O administrador Eder Kambara, de 36 anos, de São Paulo, estranhou quando, no começo de maio, notou ter levado cinco multas em apenas uma semana. O mais estranho eram os endereços - de Campinas e Indaiatuba, no interior - por onde não circulou nas datas das infrações. “A moto tinha outras características, não tinha os acessórios que tenho na minha e a pessoa que pilotava era bem diferente de mim. Então descobri que o veículo estava com a placa clonada”, conta ao Estadão.
Kambara entrou no site do Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP), seguiu as orientações, reuniu toda a papelada necessária e se dirigiu ao Poupatempo da Lapa, zona oeste, para dar entrada no processo de duplicidade de placa. “Isso foi no meio de maio. Até o fim de junho, em dois meses, recebi ao todo 25 autuações, todas de radares, de velocidade”, diz.
Kambara é mais uma das centenas de vítimas que têm a placa do veículo clonada no Estado. Conforme os dados do Detran-SP, a cidade concentra 32% dos 833 casos que passaram pela Central Estadual de Veículos Suspeitos e Dublês de abril a setembro. Na sequência, vêm Campinas (13%), Sorocaba (6%), Curitiba (5,8%) e Rio de Janeiro (5,6%).
A central é uma nova estratégia do Detran-SP para apreender veículos com placas clonadas, com cruzamento de informações e uso de tecnologia para traçar as rotas suspeitas. O serviço funciona desde 29 de abril e, segundo os responsáveis, resolveu 70 ocorrências até a primeira semana de setembro.
A de Eder Kambara foi uma delas. Durante o processo, o administrador também fez boletim de ocorrência, que foi importante para a resolução do caso.
Isso porque Detran, por meio de seu novo serviço de inteligência, cruzou os dados com o de outro B.O de uma moto furtada (e usada para virar dublê) no ABC Paulista, e rastreou o veículo irregular pelo histórico de multas e pelos locais por onde circulava. A Polícia Militar foi acionada e apreendeu o suspeito com a ajuda da Guarda Civil de Indaiatuba.
Kambara ainda corre para anular as multas que não cometeu. “Em paralelo, abri um processo judicial para fazer o recurso para cada uma dessas 25 multas. Agora estão na Justiça:10 já foram anuladas e estou esperando anularem as outras 15.”
A Secretaria da Segurança Pública informa que, de janeiro a julho, mais de 3 mil ações foram feitas por parte da Polícia Militar, como blitz em operações Direção Segura, para checar se os veículos abordados possuíam alguma adulteração.
A pasta diz que, além das investigações pelas delegacias territoriais, a Polícia Civil dispõe da Divisão de Investigações sobre Furtos, Roubos e Receptações de Veículos e Cargas (Divecar), “especializada em apurar e combater esses delitos”.
Sobre o caso citado, a pasta diz que o veículo da vítima foi apreendido. “A autoridade policial atua em buscas de elementos que auxiliem na responsabilização dos envolvidos, bem como no esclarecimento dos fatos”.
Como funciona a Central de Dublês?
O trabalho envolve produzir informações mais assertivas para que as polícias, como a Militar e a Rodoviária Federal, localizalem os criminosos.
A Central Estadual de Veículos Suspeitos e Dublês tem cerca de 20 funcionários que trabalham na capital e outras cidades do Estado. A criação do departamento passou pela necessidade de padronizar os métodos de trabalho e descentralizar operações.
A principal tarefa da equipe é fazer cruzamento de informações para ajudar na localização dos suspeitos. Uma estratégia adotada é a de construir um mapa de calor que indica os locais onde veículos dublês receberam multa. Sinalizar quais são estes endereços ajuda a definir um padrão de circulação do condutor irregular.
Antes da Central, o Detran informava à PM apenas sobre as características do veículo, e a presença da suspeita de dublê em determinada cidade, mas sem dar localizações e endereços como referência. O mapa de calor ajuda a tornar a ação da polícia mais assertiva.
