Falta de desfecho para massacre do Carandiru viola novamente família de vítimas, aponta pesquisadora


Marta Machado, da FGV, pesquisou desdobramentos do caso que completa 30 anos no próximo domingo e relembra entraves para a responsabilização dos policiais envolvidos

Por Ítalo Lo Re
Atualização:

Três décadas após o massacre do Carandiru, nenhum policial foi preso pela morte dos 111 detentos na Casa de Detenção de São Paulo, na zona norte da capital paulista. Os processos já se arrastam por anos e, mesmo após condenações de 74 agentes envolvidos, as sentenças ainda não foram cumpridas. As indenizações também avançaram a passos lentos.

“Alguns familiares, mães e pais, morreram sem ter uma decisão da Justiça dizendo ‘seu filho foi morto em uma ação indevida do Estado’”, afirma a pesquisadora da FGV Marta Machado. Entre 2012 e 2015, ela liderou o projeto de pesquisa que resultou na publicação do livro Carandiru não é coisa do passado. Em entrevista ao Estadão, explica detalhes do caso.

Multidão de parentes e curiosos lota a entrada da Casa de Detenção de São Paulo e espera apreensiva pelo final do confronto entre detentos e policiais Foto: Heitor Hui/Estadão
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Por que nenhum dos envolvidos no massacre foi preso até agora?

O processo criminal se arrasta há 30 anos, e só agora está quase perto de um desfecho. “Quase” porque ainda não há uma decisão condenatória transitada em julgado, que é o que autoriza a prisão. Depois que caiu a prisão em segunda instância, é necessário uma condenação transitada em julgado. No caso do (coronel) Ubiratan, ele chegou a ser condenado pelo júri e aí o órgão especial do Tribunal de Justiça reverteu essa condenação e o absolveu, em uma decisão bastante controversa e heterodoxa. Essa decisão seria objeto de recurso, mas ele foi assassinado.

O processo criminal foi desmembrado em relação ao Ubiratan porque, como ele se elegeu deputado, o caso dele passou a correr no órgão especial do Tribunal de Justiça. O caso dos outros PMs continuou correndo e, depois de muitos anos, em 2013 e 2014, aconteceram os júris. Os júris foram fatiados, foram várias sessões, divididas por andar, por tropa. Em todas, os policiais foram condenados. A defesa dos policiais recorreu e o Tribunal de Justiça anulou as condenações, por fundamento também bastante controverso.

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Por que controverso?

Pela Constituição, o júri é soberano. Então, o veredito culpado-inocente, a análise de prova, escolher a decisão da acusação e da defesa, é algo que cabe, em última palavra, ao Tribunal do Júri. O Tribunal de Justiça não pode rever e substituir, dizer ‘não, eu entendo diferente do jurado’. O que o tribunal pode fazer é, em algumas situações excepcionais, anular aquele júri e mandar que aconteça de novo. Com essas anulações, a promotoria recorreu e levou o caso ao STJ e ao STF, entrou concomitantemente com dois recursos. No STJ, o ministro (José Ilan) Paciornik reverteu a decisão do Tribunal de Justiça e disse ‘as condenações voltam a valer’. A defesa dos acusados recorreu ao STF e, no mês passado, o ministro Barroso disse ‘esse recurso não tem cabimento’.

Neste momento, ainda caberia um recurso dessa decisão monocrática, para a Turma confirmar essa decisão. Mas, no meio disso, a advogada dos policiais renunciou. Agora, o ministro (Luís Roberto Barroso) Barroso tem de decidir se, diante dessa renúncia, confirma a decisão do trânsito em julgado ou intima cada um dos réus para ver o que querem fazer. Fato é que depois de 30 anos a gente ainda não tem uma decisão condenatória que tenha transitado em julgado, que é quando não cabe mais nenhum recurso. Se o Barroso certificar que não recebeu o recurso e que, portanto, as decisões de condenação transitaram em julgado, o processo volta para o Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça emite alvará de prisão para os policiais. As penas, em alguns casos, vão até 600 anos de prisão.

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Como as penas foram fixadas?

As diferenças não são por hierarquia, mas são por número de mortes que aconteceram nos locais em que eles atuaram. A diferença de pena é em função disso.

No mês passado, a Comissão de Segurança Pública da Câmara aprovou um projeto que anistia todos os policiais envolvidos na morte dos 111 detentos. Como avalia iniciativas como essa?

