ampliação depende da aprovação de mudanças no zoneamento para entrar em vigor.
Hoje, os incentivos para prédios altos envolvem quadras totalmente localizadas a até 600 m de estações de metrô e trem. Já o projeto de revisão do zoneamento amplia o estímulo para quadras que estejam majoritariamente a até 700 m desses locais. Isto é, abarca endereços a uma distância superior desde que metade da quadra esteja dentro do raio.
Já no entorno de corredores de ônibus, a regra do zoneamento atual é de incentivos para quadras inteiramente a até 300 m. O projeto propõe que os eixos cheguem a quadras majoritariamente cortadas por um raio de 400 m.
Essa ampliação não envolve todas as quadras na vizinhança dos eixos. O projeto de lei destaca que não há alterações nas Zonas Estritamente Residenciais (ZER), como grande parte do Alto de Pinheiros, por exemplo.
A proposta também lista características que impediriam que uma quadra seja considerada como eixo. Isso impacta tanto novos eixos quanto eixos hoje em vigor. Isto é, um endereço hoje com incentivo para prédio alto pode mudar para um zoneamento mais restritivo.
Há alterações em diversas partes da cidade, como no entorno das estações Vila Madalena e Pinheiros, na zona oeste, Moema e Brooklin, na sul, Tucuruvi, na norte, e Tatuapé e Penha, na leste, por exemplo. A expansão é mais significativa nos bairros consolidados e é menor nos afastados do centro.
Dentre as regras de exclusão, estão áreas: com presença de nascentes; declividade alta; vilas reconhecidas pela Prefeitura; com frente para rua sem saída ou estreitas; de risco hidrológico e geológico; etc.
No caso das quadras que deixariam de ser eixo, o projeto indica qual será o novo zoneamento. O Estadão tem um guia sobre as características gerais das principais zonas. Essas são as principais mudanças propostas:
- vilas reconhecidas como tal e quadras voltadas a rua com até 10 m de largura virariam Zona Predominantemente Residencial, que permite construções de até 10 m de altura;
- perímetro tombado do Bixiga e quadras voltadas a vias com até 8 m de largura virariam Zona Mista, que permite imóveis de até 28 m de altura;
- áreas demarcadas como futuros parques na nova lei do Plano Diretor virariam Zona Especial de Proteção Ambiental, que tem várias restrições construtivas;
- eixos de verticalização previstos descartados (que teriam a ter incentivo após o início da obra de transporte) passariam a ser Zona Mista, que permite prédios de até 28 m de altura;
- demais quadras antes consideradas eixos de verticalização passariam a ser Zona de Centralidade, que permite prédios de até 48 m.
A partir de dados georreferenciados disponibilizados pelo Município, o Estadão elaborou um mapa interativo com as mudanças propostas para a expansão dos eixos. O material também mostra as quadras que deixariam de permitir a construção de prédios altos se for aprovado o projeto de lei. Confira abaixo (o texto continua após o mapa):
Serão proibidos ferros-velhos e comércio de material reciclável no centro?
O projeto prevê a proibição da instalação de ferros-velhos e comércios de materiais destinados à reciclagem em parte da região central. Essa proibição abrange o distrito Sé, grande parte dos distritos República e Brás e pequenos trechos do distrito Consolação.
Esse é o perímetro do Requalifica Centro. Trata-se de um programa municipal que incentiva a reforma e a ampliação de edifícios considerados ociosos na região central.
O que é o “freio” ao boom de microapartamentos e a studios para Airbnb?
Como o Estadão mostrou em primeira mão, o projeto exclui um incentivo relacionado ao boom de studios, quitinetes e novos microapartamentos na cidade. A proposta impede que empreendimentos que misturem pequenas unidades para hospedagem (Airbnb e afins) e moradia sejam classificados como de uso misto, o que tira o acesso a alguns estímulos municipais.
