Ela é uma das maiores sopranos do País: ‘A música erudita ‘pisa em ovos’ na questão racial’


A cantora lírica Edna D’Oliveira promove a equidade com sua trajetória reconhecida internacionalmente, pesquisas sobre cantoras negras e a criação de um coletivo

Por Gonçalo Junior

Quando a soprano Edna D’Oliveira começou a ascender na música erudita, seu pai disse uma frase quase definitiva. “Você abriu picadas. Vai que vem gente atrás.” Abrir picadas é criar uma trilha no meio do mato fechado, inventar um caminho. Edna é uma mulher negra de origem humilde e que se tornou uma das principais cantoras líricas do País.

Foi exatamente seu Liberalino Alves de Oliveira, o pai de Edna, que começou esse caminho. Apaixonado por música, ele improvisou um coral com os sete filhos que se viravam com tamborins e chocalhos. Orquestra e coro em uma casa simples na periferia de Belo Horizonte no início dos anos 1970. “Eu era uma ostra mas, na hora de cantar, eu virava outra pessoa”, conta Edna, a mais velha, que começou a se destacar nas aulas de canto na escola pública e no coral da igreja católica.

A soprano e professora de canto Edna D'Oliveira na Escola de Música Tom Jobim (Emesp), na região central de São Paulo: compromisso com a diversidade na música erudita. Foto: Taba Benedicto/Estadão
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Além da música, a família respirava em meio a livros e cadernos. Edna ganhou um quadro negro porque gostava de ensinar os irmãos mais novos. Logo vieram os vizinhos pedir reforço escolar. O quarto dos fundos, que seria o quarto da bagunça, virou uma sala de aula. Era uma dúzia de crianças e até os pais de Edna, que assinavam o nome, mas não sabiam ler.

Décadas depois, o Estadão encontrou Edna em outra sala de aula. Hoje é professora de canto na Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim (Emesp), instituição da Secretaria Estadual de Cultura, Economia e Indústrias Criativas e gerida pela organização social Santa Marcelina Cultura.

A soprano também leciona na Fundação do Theatro Municipal de São Paulo e no Instituto Bacarelli, organização que leva educação musical para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade em Heliópolis. Música e educação se misturam. “Meu sonho é que o favelado cante ópera”, diz.

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A soprano é uma das cantoras líricas mais importantes do País. Formada em cursos de especialização em canto na English National Opera e Royal Academy em Londres, Edna participou de inúmeros festivais internacionais na Europa e nas Américas. Ao longo de sua carreira lírica, apresentou-se em óperas como Porgy and Bess, Andrea Chenier, Falstaff, A Víuva Alegre, Rigoletto, A Flauta Mágica, Elisir d´Amore. Foi convidada pelo Atelier Chorale de Genebra, na Suíça, para interpretar e gravar a Missa Crioula, de Ariel Ramirez. É aclamada pela interpretação das Bachianas Brasileiras nº 5.

Edna é soprano, a classificação mais aguda das vozes femininas. Entre as características mais conhecidas das sopranos estão seu maior alcance vocal, expressividade e potência, diferenciais que costumam impressionar o público. Nos musicais, alguns dos papéis mais importantes foram escritos para sopranos, como Os Miseráveis (Cosette) e O Fantasma da Ópera (Christine Daaé).

Luta pela representatividade negra na música erudita

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A trajetória entre o coral familiar improvisado em Minas e os concertos da Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp) e de várias orquestras do País foi de luta pela representatividade negra na música erudita. A descoberta do talento musical veio junto com o confronto direto com o racismo.

Depois de desfilar em um concurso escolar para “Rainha da Pipoca”, a menina de 7 anos ouviu: “Tira essa neguinha daí”. Ela pediu ajuda aos pais. “Você vai ter de ser sempre mais do que as outras porque a dificuldade vai ser maior”, aconselhou a mãe, Maria Paixão.