“Os fiscalizadores pegam as infrações, colocam no My Maps (aplicativo do Google) e traçam a rota mais comum que o veículo costuma fazer, e entrega pronto às autoridades policiais’, explica Sheyla Siqueira, gerente de fiscalização do Detran-SP.
A Central tem acesso a dados da PRF, como imagens de câmeras de monitoramento usadas por órgãos autuadores.
Leia Também:
O trabalho de um profissional da Central de Dublês começa quando uma vítima descobre que o seu veículo foi alvo de clonagem e dá entrada no processo relatando duplicação da placa. Essa descoberta geralmente acontece depois que o proprietário do carro ou da moto recebe multa cometida em um lugar por onde ela não circulou, como no relato que abre esta reportagem.
O volume de notificações do tipo pode chegar de 10 a 15 por dia, segundo os porta-vozes do Detran-SP. Além dos 70 casos solucionados, segundo Sheyla, há 533 ainda estão em aberto. “Algumas dessas ocorrências foram absorvidas de unidades antigas que antes faziam este trabalho e que não haviam sido solucionadas”, diz ela.
O tempo de resolução varia caso a caso e pode levar meses a depender da complexidade da ocorrência. Os processos podem se estender quando os criminosos se utilizam de estratégias para driblar a fiscalização, como não adotar uma rota padrão ou trocar a placa de forma constante. Mas há registros de situações que chegaram a ser resolvidas em menos de uma semana.
Foi o caso do empresário Eduardo Santilli, de 43 anos. Morador de Ubatuba, no litoral norte, ele notou em julho, também pelo aplicativo da CNH digital, que havia multas em seu nome cometidas em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. “Não entendi nada porque nunca saí com a minha moto de Ubatuba”, disse ao Estadão.
Ao ver a foto da autuação, percebeu a semelhança com o seu veículo. “A imagem estava escura, mas era do mesmo modelo que a minha, do mesmo ano e cor, e estava com a minha placa”. Santilli abriu processo de duplicidade de placa no Poupatempo da sua cidade, que encaminhou o caso à Central de Veículos Suspeitos e Dublês.
“Em pouco tempo, encontraram a moto, em Santo André, e cerca de uma semana depois já tinham feito a apreensão. Foram super-rápidos”, diz Santilli. “Minha moto não está mais com restrição, não tomo mais multa, mas entrei com recurso para a infração sair da minha ficha”.
Conforme a SSP-SP, o caso de Santilli é investigado pelo 8º Distrito Policial de São Bernardo do Campo. A secretaria diz que, assim como a ocorrência envolvendo Kambara, o veículo foi localizado e apreendido e as autoridades policiais buscam elementos para a responsabilizar os culpados.
Mesmo sem a apreensão do veículo irregular, a vítima consegue fazer a troca da placa e do Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam) em até seis meses depois da entrada no processo. Com essas mudanças, o proprietário do veículo original deixa de responder pela multas que não cometeu.
Dinâmica do crime
Na maioria das vezes, os veículos usados para virar dublês são fruto de furtos ou roubos, explica Ícaro Eustachio, diretor de Educação para o Trânsito e Fiscalização do Detran-SP. “O que percebemos é que os criminosos clonam a placa quando encontram um carro, ou moto, de modelo e cores semelhantes.”
Embora o mais comum seja que veículos irregulares apresentem externamente as mesmas características do veículo original, basta o “veículo clon”e ter a mesma combinação de outra placa para ser considerado, tecnicamente, como dublê.
Segundo a Resolução 969 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), o veículo dublê ou clone é aquele que utiliza a combinação alfanumérica da placa do original, “apresentando ou não as mesmas características do veículo original (marca, modelo, cor, dentre outras), com adulteração ou não do Número de Identificação Veicular (VIN) gravado no chassi”.
Um criminoso clona um veículo para tornar legal um carro roubado ou apreendido, circular pelas ruas de forma impune, ou usar o dublê para cometer crimes - como assaltos, tráfico de drogas e golpes. “Tem pessoas que são vítimas de estelionatários, compram um carro dublê, e circulam por aí sem saber que é irregular”, diz Eustachio.