Um decreto de 2016 permite hoje o entendimento dessas microunidades como “não residenciais”. Entre os incentivos a uso misto que deixariam de atender a esses empreendimentos, estão construir 20% a mais do que o normalmente permitido e ter “desconto” na outorga onerosa, taxa cobrada das construtoras e calculada com base na área construída computável.
Com a mudança, para ser considerado uso misto, o empreendimento terá que incluir outros tipos de espaços não residenciais, como escritórios e estabelecimentos de comércios e serviços. Já os studios de hospedagem serão contabilizados da mesma forma que um apartamento voltado à moradia.
O que muda em relação a barulho?
Após um vaivém nas últimas semanas revelado pelo Estadão, o Município retirou totalmente o trecho que previa a fiscalização de limite de barulho em residências pelo Programa Silêncio Urbano (PSIU). Também foi proposto o adiamento da entrega do mapa de ruído urbano em seis anos, para 2029.
Esse mapa seria uma ferramenta voltada a embasar as decisões públicas. Entre elas, estão a identificação de áreas prioritárias para redução de ruídos e a preservação de zonas com níveis sonoros considerados apropriados.
O que pode mudar em relação a comércio em parques e nas represas?
Como o Estadão revelou, o projeto de lei autoriza o funcionamento de comércio de alimentação para público de até 500 pessoas em Zonas Especiais de Proteção Ambiental (Zepam), mediante autorização de órgão ambiental. Essas zonas abrangem os parques municipais atuais e previstos no Plano Diretor, o entorno das represas Billings e Guarapiranga e trechos com remanescentes de Mata Atlântica e vegetação nativa em geral.
Hoje, a legislação permite restaurantes, lanchonetes e outros espaços do setor de alimentação apenas em Zepams de parques, porém mediante a avaliação de órgão especializado. Essa liberação costuma envolver atividades de pequeno porte, para até 100 pessoas, inclusive em parques grandes e concedidos à iniciativa privada, como o Ibirapuera.
O trecho que permite esse avanço do comércio de alimentação não abarca o que chama de “comércio de diversão”, embora não especifique quais atividades estariam excluídas da autorização.
Moro em uma vila. O que pode mudar?
O projeto de lei prevê mecanismos que dificultam e desestimulam a demolição de vilas reconhecidas como tal pelo poder público. A medida vale inclusive para as localizadas em “eixos de transporte”.
Com a proposta, as vilas reconhecidas e os imóveis com frente para rua sem saída com largura de até 10 m serão classificados como Zona Predominantemente Residencial (ZPR). Esse tipo de zoneamento veta construções de mais de 10 m de altura e tem outros tipos de restrições. O Estadão tem um especial que explica as características dos principais tipos de zona da cidade.
Essa proposta pode ter um resultado limitado na prática, segundo especialistas apontaram ao Estadão. Isso porque o projeto de lei indica que o reconhecimento de um conjunto como vila dependerá de uma análise “caso a caso” por um órgão técnico municipal. Isto é, não seria uma restrição automática.
Recentemente, vilas em Pinheiros e perto do Ibirapuera foram temporariamente tombadas em meio a uma mobilização contrária de parte dos moradores à verticalização. Grande parte dos locais popularmente vistos como vila não estão assim registrados.
O projeto permite que construções não geminadas e imóveis hoje com uso de comércio e serviços também sejam entendidas como vilas.
A proposta também determina que o endereço das vilas reconhecidas siga com o zoneamento de ZPR mesmo se o conjunto for total ou parcialmente demolido. Ou seja, não seria mais possível derrubar uma vila inteira para construir um prédio alto, já que permaneceria a restrição para construções de até 10 m de altura. Esse trecho é criticado pelo mercado imobiliário, como mostrou o Estadão.
Por outro lado, o projeto de lei permite que terrenos que compõem uma vila sejam “remembrados”. Essa fusão de lotes poderia ocorrer somente com anuência de dois terços dos proprietários de imóveis do conjunto. Isso facilitaria transformações e ampliações dos imóveis desde que com característica horizontal.