Edna começou o curso de Letras/Francês aos 16 anos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Era o bacharelado que cabia no bolso da funcionária pública. Mas continuava cantando. Ela e a irmã, Edinéia Oliveira, também cantora lírica, chegaram a participar de cinco corais simultaneamente. E a música começou a dar dinheiro, mas tudo era escondido do pai, que não via futuro profissional na música. Temia as dificuldades que tinha visto na época da ditadura militar, com a perseguição aos artistas e cantores.

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Foram quatro anos de indecisão sobre a profissão até o concurso no Theatro Municipal de São Paulo, no início dos anos 1990. As irmãs foram aprovadas. O talento definiu o futuro.

A primeira grande ópera de Edna foi Gianni Schischi, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1995. A produção do espetáculo trouxe os seus pais de avião de Minas, com hospedagem no Hotel Glória, tudo chique. A ovação no final do espetáculo amoleceu finalmente o coração do velho Liberalino em relação à carreira musical das filhas.

Esse papel de destaque no Rio foi uma exceção. Edna era preterida – mesmo que a sua voz parecesse a ideal para o papel. Suas suspeitas se confirmaram quando ouviu outra frase quase definitiva: “Não tem condições de colocar uma negra no papel principal”. Ela prefere não entrar nos detalhes das circunstâncias e diz apenas que o fato aconteceu no início dos anos 2000, em São Paulo. “A música erudita ‘pisa em ovos’ na questão racial.”

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Pesquisa sobre cantoras líricas negras

A certeza de que sua cor chegava antes de sua voz foi a senha para estudar o tema. Edna e a irmã pesquisam cantoras líricas negras brasileiras, aquelas que também abriram picadas. Os estudos focam a história dos escravizados na música erudita brasileira, desde a colonização do Brasil até os tempos atuais, assim como a invisibilização das cantoras líricas negras brasileiras.

Entre essas figuras invisíveis está a soprano Joaquina Maria da Conceição Lapa, a Joaquina Lapinha, referência feminina na cena lírica e uma das primeiras mulheres a receber autorização para participar de espetáculos públicos em Portugal, entre 1791 e 1805. O viajante sueco Carls Ruders (1761-1837) chegou a registrar que ela disfarçava a cor da pele com tinta branca, pois os europeus julgavam o aspecto dela “inconveniente”.

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A soprano e professora de canto Edna D'Oliveira e o aluno Gustavo Corrêa durante aula de canto na Emesp, região central de São Paulo. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Além disso, Edna é uma das criadoras do coletivo Ubuntu Brasileiro, que reúne artistas negros consagrados na ópera nacional e jovens cantores para promover a equidade racial na cena lírica. “Começamos a ver uma luz no fim do túnel, mas são poucas políticas públicas voltadas à participação dos negros na música erudita”, alerta.

Hoje, ela se divide entre as salas de aula, os palcos e o consultório. Além de soprano, professora e militante, Edna é fonoaudióloga. Nas redes sociais, há uma publicação orgulhosa do uniforme bordado com seu nome. Uma de suas paixões é lapidar e formar talentos para a música.

Em agosto, a cantora conduz uma oficina para cantores líricos; em setembro, participa de uma banca de concurso no Espírito Santo e, em novembro, estará em uma temporada de quatro apresentações da ópera Porgy and Bess, no Sesc São Paulo.

No meio da agenda concorrida de aulas da Emesp, a professora fez questão de apresentar o tenor Gustavo Oliveira, um dos destaques do projeto Guri, iniciativa do governo estadual de educação musical com foco na inclusão social. Além de tocar vários instrumentos, o morador de Perus, na Grande São Paulo, é dono de uma voz “lindíssima”, segundo Edna. “Ela me guia para eu chegar aonde preciso e aonde ela acredita que eu posso chegar”, diz o adolescente de 16 anos.