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Tem desde projeto de lei até o presidente Bolsonaro anunciando que vai anistiar, deu inúmeras declarações sobre indulto, anistia etc. O caso do Carandiru é um símbolo do problema da violência policial. Toda vez que o presidente Bolsonaro se manifesta a favor da ampliação da legítima defesa, da ampliação do poder de matar dos policiais, ele lembra do caso do Carandiru. Tem todo um conjunto de apoiadores desse tipo de política, que mobilizam o entorno dos acusados pelo massacre, como um símbolo de que eles não podem ser punidos. Não descarto essa possibilidade (de anistia). Ela está na mesa, vem sendo discutida, chegou ao governo federal.

Essa demanda de anistiar os policiais do Carandiru é forte e congrega todos que estão em torno dessa ideologia de suporte a execuções e de ampliação de hipóteses de legítima defesa dos policiais. O Carandiru, de um lado, congrega todo o movimento de Direitos Humanos, que está pensando a letalidade policial, e de familiares de presos, mas também é um símbolo forte para os que defendem esse tipo de política lei e ordem. Não me surpreenderia se o desfecho fosse a anistia. É importante destacar que a gente está falando de anistia, mas o sistema de Justiça não conseguiu produzir uma condenação mesmo depois de 30 anos. Isso é muito simbólico, essa curva que a gente fez.

Quais foram os principais motivos do atraso no julgamento?

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Muitas coisas geraram discussão no Tribunal de Justiça, teve muitas demoras iniciais com relação a competência. A lei do escudo fala só em crimes dolosos contra a vida, então também teve que desmembrar as lesões corporais. Depois teve o desmembramento do Ubiratan. Toda vez que o caso era desmembrado, isso ia para o Tribunal de Justiça e ficava se discutindo competência. Houve muitas demoras no começo do caso, justamente para definir a competência, mas depois que definiu, a coisa não melhorou.

Minha maior crítica certamente vai para o TJ-SP, e às próprias decisões do tribunal. As anulações do júri são muito controversas. Imaginar que a gente conseguiu realizar esse júri depois de todos esses anos e o tribunal de Justiça vai lá e anula – já tinha feito isso no caso do Ubiratan, e agora vai lá e faz isso em outros casos. O caso se arrasta mais por força do tribunal do que pelas minúcias e de possíveis brechas que os advogados exploraram. As demoras são muito significativas.

Em quais condições estão hoje os policiais envolvidos no massacre do Carandiru?

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Alguns policiais já até começaram a se aposentar, com vencimento integral etc. A carreira deles nunca foi abalada pelo massacre, pelo contrário. O que a gente viu (no projeto de pesquisa) é que eles continuaram na corporação normalmente, muitos inclusive subindo de posição na hierarquia.

Quantos policiais atuaram, de fato, no dia do massacre?

Foram mais de 350 policiais. Já teve um grande corte de quem foi acusado ou não. No inquérito policial militar, os policiais foram ouvidos e, todos os policiais que disseram que não atiraram, já foram retirados da ação penal. Então, a denúncia foi feita só em relação aos policiais que entraram na Casa de Detenção e que disseram que atiraram. Então, já tem uma quebra grande desse número.

E as responsabilidades das autoridades nunca foram investigadas. Quem deu a ordem de entrada deu uma ordem altamente questionável. No sistema judicial brasileiro pode se praticar crimes por negligência, por omissão. As autoridades que poderiam ter agido para impedir e não impediram, que tomaram a decisão de autorizar a entrada naquela situação. É um tipo de operação altamente arriscada. Se mandar 350 policiais fortemente armados para dentro do presídio, a chance de acontecer uma tragédia é muito alta. É uma decisão que uma autoridade tomou e, para cima do Ubiratan, que é o comandante da operação, a responsabilidade de ninguém foi sequer investigada. É algo também muito surpreendente.

Quando a gente tem crimes dessa natureza, grave violação de direitos humanos, a gente não para nas pessoas que agiram, a gente vai pelas autoridades. Tanto que, em 2000, quando a Comissão Interamericana (dos Direitos Humanos) faz um relatório condenando o Brasil pelo massacre – não é uma condenação da Corte, mas um relatório –, a comissão reconhece a responsabilidade do Estado e faz recomendações. Uma delas é apurar a responsabilidade das autoridades. Então, é importante reforçar que nem todos os policiais foram processados nem as autoridades. A gente jamais começou uma investigação das autoridades. E é claro que agora não daria mais, já está tudo prescrito.

Qual é o contexto político que antecedeu o massacre?

Já havia naquele momento, e era muito presente, o discurso de execução, o discurso de que ‘bandido bom é bandido morto’. Isso está muito presente na cultura e naquele momento. A década de 80 é uma década de aumento da criminalidade, e também de aumento das execuções policiais. Tem alguns livros que contam isso, como o Rota 66, do Caco Barcellos. Já tinha, ali, naquele momento, um problema seríssimo de aumento de crimes patrimoniais e com isso, também, o aumento da violência policial. A gente estava vivendo um momento de muita brutalidade policial e disso sendo oferecido como uma solução de segurança pública, já estava no discurso dos governadores. A gente tinha o Fleury, que tinha essa característica de ser linha dura, já tinha a Rota, já tinha instalado ali uma polícia violenta, uma cultura de que bandido bom é bandido morto.

