A Enel, responsável pelo abastecimento de energia elétrica em São Paulo e na região metropolitana, voltou a ser alvo de críticas e cobranças por autoridades após o apagão que deixou cerca de 2,1 milhões de imóveis sem luz na sexta-feira, 11 - ainda há 214 mil clientes no escuro.
A empresa, que assumiu o serviço no fim de 2018, tem acumulado histórico de problemas e multas milionárias determinadas por diferentes órgãos. Ao todo, o montante chega a aproximadamente R$ 400 milhões.
Entre as penalidades, a maioria não foi paga por causa de suspensões obtidas pela concessionária na Justiça. A Enel São Paulo também foi inscrita na dívida ativa pelo Procon paulista. Além disso, a empresa foi questionada por ações civis públicas e em Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
Assinada em 1998, a concessão é válida até 2028. Procurada pela reportagem para comentar as multas, a Enel não respondeu.
O governo abriu processo disciplinar contra a companhia, que pode levar ao fim do contrato de concessão. Em Goiás, uma série de problemas na rede e a pressão do governo local fez a Enel ser praticamente “expulsa” do Estado. A concessão foi vendida para outra empresa em 2022.
Em seus posicionamentos, a Enel tem dito que está aprimorando o sistema e o serviço em São Paulo, especialmente desde o apagão de novembro passado, que deixou parte dos consumidores sem energia por uma semana. Um dos aspectos que salienta é a contratação de novos técnicos após ter adotado antes aparte da mão de obra terceirizada.
O investimento previsto, diz a empresa, é de cerca de R$ 6,2 bilhões em São Paulo de 2024 a 2026. Esse plano inclui “fortalecimento e modernização das redes, automação dos sistemas, ampliação da capacidade dos canais de comunicação com os clientes e a contratação de funcionários próprios para atuar em campo. Em São Paulo estão sendo contratados um total de 1,2 mil eletricistas próprios até março de 2025″, destaca nota da empresa.
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Só na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a Enel acumula oito penalidades desde 2018, as quais somam multas de mais de R$ 320,8 milhões. A maioria do montante se refere às duas últimas multas (de 2022 e 2023), que chegam a mais de R$ 261,6 milhões. As mais altas foram suspensas na Justiça e menos de 20% das penalidades foram pagas.
Dentro os motivos das multas aplicadas pela Aneel, estão “qualidade do fornecimento”, “descumprimento de determinação” e “qualidade do atendimento ao consumidor”, dentre outras.
- Multa de 2018 (Natureza da fiscalização: qualidade de atendimento ao consumidor) - R$ 16.214.457,76 (paga)
- Multa de 2019 (Natureza da fiscalização: descumprimento de determinação) - R$ 1.855.773,10 (paga)
- Multa de 2019 (Natureza da fiscalização: técnica) - R$ 12.716.322,04 (paga)
- Multa de 2020 (Natureza da fiscalização: comercial) - R$ 12.089.287,84 (paga)
- Multa de 2021 (Natureza da fiscalização: qualidade de atendimento) - R$ 16.245.909,83 (paga)
- Advertência de 2022 (Natureza da fiscalização: comercial) - Advertência (sem valor)
- Multa de 2022 (Natureza da fiscalização: qualidade do fornecimento) - R$ 95.872.180,95
- Multa de 2023 (Natureza da fiscalização: técnica - referente ao apagão de 3 de novembro) - R$165.807.833,50
A multa técnica é aplicada quando se realiza inspeção e há falhas ou indícios de irregularidades. Já a multa comercial tem relação com os valores cobrados pela energia.
No apagão de novembro de 2023, a agência constatou que a retomada total levou cerca de uma semana e que a companhia aumentou significativamente o efetivo de equipes na retomada do fornecimento só na segunda-feira, três dias após o temporal.
À Justiça, a Enel chegou a comparar o episódio a um tornado, o que dificultaria o planejamento de uma resposta rápida e efetiva (leia mais abaixo).
A Aneel também destacou a piora dos índices de desempenho da empresa. De 2018 (quando a Enel SP assumiu a concessão) até setembro de 2023, a distribuidora saiu de um patamar de custos operacionais 37,9% superiores aos regulatórios para custos operacionais 10,8% inferiores aos regulatórios, o que causa preocupação uma vez que representa redução de gastos, com internalização de ganhos pela distribuidora, em cenário de prestação inadequada do serviço”, ressaltou à época.
Nas decisões judiciais recentes que suspenderam multas, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região não avaliou o mérito das penalidades, mas sim o processo em que foram aplicadas. Em uma das sentenças, disse que havia “indícios de excessos, que não respeitaram o devido processo legal administrativo”, diante do direito de “ampla defesa, presunção de inocência, boa fé, razoabilidade e proporcionalidade”.
Procurada pelo Estadão para comentar as multas suspensas, a Aneel não falou. Os processos seguem em curso.
Para o advogado especialista em setor de energia, Urias Martiniano, a Enel está no direito de recorrer na Justiça, mas esse processo deve ser mais célere. “O Judiciário precisa analisar se os fundamentos que foram apresentados pela concessionária merecem ser reconhecidos. Se forem reconhecidos, que se afaste a penalidade. Se não for, que se aplique a multa”, diz.
Além disso, desde 2018, a Enel já pagou cerca de R$ 400 milhões aos consumidores a título de compensação pelo descumprimento dos limites de continuidade no fornecimento. É uma espécie de multa automática que a concessionária paga quando demora, por exemplo, por desligar a energia sem que tenha havido a falta de pagamento ou, ainda, quando ultrapassa o horário estipulado para a manutenção de linhas, deixando consumidores sem energia mais tempo do que o previsto.