A consequência para a vítima é ser associada aos crimes citados. No entanto, o mais comum é que ela comece a receber multas que são cometidas pelo veículo clone, como aconteceu com Kambara e Santilli. Nestes casos, é necessário recorrer ao Detran e registrar o caso na polícia.
Nem toda multa que chega de forma errada é resultado de adulteração de suspeitos. Em alguns casos, pode acontecer de ter havido erro de digitação da placa e a infração chegar para o endereço incorreto.
O Detran também consegue descobrir a presença de um veículo dublê em circulação pela presença do original em pátios para onde vão motos e automóveis apreendidos.
Em relação ao tipo de veículo, a maior parte dos monitorados pela Central de Dublês do Detran são:
- motos (45%),
- carros (40%),
- caminhonetes/camionetas (10%),
- o restante envolve caminhões, utilitários, reboque e micro-ônibus.
Majoritariamente, as infrações mais cometidas pelos motoristas irregulares são por excesso de velocidade. Os tipos se dividem entre:
- transitar em velocidade superior à máxima permitida em até 20%, que somam 51% dos casos;
- conduzir veículo em velocidade superior à máxima permitida em mais de 20% e até 50% (23,2%);
- transitar em velocidade superior à máxima permitida em mais de 50% (5,7%).
Sheyla Siqueira, gerente de fiscalização do Detran-SP, recomenda que os motoristas sempre fiquem de olho nas notificações de infrações e não ignorem as multas recebidas. “Quanto mais rápido for percebido e comunicado ao Detran, maior a chance de apreender o veículo dublê”, diz.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública acrescenta que as forças estaduais atuam para combater todas as modalidades criminosas, “incluindo roubos e furtos de veículos, bem como casos de clonagem de placas, carros e motos, que podem se enquadrar em crimes de receptação, estelionato, falsificação de documentos e adulteração de sinal identificador”.
“Para isso, as ações policiais também são focadas em ferros-velhos e lojas de peças automotivas para identificar receptadores e desmantelar a cadeia ilícita que alimenta esses crimes”, diz a pasta, que aponta para redução deste tipo de crime: “Nos primeiros sete meses do ano, roubos e furtos de veículos caíram 17,6% e 3,1%, respectivamente”. Já o total de veículos roubados/furtados que foram recuperados subiu 21,6%.
O que fazer se meu veículo foi clonado?
Se o seu veículo foi clonado, veja quais ações tomar conforme orientações do Detran-SP. Importante reforçar que noticiar a falsa existência de veículo dublê é crime previsto no artigo 340 do Código Penal, com pena de detenção de um a seis meses ou multa.
- 1º passo: Ir à unidade de de trânsito em sua cidade onde o veículo está registrado com os documentos que indiquem a existência de um veículo dublê do original (uma multa, por exemplo) para abrir um Processo de Veículo Dublê. Em São Paulo, o atendimento é feito no Posto Poupatempo Lapa (Rua do Curtume, s/nº - esquina com Rua Guaicurus 906). Clique aqui para checar o endereço das demais unidades.
É importante também fazer boletim de ocorrência. Como muitos veículos irregulares são fruto de roubos e furtos, o B.O ajuda o Detran e a polícia a localizar os suspeitos a partir de cruzamento de dados. Além disso, o registro policial é importante para recorrer das infrações.
- 2º passo: Fazer a vistoria de identificação veicular. Levar o veículo a uma Empresa Credenciada de Vistoria (ECV) - veja os endereços da ECV pelo Estado. Como o laudo emitido tem validade estadual, a vistoria pode ser feita de qualquer cidade de São Paulo. O laudo aprovado tem validade de 60 dias.
- 3º passo: Após abertura do procedimento, o interessado receberá um e-mail da equipe do Detran-SP para acompanhamento do processo.