Dois policiais militares da Rota, batalhão de elite da Polícia Militar, tornaram-se réus nesta terça-feira, 19, por homicídio duplamente qualificado após a Justiça paulista receber uma denúncia oferecida pelo Ministério Público do Estado (MP-SP) por conta da morte de um morador em comunidade na Vila Zilda, no Guarujá, em operação em julho deste ano. A vítima foi identificada como Rogério Andrade de Jesus.
No documento, ao qual o Estadão teve acesso, Eduardo de Freitas Araújo e Augusto Vinícius Santos de Oliveira são acusados de tampar suas câmeras corporais e plantar uma arma de fogo para forjar um confronto. Araújo, segundo a investigação, deu um tiro de fuzil em Rogério dentro da própria casa da vítima.
O caso ocorreu quando os agentes participavam da Operação Escudo, deflagrada após o assassinato de um soldado da Rota no Guarujá. Moradores relataram abusos e episódios de violência policial como forma de retaliação. A Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP) afirmou, em nota, que vai afastar os PMs e que analisa o denúncia. A reportagem não conseguiu localizar a defesa dos agentes.
A denúncia aponta que um grupo de quatro policiais militares da Rota iniciou patrulhamento às 7h26 do dia 30 de julho no Morro do Macaco, na Vila Zilda, portando câmeras operacionais portáteis (COPs) – atualmente, cerca da metade dos batalhões de São Paulo usa o equipamento. Entre eles, a Rota.
“Durante toda a incursão, a equipe não visualizou qualquer ato suspeito que ensejasse perseguição, confronto ou outra diligência”, aponta a denúncia, oferecida por promotores do Tribunal do Júri do Guarujá e do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp).
Para embasar esse entendimento, os promotores analisaram imagens das câmeras corporais dos policiais, ouviram testemunhas e a versão dos agentes e confrontaram os dados com laudos de perícias feitas ao longo da investigação. Dois dos policiais presentes na incursão não foram denunciados.
Conforme relatado na denúncia, após identificar uma “movimentação de pessoas”, os PMs foram até a frente da casa de Rogério. Lá, chegaram a conversar com vizinhos da vítima na tentativa de obter mais informações sobre pessoas que moravam na região.
Sem conseguir avançar muito, o policial Eduardo de Freitas Araújo se posicionou em frente à casa onde Rogério morava e ficou lá por cerca de um minuto, conforme imagens das câmeras corporais dos agentes. Ele teria tentado puxar a janela da casa com a mão, mas não teria conseguido ver o que havia dentro.
Vítima foi baleada dentro de casa
Araújo, então, formou uma célula tática com os colegas e abriu a porta da casa da vítima por volta de 7h45. De acordo com a denúncia, ação foi tomada “sem a ocorrência de qualquer fato prévio que fundamentasse suspeita de possível flagrante delito e sem tentar chamar pelo morador, tal como tinha acabado de fazer na casa vizinha”.
Com a porta aberta, Araújo apontou o fuzil para o interior da casa e, segundos depois, efetuou um disparo. O tiro atingiu a região torácica de Rogério, que não resistiu ao ferimento. A denúncia reforça que a ação ocorreu sem que houvesse indício anterior de flagrante delito ou outra ação para atestar que o homem não fugiria.
Ainda segundo a denúncia, após o disparo, Araújo entrou na casa e colocou-se em “posição lateral, de modo que a câmera corporal não captasse as imagens do ofendido alvejado e filmasse a inexistência da pistola atribuída ao ofendido”. Segundo os promotores, o policial descumpriu diretriz da PM que disciplina o uso das câmeras operacionais portáteis no âmbito da PM.
Logo depois, Oliveira entrou na casa e também impediu que a vítima fosse filmada pela câmera corporal que estava usando. Na denúncia, é possível ver a imagem tampada (abaixo). Ainda segundo o documento, com o objetivo de alterar a cena da morte, ele também teria simulado que apreendeu uma pistola supostamente usada pela vítima, permanecendo com a câmera obstruída.
PM teria plantado colete balístico na casa da vítima
Segundo o MP, Araújo, também evitando posicionar a câmera na direção da vítima, teria colocado um objeto sobre o armário, em conduta também observada a partir das câmaras corporais. Em seguida, ele foi ao mesmo local e disse que havia um colete balístico por ali, conforme a denúncia. Os promotores afirmam que há indícios de que os policiais levaram o colete escondido nas roupas até lá.
Ainda segundo a denúncia, não houve a “devida preservação do local”, o que dificultou traçar a trajetória do disparo e a posição da vítima quando ela foi atingida pelo tiro de fuzil. O projétil que perfurou o corpo de Rogério não foi encontrado pela perícia.
O Ministério Público denunciou os policiais militares Eduardo de Freitas Araújo e Augusto Vinícius Santos de Oliveira por homicídio duplamente qualificado. Os agentes são acusados pela morte de Rogério Andrade de Jesus.
“O crime de homicídio consumado teve motivação torpe, porque os denunciados visaram vingar a morte do colega de Rota”, afirma a denúncia. “O homicídio consumado foi cometido por meio de recurso que dificultou a defesa da vítima, vez que ela estava desarmada e foi surpreendida pelo disparo efetuado através da porta entreaberta.”
Os familiares de Rogério pediram quebra de sigilo do processo. Conforme o Tribunal de Justiça de São Paulo, o sigilo nos autos foi revogado e em breve o andamento do processo poderá ser acessado na Consulta Processual, no portal do TJ-SP.
A Justiça de São Paulo já havia recebido a denúncia contra três homens acusados de participação na morte de Patrick dos Reis e pela tentativa de homicídio de outros agentes. Há outras 25 investigações em andamento sobre a Operação Escudo. O MP também acompanha as apurações administrativas abertas pela Polícia Militar.
Secretaria da Segurança Pública afirma analisar denúncia
A Secretaria da Segurança Pública afirmou que analisa a denúncia. “O caso está sendo apurado por meio de um inquérito policial instaurado pela Polícia Civil, por meio de Inquérito Policial Militar (IPM) e procedimento investigatório do Ministério Público, que decorre da força-tarefa constituída para acompanhar a Operação Escudo”, disse, em nota.
A pasta afirmou ainda que “entende que a promotoria exerce seu papel legal de apresentar uma denúncia-crime mesmo que baseada em indícios, que podem ou não ser confirmados ao final do processo legal”. “Contudo, é importante salientar que a própria força-tarefa do MP já se pronunciou contrária a outras denúncias contra policiais que participaram da mesma Operação Escudo”, disse.
A secretaria reforçou, por fim, que a existência da denúncia “não desqualifica a operação, que em 40 dias prendeu 976 suspeitos, dos quais 388 eram procurados da Justiça, apreendeu 119 armas e quase uma tonelada de drogas”. “Sobre afastamento dos policiais citados, a SSP vai cumprir a determinação judicial”, completou a pasta da Segurança Pública.