Gustavo viveu uma situação dramática em abril. Depois de esquecer uma vela acesa em seu quarto, um incêndio destruiu seus instrumentos musicais, partituras e cadernos. Ninguém se feriu. Uma vaquinha virtual arrecadou R$ 7,4 mil que foram suficientes para repor os instrumentos. Edna se envolveu diretamente na campanha. “Para mim, a música é a arte de expressar o que a nossa alma sente”, diz o adolescente.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com o coletivo Ubuntu Brasileiro, grupos de artistas que promove a equidade racial na música de concerto e na ópera no País.

Quando a soprano Edna D’Oliveira começou a ascender na música erudita, seu pai disse uma frase quase definitiva. “Você abriu picadas. Vai que vem gente atrás.” Abrir picadas é criar uma trilha no meio do mato fechado, inventar um caminho. Edna é uma mulher negra de origem humilde e que se tornou uma das principais cantoras líricas do País.

Foi exatamente seu Liberalino Alves de Oliveira, o pai de Edna, que começou esse caminho. Apaixonado por música, ele improvisou um coral com os sete filhos que se viravam com tamborins e chocalhos. Orquestra e coro em uma casa simples na periferia de Belo Horizonte no início dos anos 1970. “Eu era uma ostra mas, na hora de cantar, eu virava outra pessoa”, conta Edna, a mais velha, que começou a se destacar nas aulas de canto na escola pública e no coral da igreja católica.

A soprano e professora de canto Edna D'Oliveira na Escola de Música Tom Jobim (Emesp), na região central de São Paulo: compromisso com a diversidade na música erudita. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Além da música, a família respirava em meio a livros e cadernos. Edna ganhou um quadro negro porque gostava de ensinar os irmãos mais novos. Logo vieram os vizinhos pedir reforço escolar. O quarto dos fundos, que seria o quarto da bagunça, virou uma sala de aula. Era uma dúzia de crianças e até os pais de Edna, que assinavam o nome, mas não sabiam ler.

Décadas depois, o Estadão encontrou Edna em outra sala de aula. Hoje é professora de canto na Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim (Emesp), instituição da Secretaria Estadual de Cultura, Economia e Indústrias Criativas e gerida pela organização social Santa Marcelina Cultura.

A soprano também leciona na Fundação do Theatro Municipal de São Paulo e no Instituto Bacarelli, organização que leva educação musical para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade em Heliópolis. Música e educação se misturam. “Meu sonho é que o favelado cante ópera”, diz.

A soprano é uma das cantoras líricas mais importantes do País. Formada em cursos de especialização em canto na English National Opera e Royal Academy em Londres, Edna participou de inúmeros festivais internacionais na Europa e nas Américas. Ao longo de sua carreira lírica, apresentou-se em óperas como Porgy and Bess, Andrea Chenier, Falstaff, A Víuva Alegre, Rigoletto, A Flauta Mágica, Elisir d´Amore. Foi convidada pelo Atelier Chorale de Genebra, na Suíça, para interpretar e gravar a Missa Crioula, de Ariel Ramirez. É aclamada pela interpretação das Bachianas Brasileiras nº 5.

Edna é soprano, a classificação mais aguda das vozes femininas. Entre as características mais conhecidas das sopranos estão seu maior alcance vocal, expressividade e potência, diferenciais que costumam impressionar o público. Nos musicais, alguns dos papéis mais importantes foram escritos para sopranos, como Os Miseráveis (Cosette) e O Fantasma da Ópera (Christine Daaé).

Luta pela representatividade negra na música erudita

A trajetória entre o coral familiar improvisado em Minas e os concertos da Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp) e de várias orquestras do País foi de luta pela representatividade negra na música erudita. A descoberta do talento musical veio junto com o confronto direto com o racismo.

Depois de desfilar em um concurso escolar para “Rainha da Pipoca”, a menina de 7 anos ouviu: “Tira essa neguinha daí”. Ela pediu ajuda aos pais. “Você vai ter de ser sempre mais do que as outras porque a dificuldade vai ser maior”, aconselhou a mãe, Maria Paixão.