Há alguma mudança específica para o entorno do Ibirapuera?
A proposta prevê uma Zona de Ocupação Especial (ZOE) em vinte lotes do Exército nas proximidades do Parque do Ibirapuera, na zona sul, onde o Comando Militar do Sudeste tem planos de expansão das atuais instalações.
O enquadramento da área militar como ZOE foi incluído por sugestão das Forças Armadas. O perímetro abarca terrenos nas Ruas Manoel da Nóbrega e Abílio Soares, onde hoje funciona o Forte Ibirapuera, com instalações militares variadas, como o 8º Batalhão de Polícia do Exército, uma base de administração e prédios de apartamentos para militares.
Esses endereços hoje estão em Zona Mista, classificação com algumas restrições. Com a alteração, seria possível firmar parâmetros mais flexíveis para o endereço, o que facilitaria uma expansão. Segundo o Comando Militar do Sudeste, está em desenvolvimento um estudo para construir instalações da recém-recriada Companhia de Comando da 2ª Divisão de Exército e dos Próprios Nacionais Residenciais (apartamentos para moradia de militares).
Hoje, no endereço, já há alguns edifícios mais verticalizados do Exército (parte deles com cerca de 16 andares). Esses prédios funcionam como residência e hotéis de trânsito para militares, mas têm essas dimensões porque são anteriores ao atual zoneamento, de 2016.
Prefeitura vai continuar a incentivar comércio no térreo?
A proposta mantém os incentivos municipais para a “fachada ativa”, a fim de aumentar o fluxo de pessoas na rua. Esse termo se refere essencialmente a estabelecimentos comerciais e de serviços no térreo de edifícios.
O projeto traz uma mudança em relação a isso: a fachada ativa passaria a considerar também comércios e serviços com uma parte da área localizada no pavimento imediatamente inferior e superior. Nesses casos, seguiria exigido o acesso direto pela rua.
Há outras mudanças para zonas residenciais?
O projeto permite a instalação de alguns tipos de pequenos equipamentos públicos e de interesse público nas vias de acesso de Zonas Estritamente Residenciais (ZER) e Predominantemente Residenciais (ZPR). A medida abrange apenas as divisas com outros zoneamentos (isto é, não envolve avenidas e ruas no interior das zonas). Entre os tipos de equipamentos que passariam a ser aceitos, estão bibliotecas, escolas infantis, unidades de saúde e espaços de assistência social, por exemplo.
Como ocorre a revisão da Lei de Zoneamento de São Paulo?
A revisão começou a ser discutida ainda na gestão João Doria (então no PSDB) em 2017, com uma primeira minuta apresentada no ano seguinte. Uma nova versão foi depois veiculada pelo prefeito seguinte, Bruno Covas (PSDB), em 2019. As mudanças propostas foram barradas na Justiça até a ação ser considerada improcedente, em 2022. Novas minutas foram apresentadas em 2023, com o projeto de lei enviado à Câmara em 4 de outubro.
A Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente da Câmara apresentou o cronograma preliminar das audiências públicas, que ocorrem de segunda a sábado. As votações estão previstas para 27 de novembro e 7 de dezembro.
A previsão atual é que os substitutivos ao projeto de lei da gestão Nunes sejam apresentados em audiências públicas três dias antes das votações. Ao todo, estão previstas cerca de 30 audiências públicas.
A maioria das audiências públicas será realizada na sede do Legislativo, geralmente às 11h nas segundas, terças e quartas-feiras e, também, às 11h30 das quintas-feiras. Além disso, estão previstas versões externas às 19h das segundas, quintas e sextas-feiras em locais ainda indefinidos em todas as zonas da cidade. Há, ainda, a estimativa de fazer audiências nos sábados, às 9h e às 14h.