Tem uma circunstância do momento, que acho que era importante, que era véspera de eleição. Em entrevistas, o que outras pessoas dizem é que a eleição também influenciou. A ideia era um pouco abafar o que estava acontecendo ali. Tanto que também a cobertura jornalística foi muito prejudicada. Nos primeiros dias, ninguém sabe quantas pessoas morreram, eles vão soltando as informações aos poucos, os jornalistas vão tentando investigar, ver o que aconteceu. Tem uma participação muito importante do jornalismo naquele momento para tentar entender o que aconteceu, foram liberando o número de mortos muito aos poucos. Tem uma grande confusão naquele momento, o que tem a ver também com a ideia de tentar abafar o episódio para não influenciar nas eleições.

Como foram organizadas as indenizações às famílias?

Algumas famílias, se não me engano, 70 famílias, entraram com pedido de indenização. Esse processo também foi muito longo, as famílias ficaram 10 anos para conseguir uma decisão. As que conseguiram depois foram para uma fila de precatórios e ficaram mais 10 anos na fila de precatórios. Nesse processo, houve várias situações. Pais de vítimas morreram, por exemplo. Aí tinha que abrir um outro processo para os irmãos tentarem receber alguma coisa. Muitas indenizações também foram negadas. A gente achou decisões no Tribunal de Justiça que diziam ‘esse preso era um peso para a família’ ou que ‘não contribuía em nada com a família’. Então, tem decisões complicadíssimas do Tribunal de Justiça, que, em vários casos, negou as indenizações. E os processos dos familiares que conseguiram foram muitíssimo arrastados.

Voltando para a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, um dos elementos era indenizar a família. E a gente não teve nenhuma iniciativa, ou um modelo de indenização, de outro jeito. Reunir essas famílias e pagar por meio de um programa. A gente teve outros casos em que o governo federal – mesmo casos das indenizações do acidente da Tam – tratou as vítimas como um coletivo e pensou uma indenização apropriada para esse tipo de violação. Nesse caso, não. As famílias tiveram de, individualmente, procurar a Procuradoria de Assistência Judiciária, que entrou individualmente com os processos e enfrentou uma combatividade. A Fazenda Pública recorria com muita combatividade.

O Estado não só não ofereceu uma comissão, como as vítimas entraram no processo judicial como qualquer pessoa, como qualquer um que precisa reaver um tributo do Estado. Não teve nenhuma solução de tentar uma indenização para as vítimas de outro tipo, que não seja esse que foi uma espécie de revitimização. As famílias que já sofreram a perda do ente querido passam por um processo excruciante na Justiça. Quando a gente pensa no sistema internacional de Direitos Humanos, a demora em si é considerada uma violação, a falta de resolução de Justiça é considerada um fator de revitimização e de mais violação de direitos humanos. Alguns familiares, mães e pais, morreram sem ter uma decisão da Justiça dizendo ‘seu filho foi morto em uma ação indevida do Estado’.

Três décadas após o massacre do Carandiru, nenhum policial foi preso pela morte dos 111 detentos na Casa de Detenção de São Paulo, na zona norte da capital paulista. Os processos já se arrastam por anos e, mesmo após condenações de 74 agentes envolvidos, as sentenças ainda não foram cumpridas. As indenizações também avançaram a passos lentos.

“Alguns familiares, mães e pais, morreram sem ter uma decisão da Justiça dizendo ‘seu filho foi morto em uma ação indevida do Estado’”, afirma a pesquisadora da FGV Marta Machado. Entre 2012 e 2015, ela liderou o projeto de pesquisa que resultou na publicação do livro Carandiru não é coisa do passado. Em entrevista ao Estadão, explica detalhes do caso.

Multidão de parentes e curiosos lota a entrada da Casa de Detenção de São Paulo e espera apreensiva pelo final do confronto entre detentos e policiais Foto: Heitor Hui/Estadão

Por que nenhum dos envolvidos no massacre foi preso até agora?

O processo criminal se arrasta há 30 anos, e só agora está quase perto de um desfecho. “Quase” porque ainda não há uma decisão condenatória transitada em julgado, que é o que autoriza a prisão. Depois que caiu a prisão em segunda instância, é necessário uma condenação transitada em julgado. No caso do (coronel) Ubiratan, ele chegou a ser condenado pelo júri e aí o órgão especial do Tribunal de Justiça reverteu essa condenação e o absolveu, em uma decisão bastante controversa e heterodoxa. Essa decisão seria objeto de recurso, mas ele foi assassinado.