Edna começou o curso de Letras/Francês aos 16 anos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Era o bacharelado que cabia no bolso da funcionária pública. Mas continuava cantando. Ela e a irmã, Edinéia Oliveira, também cantora lírica, chegaram a participar de cinco corais simultaneamente. E a música começou a dar dinheiro, mas tudo era escondido do pai, que não via futuro profissional na música. Temia as dificuldades que tinha visto na época da ditadura militar, com a perseguição aos artistas e cantores.

Foram quatro anos de indecisão sobre a profissão até o concurso no Theatro Municipal de São Paulo, no início dos anos 1990. As irmãs foram aprovadas. O talento definiu o futuro.

A primeira grande ópera de Edna foi Gianni Schischi, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1995. A produção do espetáculo trouxe os seus pais de avião de Minas, com hospedagem no Hotel Glória, tudo chique. A ovação no final do espetáculo amoleceu finalmente o coração do velho Liberalino em relação à carreira musical das filhas.

Esse papel de destaque no Rio foi uma exceção. Edna era preterida – mesmo que a sua voz parecesse a ideal para o papel. Suas suspeitas se confirmaram quando ouviu outra frase quase definitiva: “Não tem condições de colocar uma negra no papel principal”. Ela prefere não entrar nos detalhes das circunstâncias e diz apenas que o fato aconteceu no início dos anos 2000, em São Paulo. “A música erudita ‘pisa em ovos’ na questão racial.”

Pesquisa sobre cantoras líricas negras

A certeza de que sua cor chegava antes de sua voz foi a senha para estudar o tema. Edna e a irmã pesquisam cantoras líricas negras brasileiras, aquelas que também abriram picadas. Os estudos focam a história dos escravizados na música erudita brasileira, desde a colonização do Brasil até os tempos atuais, assim como a invisibilização das cantoras líricas negras brasileiras.

Entre essas figuras invisíveis está a soprano Joaquina Maria da Conceição Lapa, a Joaquina Lapinha, referência feminina na cena lírica e uma das primeiras mulheres a receber autorização para participar de espetáculos públicos em Portugal, entre 1791 e 1805. O viajante sueco Carls Ruders (1761-1837) chegou a registrar que ela disfarçava a cor da pele com tinta branca, pois os europeus julgavam o aspecto dela “inconveniente”.

A soprano e professora de canto Edna D'Oliveira e o aluno Gustavo Corrêa durante aula de canto na Emesp, região central de São Paulo. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Além disso, Edna é uma das criadoras do coletivo Ubuntu Brasileiro, que reúne artistas negros consagrados na ópera nacional e jovens cantores para promover a equidade racial na cena lírica. “Começamos a ver uma luz no fim do túnel, mas são poucas políticas públicas voltadas à participação dos negros na música erudita”, alerta.

Hoje, ela se divide entre as salas de aula, os palcos e o consultório. Além de soprano, professora e militante, Edna é fonoaudióloga. Nas redes sociais, há uma publicação orgulhosa do uniforme bordado com seu nome. Uma de suas paixões é lapidar e formar talentos para a música.

Em agosto, a cantora conduz uma oficina para cantores líricos; em setembro, participa de uma banca de concurso no Espírito Santo e, em novembro, estará em uma temporada de quatro apresentações da ópera Porgy and Bess, no Sesc São Paulo.

No meio da agenda concorrida de aulas da Emesp, a professora fez questão de apresentar o tenor Gustavo Oliveira, um dos destaques do projeto Guri, iniciativa do governo estadual de educação musical com foco na inclusão social. Além de tocar vários instrumentos, o morador de Perus, na Grande São Paulo, é dono de uma voz “lindíssima”, segundo Edna. “Ela me guia para eu chegar aonde preciso e aonde ela acredita que eu posso chegar”, diz o adolescente de 16 anos.

Gustavo viveu uma situação dramática em abril. Depois de esquecer uma vela acesa em seu quarto, um incêndio destruiu seus instrumentos musicais, partituras e cadernos. Ninguém se feriu. Uma vaquinha virtual arrecadou R$ 7,4 mil que foram suficientes para repor os instrumentos. Edna se envolveu diretamente na campanha. “Para mim, a música é a arte de expressar o que a nossa alma sente”, diz o adolescente.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com o coletivo Ubuntu Brasileiro, grupos de artistas que promove a equidade racial na música de concerto e na ópera no País.