As primeiras audiências reuniram demandas variadas da população. A inclusão e a exclusão de quadras nos eixos de verticalização têm sido o principal tema apresentado até o momento, tanto com moradores contrários quanto favoráveis à expansão.
Se aprovado pela Câmara, o projeto de lei será remetido para o prefeito. O Executivo poderá promulgar o texto, vetar alguns trechos ou rechaçar a proposta na íntegra. Com maioria no Legislativo, Nunes acatou quase todas as mudanças feitas pelos vereadores no Plano Diretor.
Qual é a justificativa da Prefeitura para as mudanças propostas?
A justificativa técnica para o projeto de lei destaca que faz “ajustes necessários à compatibilização das leis e fatos supervenientes à sua promulgação”. Aponta também que contribuições em audiências e consulta públicas foram analisadas, triadas e, em parte, incorporadas à proposta. “A Prefeitura de São Paulo busca facilitar a aplicação da lei de zoneamento vigente, ampliando as possibilidades de adequação da produção imobiliária aos conceitos e diretrizes da política urbana definida pelo Plano Diretor”, salienta.
O que dizem especialistas, associações de bairro e o setor imobiliário?
Não há unanimidade em relação ao projeto em nenhum setor. Uma parte dos especialistas avalia que a proposta não está madura o suficiente e não atende às necessidades da cidade, por exemplo, além de se concentrar nos eixos de verticalização. Críticos também reconhecem alguns pontos positivos, como o trecho que desestimula a construção de microapartamentos para hospedagem.
Com a tramitação no Legislativo, associações de bairro e representantes do mercado voltaram a defender mudanças no projeto. Nas audiências públicas, há tanto aqueles defendem a transformação de endereços em eixos de verticalização (mais valorizados pelo mercado) quanto contrários a essa mudança.
O Sindicato da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP) também divulgou um texto assinado por um dos diretores em que fala em “retrocessos” em relação à legislação atual e diz que trechos devem ser revistos pela Câmara. Entre os pontos criticados pela organização, está o trecho que tira incentivos a studios voltados a hospedagem e mudanças consideradas insuficientes para as fachadas ativas (comércio e serviços no térreo estimulados pela legislação municipal).
O zoneamento vale para toda a cidade? Como ficam Vila Leopoldina, Santo Amaro e outros locais que têm projetos específicos e operações urbanas?
O zoneamento incide sobre toda a cidade, mas a legislação paulistana determina que algumas áreas consideradas subutilizadas recebam projetos e regramentos diferenciados, a fim de estimular ainda mais as transformações. Essas normas e incentivos mais específicos integram os Projetos de Intervenção Urbana (PIUs) e as Operações Urbanas.
Isto é, enquanto o PIU e a Operação Urbana estiverem em vigor, o território terá uma norma específica, distinta do zoneamento. Em geral, são voltados a distritos próximos dos principais rios da cidade, como Tietê, Pinheiros, Jurubatuba e Tamanduateí.
As mudanças são válidas até quando?
A nova lei do Plano Diretor estará em vigor ao menos até 2029. Nesse prazo, é previsto que a Prefeitura proponha uma nova versão, para discussão no Legislativo. Após a aprovação de um novo Plano Diretor, geralmente é feito um novo zoneamento, visto que são duas leis interligadas.
As novas regras vão atingir imóveis já licenciados ou vendidos na planta?
Não. Os projetos de empreendimentos imobiliários costumam obter as licenças na Prefeitura meses e anos antes do início da obra. Nesses casos, incide o “direito de protocolo”, de modo que as transformações propostas no zoneamento e aprovadas na nova lei do Plano Diretor levarão anos para ficarem mais evidentes na cidade. O Estadão explicou que as mudanças serão visíveis na cidade em cerca de quatro anos.
Como é o atual zoneamento de São Paulo?
O Estadão desenvolveu um mapa interativo do zoneamento atual. A ferramenta foi criada a partir da base de dados oficial da Prefeitura (Geosampa). O material também permite a busca por endereço.
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