A Cardeal Arcoverde e a Teodoro Sampaio eram duas ruas de subúrbio na São Paulo do fim do século 19. Junto ao antigo Hospital de Isolamento e ao cemitério municipal, as vias da então Vila Cerqueira César pouco se pareciam à época com a realidade atual desse trecho da subprefeitura de Pinheiros, na zona oeste. Nos detalhes, contudo, esse passado segue um pouco presente. E teve a preservação provisoriamente determinada nesta segunda-feira, 2, após mobilização de uma parte da população em meio ao boom dos prédios altos.
Quatro pedidos de tombamento de imóveis e espaços públicos na região de Pinheiros foram protocolados na Prefeitura nos últimos dois anos. Requeridos por associações e moradores individualmente, foram reunidos em um único processo, ampliado a partir de um estudo técnico de especialistas da Prefeitura.
A proposta foi avaliada e aprovada na reunião do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) desta segunda-feira, 2. A determinação abrange algumas dezenas de espaços considerados significativos do entorno, e não todo o território da Subprefeitura.
A decisão é preliminar, de abertura de um estudo de tombamento. Enquanto o processo transcorre, com um estudo ainda mais aprofundado, os imóveis e espaços públicos delimitados deverão ser preservados dentro de características pré-determinadas, o que varia de imóvel para imóvel. Enquanto alguns deverão manter a aparência externa, outros deverão seguir com o padrão construtivo (isto é, poderão ser substituídos por outra edificação, mas dentro de normas de altura etc), por exemplo.
A abertura de estudo de tombamento teve aprovação unânime do conselho, formado por cinco representantes da Prefeitura e quatro externos (Câmara Municipal, Crea-SP, OAB-SP e IAB-SP). Entre os espaços alvo de tombamento provisório, estão a escadaria da Rua Alves Guimarães (conhecida como Escadaria das Bailarinas), as chamadas Vilas do Sol e um conjunto de casas na Rua Irmão Lucas.
Na reunião, foi apresentado um estudo técnico inédito de uma equipe multidisciplinar do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), ligado à Secretaria Municipal de Cultura, concluído em abril. Integrado por uma socióloga e dois arquitetos, o grupo mapeou — durante um ano, após 13 visitas à região e levantamentos variados — endereços de espaços, ambientes e imóveis com características que justificaram um tombamento provisório.
O tombamento preliminar foi dividido em três categorias. Uma delas reúne quatro “manchas de casario”, isto é, vilas e outros conjuntos residenciais com similaridades. A segunda categoria aborda cerca de 11 “manchas heterogêneas”, com construções significativas próximas com características e usos diversos entre si.
Por fim, também foram mapeados e tiveram o tombamento provisório aprovado outros edifícios, casas e espaços “dispersos” (isto é, que estão em meio a construção não consideradas significativas para o tombamento e, portanto, serão preservados pontualmente). “A gente vasculhou o território tentando entender um pouco da constituição dele, junto com a pesquisa bibliográfica, até chegar nessa proposta, com colaboração de vários colegas”, afirmaram os técnicos do estudo durante a reunião.
Os especialistas da Prefeitura destacaram que o estudo não envolve apenas edificações em si, mas a ambiência (como traçado da rua, tamanho de lotes etc) e o registro de diferentes modos de ocupação e vivência da trajetória de Pinheiros. Citaram também, por exemplo, que algumas ruas e travessas têm um arruamento que remete ao loteamento do século 19, mas adaptado ao século 20.
O relator do processo, conselheiro Wilson Levy (representante do CREA-SP) falou na relevância histórica do pedido. A decisão do Conpresp foi recebida com palmas, gritos de celebração e abraços. Uma das integrantes dos movimentos de moradores de Pinheiros chegou a dizer a todos que chorava de emoção.
Uma das manchas de casarios com o tombamento provisório é a da Rua Irmão Lucas, por exemplo, cujas casas foram originalmente construídas por uma pequena companhia loteadora. Estreita e de paralelepípedos, a via é formada por um conjunto de sobrados majoritariamente geminados. No local, moradores chegaram a colocar uma faixa contra a verticalização.
A preservação desses espaços em meio à verticalização dos bairros da Subprefeitura Pinheiros foi citada durante a reunião, principalmente pelos moradores. O boom imobiliário também é indiretamente citado na minuta da resolução da abertura de estudo de tombamento, que fala das “rápidas transformações que vêm ocorrendo no perímetro de estudo”, além de destacar outras motivações para a decisão.
