Após mais uma noite de correria no centro de São Paulo, a Cracolândia migrou na noite desta terça-feira, 7, para mais próximo da Estação da Luz, uma das mais movimentadas da capital paulista. Segundo comerciantes, o fluxo, nome dado à aglomeração de usuários de drogas em cenas de uso, foi dispersados da Rua dos Gusmões, endereço onde estava passando a noite nos últimos meses.
Durante a movimentação, acompanhada pela Guarda Civil Metropolitana (GCM) em conjunto com a Polícia Militar, os usuários de drogas arremessaram pedras nos agentes envolvidos e um PM foi atingido no braço, segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP). Ele foi encaminhado para um hospital e liberado após ser medicado.
A pasta afirmou que algumas ruas da região foram interditadas pelo fluxo e que houve queima de lixo durante a ação. Nos vídeos obtidos pela reportagem, é possível ver que os agentes chegaram a usar bombas de efeito moral e balas de borracha na tentativa de conter o fluxo – dezenas de usuários correram durante a confusão. Não houve registro de detidos.
“Houve a intervenção com uso de munição de menor potencial ofensivo”, afirmou a Secretaria da Segurança Pública. “Os usuários atearam fogo em lixo e interditaram a Avenida Duque de Caxias e as ruas dos Guaianases e General Osório. Uma equipe do Corpo de Bombeiros compareceu ao local e desobstruiu a via.”
A pasta disse ainda que as polícias Civil e Militar, em conjunto com a Guarda Civil Metropolitana, continuam realizando ações para requalificar as vias da região, proteger a população e prender traficantes e criminosos visando coibir a criminalidade na região central.
Segundo a secretaria, a ação da GCM teve o objetivo de “requalificar a Rua dos Gusmões e adjacências”. A via fica próximo da Rua Santa Ifigênia, uma das mais carregadas de comércio na região e que tem protagonizado cenas de violência ao longo dos últimos meses.
A reportagem do Estadão passou a tarde desta quarta-feira, 8, na região da Cracolândia. Até por volta de 17h30, o fluxo ficou concentrado na Rua dos Protestantes, mesmo endereço onde tem passado os dias ao longo dos últimos meses, em uma espécie de “horário comercial”.
No fim da tarde, os usuários foram pela segunda noite consecutiva para a Rua Mauá, concentrando-se bem ao lado da Estação da Luz. Integrantes da GCM negam ter havido uma ação específica ou que tenham conduzido o fluxo, afirmam que apenas acompanharam a movimentação. Cerca de 60 agentes estavam por lá no momento da movimentação.
Nova rotina
Com a nova rotina do fluxo, lojistas da Rua Mauá ouvidos pela reportagem temem que a situação piore ainda mais. O receio agora é que, em vez de ir para a Rua dos Gusmões toda noite, o fluxo vá justamente para lá. Com medo de saques durante a madrugada, muitos deles têm receio de se identificar.
“Meu pai está há 50 anos aqui, só não sai por apego”, diz uma comerciante de 42 anos que trabalha na Rua Mauá. “Só não saí ainda porque não sei para onde ir”, afirma um outro lojista de 46 anos, quase um terço deles com um ponto comercial na região. “Nunca esteve pior. Antes paravam ônibus e mais ônibus aqui.”
Após passar a madrugada desta quinta na Rua Mauá, o fluxo deixou a via só no começo da manhã, quando retornou para a Rua dos Protestantes. “Quando cheguei já não estavam mais aqui”, diz o lojista Raimundo Nonato Viana, de 66 anos. Há seis anos na região, ele afirma que a clientela caiu 50%. Como muitos, passou a encerrar o trabalho mais cedo, às 17h.
Até a tarde desta terça-feira, duas portas que davam acesso à Estação da Luz por meio da Rua Mauá permaneciam abertas. Com a migração do fluxo, elas foram totalmente fechadas e cobertas por tapumes. Agora só é possível acessar a CPTM pelo lado da Praça da Luz ou pegar atalho pela entrada do Metrô, na Avenida Cásper Líbero.
Funcionários da CPTM informaram ao Estadão que, com a aproximação do fluxo na última noite, o número de vigilantes foi incrementado na Estação da Luz. Segundo eles, os usuários chegaram a quebrar uma das portas de madrugada. Vigilantes usaram spray de pimenta para conter a ofensiva e, nesta manhã, as portas foram reforçadas.
Saques e violência
Como mostrou o Estadão, na noite da última quarta-feira, 1º, dependentes químicos saquearam uma loja de eletrônicos na Rua Santa Ifigênia. Vídeos do episódio mostram dezenas de pessoas arrombando a porta do local e cercando a entrada, enquanto tiram os produtos de lá. Foi a segunda vez que o estabelecimento foi roubado por usuários.
“Chegamos aqui e estavam saqueando tudo. Tinha um grupo tirando as mercadorias da loja e outro protegendo eles”, disse na ocasião Ângela Aparecida de Oliveira, de 44 anos. Nascida na Bahia, ela se mudou para São Paulo em 2013, ano em que abriu a loja. “Agora o meu plano é pedir ajuda da minha família para ir embora e tentar me levantar de alguma forma.”
Como mostrou o Estadão há algumas semanas, ao menos 11 endereços já foram ocupados pela Cracolândia no ano, segundo mapeamento da Prefeitura. Havia pelo menos dois meses, o fluxo passava o dia na Rua dos Protestantes, entre Santa Ifigênia e Luz, e a noite na Rua dos Gusmões, no cruzamento com a Avenida Rio Branco.
Essa rotina se estabeleceu após uma manifestação organizada no começo de agosto pela União Santa Ifigênia (USI), entidade que representa comerciantes e proprietários de imóveis da região, para cobrar medidas da Prefeitura e do governo do Estado.
Uma demanda central dos comerciantes era, e continua sendo, afastar o fluxo das ruas que possuem mais estabelecimentos, como justamente a Santa Ifigênia. “A cada dia que passa está pior, o Santa Ifigênia está acabando”, disse uma lojista de 53 anos.
Em nota, a Prefeitura de São Paulo afirmou realizar ações de abordagem e oferta de tratamento e acolhimento diariamente na região central da capital paulista, por meio do Programa Redenção e equipes da assistência social. “As redes de saúde da Prefeitura e do Estado contam com mais de 3.500 vagas destinadas ao tratamento de dependentes químicos”, disse.
A pasta completou ainda que a Guarda Civil Metropolitana atua na região com patrulhamento comunitário e preventivo, em apoio às ações das demais secretarias, com o objetivo de garantir a segurança dos agentes públicos e da população em geral. Segundo a Prefeitura, houve intensificação do “patrulhamento comunitário e preventivo, com a ampliação do número de viaturas e motos na região, que hoje conta com mais de 1.600 agentes” da GCM.