Quando a soprano Edna D’Oliveira começou a ascender na música erudita, seu pai disse uma frase quase definitiva. “Você abriu picadas. Vai que vem gente atrás.” Abrir picadas é criar uma trilha no meio do mato fechado, inventar um caminho. Edna é uma mulher negra de origem humilde e que se tornou uma das principais cantoras líricas do País.

Foi exatamente seu Liberalino Alves de Oliveira, o pai de Edna, que começou esse caminho. Apaixonado por música, ele improvisou um coral com os sete filhos que se viravam com tamborins e chocalhos. Orquestra e coro em uma casa simples na periferia de Belo Horizonte no início dos anos 1970. “Eu era uma ostra mas, na hora de cantar, eu virava outra pessoa”, conta Edna, a mais velha, que começou a se destacar nas aulas de canto na escola pública e no coral da igreja católica.

A soprano e professora de canto Edna D'Oliveira na Escola de Música Tom Jobim (Emesp), na região central de São Paulo: compromisso com a diversidade na música erudita. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Além da música, a família respirava em meio a livros e cadernos. Edna ganhou um quadro negro porque gostava de ensinar os irmãos mais novos. Logo vieram os vizinhos pedir reforço escolar. O quarto dos fundos, que seria o quarto da bagunça, virou uma sala de aula. Era uma dúzia de crianças e até os pais de Edna, que assinavam o nome, mas não sabiam ler.

Décadas depois, o Estadão encontrou Edna em outra sala de aula. Hoje é professora de canto na Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim (Emesp), instituição da Secretaria Estadual de Cultura, Economia e Indústrias Criativas e gerida pela organização social Santa Marcelina Cultura.

A soprano também leciona na Fundação do Theatro Municipal de São Paulo e no Instituto Bacarelli, organização que leva educação musical para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade em Heliópolis. Música e educação se misturam. “Meu sonho é que o favelado cante ópera”, diz.

A soprano é uma das cantoras líricas mais importantes do País. Formada em cursos de especialização em canto na English National Opera e Royal Academy em Londres, Edna participou de inúmeros festivais internacionais na Europa e nas Américas. Ao longo de sua carreira lírica, apresentou-se em óperas como Porgy and Bess, Andrea Chenier, Falstaff, A Víuva Alegre, Rigoletto, A Flauta Mágica, Elisir d´Amore. Foi convidada pelo Atelier Chorale de Genebra, na Suíça, para interpretar e gravar a Missa Crioula, de Ariel Ramirez. É aclamada pela interpretação das Bachianas Brasileiras nº 5.

Edna é soprano, a classificação mais aguda das vozes femininas. Entre as características mais conhecidas das sopranos estão seu maior alcance vocal, expressividade e potência, diferenciais que costumam impressionar o público. Nos musicais, alguns dos papéis mais importantes foram escritos para sopranos, como Os Miseráveis (Cosette) e O Fantasma da Ópera (Christine Daaé).

Luta pela representatividade negra na música erudita

A trajetória entre o coral familiar improvisado em Minas e os concertos da Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp) e de várias orquestras do País foi de luta pela representatividade negra na música erudita. A descoberta do talento musical veio junto com o confronto direto com o racismo.

Depois de desfilar em um concurso escolar para “Rainha da Pipoca”, a menina de 7 anos ouviu: “Tira essa neguinha daí”. Ela pediu ajuda aos pais. “Você vai ter de ser sempre mais do que as outras porque a dificuldade vai ser maior”, aconselhou a mãe, Maria Paixão.