O documento também aponta que os ambientes e edifícios de Pinheiros “expressam as suas sucessivas fases e formas de ocupação, contribuindo de maneira determinante para o lastreamento do caráter e da história do bairro e, por extensão, da cidade em elementos materiais”. Além disso, cita a “importância de preservar a multiplicidade de tipologias arquitetônicas e padrões urbanísticos do século 20 em prol da memória coletiva, da identidade e de uma cidade reconhecível e qualificada”.
Um dos pedidos abertos na Prefeitura e aprovado provisoriamente foi o de tombamento temporário da Escadaria das Bailarinas, na Rua Alves Guimarães, com uma das entradas pela Rua Cardeal Arcoverde e que ganhou esse nome extraoficial por causa de uma intervenção do artista Kobra. O mapeamento dos técnicos da Prefeitura apontou que a construção data possivelmente do fim da década de 1950.
A solicitação foi aberta pela Associação Escada Viva em 2022, com um relatório assinado por uma arquiteta. “A escadaria é um relevante elemento estruturador do espaço urbano, dotado de memória sobre a urbanização e modernização de Pinheiros”, diz o documento apresentado pelos moradores do entorno, que cita escadarias tombadas na região central (como a da Rua Treze de Maio, no Bixiga) como exemplos reconhecidos na cidade.
Quase todas as casas em frente à escadaria foram demolidas. O escadão tem cerca de 80 degraus e inclui canteiros, árvores, bancos e outros espaços de estar. As moradias ainda restantes com frente para o escadão tiveram a preservação determinada.
Outro conjunto de construções com tombamento provisório aprovado envolve as popularmente chamadas Vilas do Sol, formadas basicamente por três quarteirões de ruas estreitas. Um movimento pela preservação desse perímetro ganhou força nos últimos anos, abrangendo as Ruas Estela Sezefreda, Pascoal del Gaizo e Dr. Phidias de Barros Monteiro, além de trechos pontuais das Ruas Artur de Azevedo, Mateus Grou, Dr. Virgílio de Carvalho Pinto e dos Pinheiros.
Uma das representantes dos moradores das Vilas do Sol fez uma apresentação em defesa do tombamento do que chamou de “coração de Pinheiros” e uma das últimas áreas horizontais em meio ao “paliteiro” do que estaria se tornando o entorno. Argumentou-se que a preservação se justifica por razões ambientais, culturais e do modo de vida, sinalizando que o loteamento desse conjunto data de 1921.
O perímetro envolve principalmente casas geminadas em lotes de 6x20m, segundo a associação de moradores, localizadas em ruas estreitas. Ao todo, são 52 residências, porém o tombamento ampliou para mais algumas construções daquele entorno.
Os moradores falaram também na importância da preservação das tipologias e de um modo de vida típico de São Paulo e, em especial, de Pinheiros. O pedido de tombamento foi aberto em outubro de 2021, com a busca de preservar as características das vias e do tipo de imóveis.
Ao Estadão, o grupo de moradores das Vilas do Sol defendeu estudos para identificar os impactos das leis urbanísticas na cidade, “para não causar mais destruições ambientais, do modo de vida peculiar de alguns bairros”. ”Somos a maior cidade da América Latina, devemos ser exemplares em preservação ambiental, cultural e principalmente do modo de vida de cada localidade, respeitando suas características. Uma cidade humanizada e com referências históricas resguardadas. Temos esperança que Vilas do Sol será poupada da destruição”, finalizou.
Após o tombamento provisório, restauros, reformas e outras intervenções do tipo precisam ser autorizados pelo Departamento de Patrimônio Histórico e o Conpresp. O reconhecimento não interfere na propriedade do imóvel, independentemente de ser público ou privado, isto é, não é uma desapropriação.
Uma das apoiadoras do pedido de tombamento da Escadaria das Bailarinas é a gerente de marketing Cida Vasconcelos, de 56 anos. “Enquanto moradora, gostaria ter alguma coisa reconhecida”, disse ao Estadão dias antes da decisão do Conpresp. Por outro lado, ela se diz cética quanto ao resultado. “Tombar é um papel assinado. Não sei como traduzir isso em ações efetivas. Só acredito vendo.”