O pagamento é individual e feito na fatura da energia, mas a Aneel fiscaliza. Já as multas são aplicadas quando há descumprimento coletivo, como no caso dos apagões que atingem grandes regiões ou por falhas de operação que atingem os consumidores.
Multas do Procon
Já o Procon de São Paulo determinou sete penalidades desde 2019, que totalizam mais de R$ 64,7 milhões. Desse total, as multas mais altas, de novembro de 2023 e janeiro deste ano (R$ 12,9 milhões cada), estão em fase de análise e manifestação técnica. Outras quatro foram suspensas judicialmente e uma está inscrita na dívida ativa (R$ 5 milhões, de junho de 2019).
Entre as mais recentes, está um caso de março, com a interrupção no fornecimento de energia na região central por dias. A situação foi considerada grave pelo Procon, ainda mais por impactar hospitais e outros serviços essenciais, como a Santa Casa, que não teria recebido sequer geradores.
Com o mais recente apagão, o Procon-SP também anunciou que irá notificar a Enel, assim como solicitará a apresentação de planos detalhados de enfrentamento a eventos climáticos severos. Também orientou consumidores a registrar prejuízos causados pela falta de eletricidade, assim como problemas no atendimento.
Nas duas ações propostas em 2021 a Justiça entendeu haver indícios de inaplicabilidade parcial de acordo celebrado entre o Procon e a Enel para suspensão de cortes de energia por falta de pagamento. Já nas ações sobre as multas aplicadas em 2020, o juízo entendeu que comportaria melhor análise o processo administrativo que gerou as multas.
Secretaria do Consumidor sugeriu intervenção
A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), ligada ao Ministério da Justiça, também multou a Enel em R$ 13 milhões, em junho, por problemas entre o fim de 2023 e início de 2024. A justificativa foi de “interrupções no fornecimento de serviço público essencial de distribuição de energia elétrica e demora no restabelecimento”, com violações ao Código de Defesa do Consumidor.
O entendimento foi de que a concessionária tem a obrigação de prevenir e atenuar consequências de eventos climáticos - especialistas apontam que ventanias e chuvas atípicas serão cada vez mais fortes e frequentes com o avanço do aquecimento global. A Enel recorreu dessa multa.
Também se destacou a necessidade de restabelecer o serviço em tempo razoável, considerando sua essencialidade e efeitos negativos da interrupção na “dignidade, saúde e bem-estar” dos cidadãos.
À época, a secretaria determinou a expedição de ofícios ao Ministério de Minas e Energia e à Aneel. E sugeriu a avaliação da possibilidade de intervenção administrativa e revogação da concessão.
Apagões da Enel também foram parar na Justiça
A atuação da empresa também é questionada na Justiça, pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP), a Defensoria Pública do Estado e prefeituras. Além disso, foi tema de CPIs na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) e na Câmara Municipal de Santo André.
Após o apagão de novembro passado, a Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital do MP-SP e o Núcleo Especializado de Defesa do Consumidor da Defensoria ajuizaram ação civil pública.
A justificativa apontada era a prestação de serviço de maneira considerada “inadequada, ineficiente e descontinuada”, com pedido de melhorias e pagamento de indenização aos consumidores prejudicados.
Os defensores públicos e os promotores pedem ainda indenizações aos cidadãos prejudicados com as constantes interrupções nos últimos anos e indenização por danos coletivos no valor de R$ 300 milhões. O processo abrange os apagões ocorridos de 3 a 13 de novembro de 2023 e no 1º semestre de 2024.
Um recurso da Aneel levou o caso ao Tribunal de Justiça (TJ-SP). Segundo o MP e a Defensoria, contudo, uma decisão provisória no agravo de instrumento impede que seja proferida sentença até o julgamento final do recurso.
O TJ-SP acolheu no dia 3 de setembro o pedido da Aneel para dar parecer sobre o caso. O processo foi suspenso por 60 dias para que a Aneel apresente o parecer.
A Aneel diz que em nenhum momento se realizou defesa da Enel e sua preocupação, manifestada nos autos, é com a fixação de regras de prestação do serviço de distribuição pelo Judiciário, e não pela agência reguladora.
Na ação civil pública, a defesa da Enel afirma que eventos climáticos extremos, como o de novembro de 2023 (que se repetiu na semana passada) configuram caso fortuito ou de força maior, não sendo passíveis de indenização. Segundo a alegação, especialistas consideram esses eventos com impactos próximos daqueles causados por um tornado, fazendo com que sejam imprevisíveis seus resultados.
Conforme a defesa, a interrupção por evento climático de força maior não caracteriza descontinuidade na prestação do serviço, como está prevista em contrato. Com isso, alega não haver obrigação de indenizar o dano material. Sobre a indenização por dano coletivo, os advogados da Enel argumentam que não houve ilicitude que justifique.
Na Justiça, tramitam também ações movidas por consumidores individuais. Nos autos, os clientes apontam prejuízos materiais por oscilações no fornecimento e apagões, assim como danos morais, por motivos diversos.
Já o relatório final da CPI da Enel na Alesp propôs intervenção federal na concessionária e auditoria completa de todo o período de atuação da companhia, desde 2018.
Além disso, após o apagão deste mês, o Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP) encaminhou nota técnica à Aneel, na qual aponta o que chamou de “graves falhas” no cumprimento das metas de investimento e na qualidade do atendimento. Também sugere auditorias externas, maior transparência nos indicadores de desempenho e um plano de contingência eficaz para emergências.