O processo criminal foi desmembrado em relação ao Ubiratan porque, como ele se elegeu deputado, o caso dele passou a correr no órgão especial do Tribunal de Justiça. O caso dos outros PMs continuou correndo e, depois de muitos anos, em 2013 e 2014, aconteceram os júris. Os júris foram fatiados, foram várias sessões, divididas por andar, por tropa. Em todas, os policiais foram condenados. A defesa dos policiais recorreu e o Tribunal de Justiça anulou as condenações, por fundamento também bastante controverso.

Por que controverso?

Pela Constituição, o júri é soberano. Então, o veredito culpado-inocente, a análise de prova, escolher a decisão da acusação e da defesa, é algo que cabe, em última palavra, ao Tribunal do Júri. O Tribunal de Justiça não pode rever e substituir, dizer ‘não, eu entendo diferente do jurado’. O que o tribunal pode fazer é, em algumas situações excepcionais, anular aquele júri e mandar que aconteça de novo. Com essas anulações, a promotoria recorreu e levou o caso ao STJ e ao STF, entrou concomitantemente com dois recursos. No STJ, o ministro (José Ilan) Paciornik reverteu a decisão do Tribunal de Justiça e disse ‘as condenações voltam a valer’. A defesa dos acusados recorreu ao STF e, no mês passado, o ministro Barroso disse ‘esse recurso não tem cabimento’.

Neste momento, ainda caberia um recurso dessa decisão monocrática, para a Turma confirmar essa decisão. Mas, no meio disso, a advogada dos policiais renunciou. Agora, o ministro (Luís Roberto Barroso) Barroso tem de decidir se, diante dessa renúncia, confirma a decisão do trânsito em julgado ou intima cada um dos réus para ver o que querem fazer. Fato é que depois de 30 anos a gente ainda não tem uma decisão condenatória que tenha transitado em julgado, que é quando não cabe mais nenhum recurso. Se o Barroso certificar que não recebeu o recurso e que, portanto, as decisões de condenação transitaram em julgado, o processo volta para o Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça emite alvará de prisão para os policiais. As penas, em alguns casos, vão até 600 anos de prisão.

Como as penas foram fixadas?

As diferenças não são por hierarquia, mas são por número de mortes que aconteceram nos locais em que eles atuaram. A diferença de pena é em função disso.

No mês passado, a Comissão de Segurança Pública da Câmara aprovou um projeto que anistia todos os policiais envolvidos na morte dos 111 detentos. Como avalia iniciativas como essa?

Tem desde projeto de lei até o presidente Bolsonaro anunciando que vai anistiar, deu inúmeras declarações sobre indulto, anistia etc. O caso do Carandiru é um símbolo do problema da violência policial. Toda vez que o presidente Bolsonaro se manifesta a favor da ampliação da legítima defesa, da ampliação do poder de matar dos policiais, ele lembra do caso do Carandiru. Tem todo um conjunto de apoiadores desse tipo de política, que mobilizam o entorno dos acusados pelo massacre, como um símbolo de que eles não podem ser punidos. Não descarto essa possibilidade (de anistia). Ela está na mesa, vem sendo discutida, chegou ao governo federal.

Essa demanda de anistiar os policiais do Carandiru é forte e congrega todos que estão em torno dessa ideologia de suporte a execuções e de ampliação de hipóteses de legítima defesa dos policiais. O Carandiru, de um lado, congrega todo o movimento de Direitos Humanos, que está pensando a letalidade policial, e de familiares de presos, mas também é um símbolo forte para os que defendem esse tipo de política lei e ordem. Não me surpreenderia se o desfecho fosse a anistia. É importante destacar que a gente está falando de anistia, mas o sistema de Justiça não conseguiu produzir uma condenação mesmo depois de 30 anos. Isso é muito simbólico, essa curva que a gente fez.

Quais foram os principais motivos do atraso no julgamento?

Muitas coisas geraram discussão no Tribunal de Justiça, teve muitas demoras iniciais com relação a competência. A lei do escudo fala só em crimes dolosos contra a vida, então também teve que desmembrar as lesões corporais. Depois teve o desmembramento do Ubiratan. Toda vez que o caso era desmembrado, isso ia para o Tribunal de Justiça e ficava se discutindo competência. Houve muitas demoras no começo do caso, justamente para definir a competência, mas depois que definiu, a coisa não melhorou.