Edna começou o curso de Letras/Francês aos 16 anos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Era o bacharelado que cabia no bolso da funcionária pública. Mas continuava cantando. Ela e a irmã, Edinéia Oliveira, também cantora lírica, chegaram a participar de cinco corais simultaneamente. E a música começou a dar dinheiro, mas tudo era escondido do pai, que não via futuro profissional na música. Temia as dificuldades que tinha visto na época da ditadura militar, com a perseguição aos artistas e cantores.

Foram quatro anos de indecisão sobre a profissão até o concurso no Theatro Municipal de São Paulo, no início dos anos 1990. As irmãs foram aprovadas. O talento definiu o futuro.

A primeira grande ópera de Edna foi Gianni Schischi, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1995. A produção do espetáculo trouxe os seus pais de avião de Minas, com hospedagem no Hotel Glória, tudo chique. A ovação no final do espetáculo amoleceu finalmente o coração do velho Liberalino em relação à carreira musical das filhas.

Esse papel de destaque no Rio foi uma exceção. Edna era preterida – mesmo que a sua voz parecesse a ideal para o papel. Suas suspeitas se confirmaram quando ouviu outra frase quase definitiva: “Não tem condições de colocar uma negra no papel principal”. Ela prefere não entrar nos detalhes das circunstâncias e diz apenas que o fato aconteceu no início dos anos 2000, em São Paulo. “A música erudita ‘pisa em ovos’ na questão racial.”

Pesquisa sobre cantoras líricas negras

A certeza de que sua cor chegava antes de sua voz foi a senha para estudar o tema. Edna e a irmã pesquisam cantoras líricas negras brasileiras, aquelas que também abriram picadas. Os estudos focam a história dos escravizados na música erudita brasileira, desde a colonização do Brasil até os tempos atuais, assim como a invisibilização das cantoras líricas negras brasileiras.

Entre essas figuras invisíveis está a soprano Joaquina Maria da Conceição Lapa, a Joaquina Lapinha, referência feminina na cena lírica e uma das primeiras mulheres a receber autorização para participar de espetáculos públicos em Portugal, entre 1791 e 1805. O viajante sueco Carls Ruders (1761-1837) chegou a registrar que ela disfarçava a cor da pele com tinta branca, pois os europeus julgavam o aspecto dela “inconveniente”.

A soprano e professora de canto Edna D'Oliveira e o aluno Gustavo Corrêa durante aula de canto na Emesp, região central de São Paulo. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Além disso, Edna é uma das criadoras do coletivo Ubuntu Brasileiro, que reúne artistas negros consagrados na ópera nacional e jovens cantores para promover a equidade racial na cena lírica. “Começamos a ver uma luz no fim do túnel, mas são poucas políticas públicas voltadas à participação dos negros na música erudita”, alerta.

Hoje, ela se divide entre as salas de aula, os palcos e o consultório. Além de soprano, professora e militante, Edna é fonoaudióloga. Nas redes sociais, há uma publicação orgulhosa do uniforme bordado com seu nome. Uma de suas paixões é lapidar e formar talentos para a música.

Em agosto, a cantora conduz uma oficina para cantores líricos; em setembro, participa de uma banca de concurso no Espírito Santo e, em novembro, estará em uma temporada de quatro apresentações da ópera Porgy and Bess, no Sesc São Paulo.

No meio da agenda concorrida de aulas da Emesp, a professora fez questão de apresentar o tenor Gustavo Oliveira, um dos destaques do projeto Guri, iniciativa do governo estadual de educação musical com foco na inclusão social. Além de tocar vários instrumentos, o morador de Perus, na Grande São Paulo, é dono de uma voz “lindíssima”, segundo Edna. “Ela me guia para eu chegar aonde preciso e aonde ela acredita que eu posso chegar”, diz o adolescente de 16 anos.

Gustavo viveu uma situação dramática em abril. Depois de esquecer uma vela acesa em seu quarto, um incêndio destruiu seus instrumentos musicais, partituras e cadernos. Ninguém se feriu. Uma vaquinha virtual arrecadou R$ 7,4 mil que foram suficientes para repor os instrumentos. Edna se envolveu diretamente na campanha. “Para mim, a música é a arte de expressar o que a nossa alma sente”, diz o adolescente.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com o coletivo Ubuntu Brasileiro, grupos de artistas que promove a equidade racial na música de concerto e na ópera no País.