Revisão do zoneamento pode esquentar oposição ao avanço dos edifícios
O avanço da verticalização na cidade divide opiniões, com oposição de uma parte dos moradores de distritos como Pinheiros, Vila Mariana e Bela Vista. Em maio, vilas, ruas sem saída e travessas no entorno do Ibirapuera foram tombadas provisoriamente com urgência, para evitar demolições, por exemplo, após um processo aberto por um munícipe. Essa disputa ficou ainda mais evidente durante a revisão do Plano Diretor neste ano.
As discussões podem reacender especialmente ao longo da revisão do zoneamento, cujo projeto de lei será enviado em breve à Câmara. Isso porque a verticalização está ligada a incentivos municipais para a construção de prédios com apartamentos nas imediações de estações de trem e metrô e de corredores de ônibus.
Esses incentivos levaram a uma concentração da produção imobiliária nesses “eixos de transporte”, principalmente em locais valorizados, como Brooklin, Butantã e Pinheiros. O mercado tem defendido a construção de prédios em áreas com ampla oferta de infraestrutura de comércios, serviços, emprego e transporte.
O processo de tombamento da antiga Vila Cerqueira César não envolve espaços do outro lado da Avenida Rebouças, como nas Ruas Augusta e Haddock Lobo. Esse entorno também tem passado por uma verticalização, que transforma até mesmo a Rua Oscar Freire, com lojas conhecidas demolidas recentemente para a construção de um condomínio de alto padrão, como contou o Estadão.
Hoje, no entorno do perímetro analisado pelo Conpresp, os tombamentos definitivos vigentes são de edificações históricas de saúde, como o Instituto Adolfo Lutz e a Faculdade de Saúde Pública da USP, e a Escola Estadual Godofredo Furtado (na Rua João Moura). A preservação de trechos de Pinheiros é uma demanda de uma parte significativa dos moradores.
Entre os quatro pedidos de tombamento abertos por moradores e associações, estava também o Cemitério São Paulo. Nesse caso, pelas peculiaridades do bem, não esteve incluído nesse processo maior de Pinheiros e foi avaliado isoladamente em janeiro deste ano, igualmente com o estudo aberto e tombamento provisório decidido.
Na resolução, são destacados pontos específicos sobre o cemitério, como a presença de túmulos de figuras icônicas da cidade e as características arquitetônicas. O documento também ressalta tratar-se de uma “referência espacial na cidade e, em especial, no bairro de Pinheiros”.
Pai de Oswald de Andrade criou Vila Cerqueira César
Parte da história da Vila Cerqueira César foi narrada pelo modernista Oswald de Andrade. No livro de memórias Um Homem Sem Profissão, o artista conta detalhes de como o pai — José Oswald Nogueira de Andrade — começou a urbanizar uma chácara e um sítio naquele entorno no fim do século 19. No trecho abaixo (extraído de uma edição da obra de 1978, da editora Civilização Brasileira), ele fala sobre a chegada do bonde à vizinhança:
“A Vila Cerqueira César tinha sido aberta pelo esforço de meu pai. Ele a arruara, transformando-a da Chácara Água Branca dos Pinheiros e do Sítio Rio Verde num bairro urbano, onde conseguia fazer penetrar, nos primeiros quarteirões da Rua Teodoro Sampaio, o bonde da Light. Foi uma festa fabulosa, com os sanduíches deliciosos do tempo, de bisnaga e fiambre e mais cerveja e gasosa”, escreve.
“Uma banda de música estrondou na manhã, quando o veículo vermelho apontou nos trilhos virgens, descendo a pequena ladeira no meio do povo que se juntara. Meu pai, de preto e chapéu coco, tendo ao lado o motorneiro, era quem conduzia o bonde com os seus próprios braços. D. Inês olhava do portão da casa do compadre Antenor, à Rua São José, atual Oscar Freire, onde armara seu quartel-general, junto à esquina da Teodoro Sampaio”, continua.
Com carreira de vereador, o pai do artista havia ingressado na vida pública a convite do líder político Cerqueira César, que chegou a ser presidente interino do Estado de São Paulo. Foi a ele que homenageou no nome da nova vizinhança, como explica Oswald: “Em sinal de gratidão, (deu) o seu nome aos terrenos que arruara.”
O modernista também narra o processo à época de valorização do bairro, próximo da então jovem Avenida Paulista. “Os nossos terrenos, ao lado do futuro Jardim América, que se construiu sobre o lamaçal saneado, sofreram imediatamente alta considerável”, escreveu. Em outro momento volta a citar o tema: “Eu, com a expansão da capital e a valorização dos terrenos da Vila Cerqueira César, me julgava um moço rico”, relata.
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