Minha maior crítica certamente vai para o TJ-SP, e às próprias decisões do tribunal. As anulações do júri são muito controversas. Imaginar que a gente conseguiu realizar esse júri depois de todos esses anos e o tribunal de Justiça vai lá e anula – já tinha feito isso no caso do Ubiratan, e agora vai lá e faz isso em outros casos. O caso se arrasta mais por força do tribunal do que pelas minúcias e de possíveis brechas que os advogados exploraram. As demoras são muito significativas.

Em quais condições estão hoje os policiais envolvidos no massacre do Carandiru?

Alguns policiais já até começaram a se aposentar, com vencimento integral etc. A carreira deles nunca foi abalada pelo massacre, pelo contrário. O que a gente viu (no projeto de pesquisa) é que eles continuaram na corporação normalmente, muitos inclusive subindo de posição na hierarquia.

Quantos policiais atuaram, de fato, no dia do massacre?

Foram mais de 350 policiais. Já teve um grande corte de quem foi acusado ou não. No inquérito policial militar, os policiais foram ouvidos e, todos os policiais que disseram que não atiraram, já foram retirados da ação penal. Então, a denúncia foi feita só em relação aos policiais que entraram na Casa de Detenção e que disseram que atiraram. Então, já tem uma quebra grande desse número.

E as responsabilidades das autoridades nunca foram investigadas. Quem deu a ordem de entrada deu uma ordem altamente questionável. No sistema judicial brasileiro pode se praticar crimes por negligência, por omissão. As autoridades que poderiam ter agido para impedir e não impediram, que tomaram a decisão de autorizar a entrada naquela situação. É um tipo de operação altamente arriscada. Se mandar 350 policiais fortemente armados para dentro do presídio, a chance de acontecer uma tragédia é muito alta. É uma decisão que uma autoridade tomou e, para cima do Ubiratan, que é o comandante da operação, a responsabilidade de ninguém foi sequer investigada. É algo também muito surpreendente.

Quando a gente tem crimes dessa natureza, grave violação de direitos humanos, a gente não para nas pessoas que agiram, a gente vai pelas autoridades. Tanto que, em 2000, quando a Comissão Interamericana (dos Direitos Humanos) faz um relatório condenando o Brasil pelo massacre – não é uma condenação da Corte, mas um relatório –, a comissão reconhece a responsabilidade do Estado e faz recomendações. Uma delas é apurar a responsabilidade das autoridades. Então, é importante reforçar que nem todos os policiais foram processados nem as autoridades. A gente jamais começou uma investigação das autoridades. E é claro que agora não daria mais, já está tudo prescrito.

Qual é o contexto político que antecedeu o massacre?

Já havia naquele momento, e era muito presente, o discurso de execução, o discurso de que ‘bandido bom é bandido morto’. Isso está muito presente na cultura e naquele momento. A década de 80 é uma década de aumento da criminalidade, e também de aumento das execuções policiais. Tem alguns livros que contam isso, como o Rota 66, do Caco Barcellos. Já tinha, ali, naquele momento, um problema seríssimo de aumento de crimes patrimoniais e com isso, também, o aumento da violência policial. A gente estava vivendo um momento de muita brutalidade policial e disso sendo oferecido como uma solução de segurança pública, já estava no discurso dos governadores. A gente tinha o Fleury, que tinha essa característica de ser linha dura, já tinha a Rota, já tinha instalado ali uma polícia violenta, uma cultura de que bandido bom é bandido morto.

Tem uma circunstância do momento, que acho que era importante, que era véspera de eleição. Em entrevistas, o que outras pessoas dizem é que a eleição também influenciou. A ideia era um pouco abafar o que estava acontecendo ali. Tanto que também a cobertura jornalística foi muito prejudicada. Nos primeiros dias, ninguém sabe quantas pessoas morreram, eles vão soltando as informações aos poucos, os jornalistas vão tentando investigar, ver o que aconteceu. Tem uma participação muito importante do jornalismo naquele momento para tentar entender o que aconteceu, foram liberando o número de mortos muito aos poucos. Tem uma grande confusão naquele momento, o que tem a ver também com a ideia de tentar abafar o episódio para não influenciar nas eleições.

Como foram organizadas as indenizações às famílias?

Algumas famílias, se não me engano, 70 famílias, entraram com pedido de indenização. Esse processo também foi muito longo, as famílias ficaram 10 anos para conseguir uma decisão. As que conseguiram depois foram para uma fila de precatórios e ficaram mais 10 anos na fila de precatórios. Nesse processo, houve várias situações. Pais de vítimas morreram, por exemplo. Aí tinha que abrir um outro processo para os irmãos tentarem receber alguma coisa. Muitas indenizações também foram negadas. A gente achou decisões no Tribunal de Justiça que diziam ‘esse preso era um peso para a família’ ou que ‘não contribuía em nada com a família’. Então, tem decisões complicadíssimas do Tribunal de Justiça, que, em vários casos, negou as indenizações. E os processos dos familiares que conseguiram foram muitíssimo arrastados.