Quando a soprano Edna D’Oliveira começou a ascender na música erudita, seu pai disse uma frase quase definitiva. “Você abriu picadas. Vai que vem gente atrás.” Abrir picadas é criar uma trilha no meio do mato fechado, inventar um caminho. Edna é uma mulher negra de origem humilde e que se tornou uma das principais cantoras líricas do País.

Foi exatamente seu Liberalino Alves de Oliveira, o pai de Edna, que começou esse caminho. Apaixonado por música, ele improvisou um coral com os sete filhos que se viravam com tamborins e chocalhos. Orquestra e coro em uma casa simples na periferia de Belo Horizonte no início dos anos 1970. “Eu era uma ostra mas, na hora de cantar, eu virava outra pessoa”, conta Edna, a mais velha, que começou a se destacar nas aulas de canto na escola pública e no coral da igreja católica.

A soprano e professora de canto Edna D'Oliveira na Escola de Música Tom Jobim (Emesp), na região central de São Paulo: compromisso com a diversidade na música erudita. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Além da música, a família respirava em meio a livros e cadernos. Edna ganhou um quadro negro porque gostava de ensinar os irmãos mais novos. Logo vieram os vizinhos pedir reforço escolar. O quarto dos fundos, que seria o quarto da bagunça, virou uma sala de aula. Era uma dúzia de crianças e até os pais de Edna, que assinavam o nome, mas não sabiam ler.

Décadas depois, o Estadão encontrou Edna em outra sala de aula. Hoje é professora de canto na Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim (Emesp), instituição da Secretaria Estadual de Cultura, Economia e Indústrias Criativas e gerida pela organização social Santa Marcelina Cultura.

A soprano também leciona na Fundação do Theatro Municipal de São Paulo e no Instituto Bacarelli, organização que leva educação musical para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade em Heliópolis. Música e educação se misturam. “Meu sonho é que o favelado cante ópera”, diz.

A soprano é uma das cantoras líricas mais importantes do País. Formada em cursos de especialização em canto na English National Opera e Royal Academy em Londres, Edna participou de inúmeros festivais internacionais na Europa e nas Américas. Ao longo de sua carreira lírica, apresentou-se em óperas como Porgy and Bess, Andrea Chenier, Falstaff, A Víuva Alegre, Rigoletto, A Flauta Mágica, Elisir d´Amore. Foi convidada pelo Atelier Chorale de Genebra, na Suíça, para interpretar e gravar a Missa Crioula, de Ariel Ramirez. É aclamada pela interpretação das Bachianas Brasileiras nº 5.

Edna é soprano, a classificação mais aguda das vozes femininas. Entre as características mais conhecidas das sopranos estão seu maior alcance vocal, expressividade e potência, diferenciais que costumam impressionar o público. Nos musicais, alguns dos papéis mais importantes foram escritos para sopranos, como Os Miseráveis (Cosette) e O Fantasma da Ópera (Christine Daaé).

Luta pela representatividade negra na música erudita

A trajetória entre o coral familiar improvisado em Minas e os concertos da Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp) e de várias orquestras do País foi de luta pela representatividade negra na música erudita. A descoberta do talento musical veio junto com o confronto direto com o racismo.

Depois de desfilar em um concurso escolar para “Rainha da Pipoca”, a menina de 7 anos ouviu: “Tira essa neguinha daí”. Ela pediu ajuda aos pais. “Você vai ter de ser sempre mais do que as outras porque a dificuldade vai ser maior”, aconselhou a mãe, Maria Paixão.

Edna começou o curso de Letras/Francês aos 16 anos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Era o bacharelado que cabia no bolso da funcionária pública. Mas continuava cantando. Ela e a irmã, Edinéia Oliveira, também cantora lírica, chegaram a participar de cinco corais simultaneamente. E a música começou a dar dinheiro, mas tudo era escondido do pai, que não via futuro profissional na música. Temia as dificuldades que tinha visto na época da ditadura militar, com a perseguição aos artistas e cantores.