Voltando para a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, um dos elementos era indenizar a família. E a gente não teve nenhuma iniciativa, ou um modelo de indenização, de outro jeito. Reunir essas famílias e pagar por meio de um programa. A gente teve outros casos em que o governo federal – mesmo casos das indenizações do acidente da Tam – tratou as vítimas como um coletivo e pensou uma indenização apropriada para esse tipo de violação. Nesse caso, não. As famílias tiveram de, individualmente, procurar a Procuradoria de Assistência Judiciária, que entrou individualmente com os processos e enfrentou uma combatividade. A Fazenda Pública recorria com muita combatividade.

O Estado não só não ofereceu uma comissão, como as vítimas entraram no processo judicial como qualquer pessoa, como qualquer um que precisa reaver um tributo do Estado. Não teve nenhuma solução de tentar uma indenização para as vítimas de outro tipo, que não seja esse que foi uma espécie de revitimização. As famílias que já sofreram a perda do ente querido passam por um processo excruciante na Justiça. Quando a gente pensa no sistema internacional de Direitos Humanos, a demora em si é considerada uma violação, a falta de resolução de Justiça é considerada um fator de revitimização e de mais violação de direitos humanos. Alguns familiares, mães e pais, morreram sem ter uma decisão da Justiça dizendo ‘seu filho foi morto em uma ação indevida do Estado’.

Três décadas após o massacre do Carandiru, nenhum policial foi preso pela morte dos 111 detentos na Casa de Detenção de São Paulo, na zona norte da capital paulista. Os processos já se arrastam por anos e, mesmo após condenações de 74 agentes envolvidos, as sentenças ainda não foram cumpridas. As indenizações também avançaram a passos lentos.

“Alguns familiares, mães e pais, morreram sem ter uma decisão da Justiça dizendo ‘seu filho foi morto em uma ação indevida do Estado’”, afirma a pesquisadora da FGV Marta Machado. Entre 2012 e 2015, ela liderou o projeto de pesquisa que resultou na publicação do livro Carandiru não é coisa do passado. Em entrevista ao Estadão, explica detalhes do caso.

Multidão de parentes e curiosos lota a entrada da Casa de Detenção de São Paulo e espera apreensiva pelo final do confronto entre detentos e policiais Foto: Heitor Hui/Estadão

Por que nenhum dos envolvidos no massacre foi preso até agora?

O processo criminal se arrasta há 30 anos, e só agora está quase perto de um desfecho. “Quase” porque ainda não há uma decisão condenatória transitada em julgado, que é o que autoriza a prisão. Depois que caiu a prisão em segunda instância, é necessário uma condenação transitada em julgado. No caso do (coronel) Ubiratan, ele chegou a ser condenado pelo júri e aí o órgão especial do Tribunal de Justiça reverteu essa condenação e o absolveu, em uma decisão bastante controversa e heterodoxa. Essa decisão seria objeto de recurso, mas ele foi assassinado.

O processo criminal foi desmembrado em relação ao Ubiratan porque, como ele se elegeu deputado, o caso dele passou a correr no órgão especial do Tribunal de Justiça. O caso dos outros PMs continuou correndo e, depois de muitos anos, em 2013 e 2014, aconteceram os júris. Os júris foram fatiados, foram várias sessões, divididas por andar, por tropa. Em todas, os policiais foram condenados. A defesa dos policiais recorreu e o Tribunal de Justiça anulou as condenações, por fundamento também bastante controverso.

Por que controverso?

Pela Constituição, o júri é soberano. Então, o veredito culpado-inocente, a análise de prova, escolher a decisão da acusação e da defesa, é algo que cabe, em última palavra, ao Tribunal do Júri. O Tribunal de Justiça não pode rever e substituir, dizer ‘não, eu entendo diferente do jurado’. O que o tribunal pode fazer é, em algumas situações excepcionais, anular aquele júri e mandar que aconteça de novo. Com essas anulações, a promotoria recorreu e levou o caso ao STJ e ao STF, entrou concomitantemente com dois recursos. No STJ, o ministro (José Ilan) Paciornik reverteu a decisão do Tribunal de Justiça e disse ‘as condenações voltam a valer’. A defesa dos acusados recorreu ao STF e, no mês passado, o ministro Barroso disse ‘esse recurso não tem cabimento’.