Foram quatro anos de indecisão sobre a profissão até o concurso no Theatro Municipal de São Paulo, no início dos anos 1990. As irmãs foram aprovadas. O talento definiu o futuro.

A primeira grande ópera de Edna foi Gianni Schischi, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1995. A produção do espetáculo trouxe os seus pais de avião de Minas, com hospedagem no Hotel Glória, tudo chique. A ovação no final do espetáculo amoleceu finalmente o coração do velho Liberalino em relação à carreira musical das filhas.

Esse papel de destaque no Rio foi uma exceção. Edna era preterida – mesmo que a sua voz parecesse a ideal para o papel. Suas suspeitas se confirmaram quando ouviu outra frase quase definitiva: “Não tem condições de colocar uma negra no papel principal”. Ela prefere não entrar nos detalhes das circunstâncias e diz apenas que o fato aconteceu no início dos anos 2000, em São Paulo. “A música erudita ‘pisa em ovos’ na questão racial.”

Pesquisa sobre cantoras líricas negras

A certeza de que sua cor chegava antes de sua voz foi a senha para estudar o tema. Edna e a irmã pesquisam cantoras líricas negras brasileiras, aquelas que também abriram picadas. Os estudos focam a história dos escravizados na música erudita brasileira, desde a colonização do Brasil até os tempos atuais, assim como a invisibilização das cantoras líricas negras brasileiras.

Entre essas figuras invisíveis está a soprano Joaquina Maria da Conceição Lapa, a Joaquina Lapinha, referência feminina na cena lírica e uma das primeiras mulheres a receber autorização para participar de espetáculos públicos em Portugal, entre 1791 e 1805. O viajante sueco Carls Ruders (1761-1837) chegou a registrar que ela disfarçava a cor da pele com tinta branca, pois os europeus julgavam o aspecto dela “inconveniente”.

A soprano e professora de canto Edna D'Oliveira e o aluno Gustavo Corrêa durante aula de canto na Emesp, região central de São Paulo. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Além disso, Edna é uma das criadoras do coletivo Ubuntu Brasileiro, que reúne artistas negros consagrados na ópera nacional e jovens cantores para promover a equidade racial na cena lírica. “Começamos a ver uma luz no fim do túnel, mas são poucas políticas públicas voltadas à participação dos negros na música erudita”, alerta.

Hoje, ela se divide entre as salas de aula, os palcos e o consultório. Além de soprano, professora e militante, Edna é fonoaudióloga. Nas redes sociais, há uma publicação orgulhosa do uniforme bordado com seu nome. Uma de suas paixões é lapidar e formar talentos para a música.

Em agosto, a cantora conduz uma oficina para cantores líricos; em setembro, participa de uma banca de concurso no Espírito Santo e, em novembro, estará em uma temporada de quatro apresentações da ópera Porgy and Bess, no Sesc São Paulo.

No meio da agenda concorrida de aulas da Emesp, a professora fez questão de apresentar o tenor Gustavo Oliveira, um dos destaques do projeto Guri, iniciativa do governo estadual de educação musical com foco na inclusão social. Além de tocar vários instrumentos, o morador de Perus, na Grande São Paulo, é dono de uma voz “lindíssima”, segundo Edna. “Ela me guia para eu chegar aonde preciso e aonde ela acredita que eu posso chegar”, diz o adolescente de 16 anos.

Gustavo viveu uma situação dramática em abril. Depois de esquecer uma vela acesa em seu quarto, um incêndio destruiu seus instrumentos musicais, partituras e cadernos. Ninguém se feriu. Uma vaquinha virtual arrecadou R$ 7,4 mil que foram suficientes para repor os instrumentos. Edna se envolveu diretamente na campanha. “Para mim, a música é a arte de expressar o que a nossa alma sente”, diz o adolescente.

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