Neste momento, ainda caberia um recurso dessa decisão monocrática, para a Turma confirmar essa decisão. Mas, no meio disso, a advogada dos policiais renunciou. Agora, o ministro (Luís Roberto Barroso) Barroso tem de decidir se, diante dessa renúncia, confirma a decisão do trânsito em julgado ou intima cada um dos réus para ver o que querem fazer. Fato é que depois de 30 anos a gente ainda não tem uma decisão condenatória que tenha transitado em julgado, que é quando não cabe mais nenhum recurso. Se o Barroso certificar que não recebeu o recurso e que, portanto, as decisões de condenação transitaram em julgado, o processo volta para o Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça emite alvará de prisão para os policiais. As penas, em alguns casos, vão até 600 anos de prisão.

Como as penas foram fixadas?

As diferenças não são por hierarquia, mas são por número de mortes que aconteceram nos locais em que eles atuaram. A diferença de pena é em função disso.

No mês passado, a Comissão de Segurança Pública da Câmara aprovou um projeto que anistia todos os policiais envolvidos na morte dos 111 detentos. Como avalia iniciativas como essa?

Tem desde projeto de lei até o presidente Bolsonaro anunciando que vai anistiar, deu inúmeras declarações sobre indulto, anistia etc. O caso do Carandiru é um símbolo do problema da violência policial. Toda vez que o presidente Bolsonaro se manifesta a favor da ampliação da legítima defesa, da ampliação do poder de matar dos policiais, ele lembra do caso do Carandiru. Tem todo um conjunto de apoiadores desse tipo de política, que mobilizam o entorno dos acusados pelo massacre, como um símbolo de que eles não podem ser punidos. Não descarto essa possibilidade (de anistia). Ela está na mesa, vem sendo discutida, chegou ao governo federal.

Essa demanda de anistiar os policiais do Carandiru é forte e congrega todos que estão em torno dessa ideologia de suporte a execuções e de ampliação de hipóteses de legítima defesa dos policiais. O Carandiru, de um lado, congrega todo o movimento de Direitos Humanos, que está pensando a letalidade policial, e de familiares de presos, mas também é um símbolo forte para os que defendem esse tipo de política lei e ordem. Não me surpreenderia se o desfecho fosse a anistia. É importante destacar que a gente está falando de anistia, mas o sistema de Justiça não conseguiu produzir uma condenação mesmo depois de 30 anos. Isso é muito simbólico, essa curva que a gente fez.

Quais foram os principais motivos do atraso no julgamento?

Muitas coisas geraram discussão no Tribunal de Justiça, teve muitas demoras iniciais com relação a competência. A lei do escudo fala só em crimes dolosos contra a vida, então também teve que desmembrar as lesões corporais. Depois teve o desmembramento do Ubiratan. Toda vez que o caso era desmembrado, isso ia para o Tribunal de Justiça e ficava se discutindo competência. Houve muitas demoras no começo do caso, justamente para definir a competência, mas depois que definiu, a coisa não melhorou.

Minha maior crítica certamente vai para o TJ-SP, e às próprias decisões do tribunal. As anulações do júri são muito controversas. Imaginar que a gente conseguiu realizar esse júri depois de todos esses anos e o tribunal de Justiça vai lá e anula – já tinha feito isso no caso do Ubiratan, e agora vai lá e faz isso em outros casos. O caso se arrasta mais por força do tribunal do que pelas minúcias e de possíveis brechas que os advogados exploraram. As demoras são muito significativas.

Em quais condições estão hoje os policiais envolvidos no massacre do Carandiru?

Alguns policiais já até começaram a se aposentar, com vencimento integral etc. A carreira deles nunca foi abalada pelo massacre, pelo contrário. O que a gente viu (no projeto de pesquisa) é que eles continuaram na corporação normalmente, muitos inclusive subindo de posição na hierarquia.

Quantos policiais atuaram, de fato, no dia do massacre?

Foram mais de 350 policiais. Já teve um grande corte de quem foi acusado ou não. No inquérito policial militar, os policiais foram ouvidos e, todos os policiais que disseram que não atiraram, já foram retirados da ação penal. Então, a denúncia foi feita só em relação aos policiais que entraram na Casa de Detenção e que disseram que atiraram. Então, já tem uma quebra grande desse número.

E as responsabilidades das autoridades nunca foram investigadas. Quem deu a ordem de entrada deu uma ordem altamente questionável. No sistema judicial brasileiro pode se praticar crimes por negligência, por omissão. As autoridades que poderiam ter agido para impedir e não impediram, que tomaram a decisão de autorizar a entrada naquela situação. É um tipo de operação altamente arriscada. Se mandar 350 policiais fortemente armados para dentro do presídio, a chance de acontecer uma tragédia é muito alta. É uma decisão que uma autoridade tomou e, para cima do Ubiratan, que é o comandante da operação, a responsabilidade de ninguém foi sequer investigada. É algo também muito surpreendente.

Quando a gente tem crimes dessa natureza, grave violação de direitos humanos, a gente não para nas pessoas que agiram, a gente vai pelas autoridades. Tanto que, em 2000, quando a Comissão Interamericana (dos Direitos Humanos) faz um relatório condenando o Brasil pelo massacre – não é uma condenação da Corte, mas um relatório –, a comissão reconhece a responsabilidade do Estado e faz recomendações. Uma delas é apurar a responsabilidade das autoridades. Então, é importante reforçar que nem todos os policiais foram processados nem as autoridades. A gente jamais começou uma investigação das autoridades. E é claro que agora não daria mais, já está tudo prescrito.

Qual é o contexto político que antecedeu o massacre?

Já havia naquele momento, e era muito presente, o discurso de execução, o discurso de que ‘bandido bom é bandido morto’. Isso está muito presente na cultura e naquele momento. A década de 80 é uma década de aumento da criminalidade, e também de aumento das execuções policiais. Tem alguns livros que contam isso, como o Rota 66, do Caco Barcellos. Já tinha, ali, naquele momento, um problema seríssimo de aumento de crimes patrimoniais e com isso, também, o aumento da violência policial. A gente estava vivendo um momento de muita brutalidade policial e disso sendo oferecido como uma solução de segurança pública, já estava no discurso dos governadores. A gente tinha o Fleury, que tinha essa característica de ser linha dura, já tinha a Rota, já tinha instalado ali uma polícia violenta, uma cultura de que bandido bom é bandido morto.

Tem uma circunstância do momento, que acho que era importante, que era véspera de eleição. Em entrevistas, o que outras pessoas dizem é que a eleição também influenciou. A ideia era um pouco abafar o que estava acontecendo ali. Tanto que também a cobertura jornalística foi muito prejudicada. Nos primeiros dias, ninguém sabe quantas pessoas morreram, eles vão soltando as informações aos poucos, os jornalistas vão tentando investigar, ver o que aconteceu. Tem uma participação muito importante do jornalismo naquele momento para tentar entender o que aconteceu, foram liberando o número de mortos muito aos poucos. Tem uma grande confusão naquele momento, o que tem a ver também com a ideia de tentar abafar o episódio para não influenciar nas eleições.

Como foram organizadas as indenizações às famílias?

Algumas famílias, se não me engano, 70 famílias, entraram com pedido de indenização. Esse processo também foi muito longo, as famílias ficaram 10 anos para conseguir uma decisão. As que conseguiram depois foram para uma fila de precatórios e ficaram mais 10 anos na fila de precatórios. Nesse processo, houve várias situações. Pais de vítimas morreram, por exemplo. Aí tinha que abrir um outro processo para os irmãos tentarem receber alguma coisa. Muitas indenizações também foram negadas. A gente achou decisões no Tribunal de Justiça que diziam ‘esse preso era um peso para a família’ ou que ‘não contribuía em nada com a família’. Então, tem decisões complicadíssimas do Tribunal de Justiça, que, em vários casos, negou as indenizações. E os processos dos familiares que conseguiram foram muitíssimo arrastados.

Voltando para a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, um dos elementos era indenizar a família. E a gente não teve nenhuma iniciativa, ou um modelo de indenização, de outro jeito. Reunir essas famílias e pagar por meio de um programa. A gente teve outros casos em que o governo federal – mesmo casos das indenizações do acidente da Tam – tratou as vítimas como um coletivo e pensou uma indenização apropriada para esse tipo de violação. Nesse caso, não. As famílias tiveram de, individualmente, procurar a Procuradoria de Assistência Judiciária, que entrou individualmente com os processos e enfrentou uma combatividade. A Fazenda Pública recorria com muita combatividade.

O Estado não só não ofereceu uma comissão, como as vítimas entraram no processo judicial como qualquer pessoa, como qualquer um que precisa reaver um tributo do Estado. Não teve nenhuma solução de tentar uma indenização para as vítimas de outro tipo, que não seja esse que foi uma espécie de revitimização. As famílias que já sofreram a perda do ente querido passam por um processo excruciante na Justiça. Quando a gente pensa no sistema internacional de Direitos Humanos, a demora em si é considerada uma violação, a falta de resolução de Justiça é considerada um fator de revitimização e de mais violação de direitos humanos. Alguns familiares, mães e pais, morreram sem ter uma decisão da Justiça dizendo ‘seu filho foi morto em uma ação indevida do Estado’.

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