Ao menos em SP, como consequência tardia do plano diretor aprovado na gestão Haddad - e premiado internacionalmente -, vemos surgir edifícios multifuncionais nas principais avenidas e adjacências dos terminais de transporte público. São fruto de estímulos previstos no plano para dar mais qualidade ao resultado do jogo imobiliário de áreas computáveis, taxas de ocupação, limites de altura, setorizações e zoneamentos.
Teremos cada vez mais prédios desse tipo, misturando moradia com áreas de comércio, geralmente no térreo. Afinal, qual o sentido de uma grade imensa protegendo um jardim junto à calçada quando essa área nobre pode abrigar um espaço comercial? São chamadas fachadas ativas, por interagirem diretamente com os pedestres que entram e usam serviços, movimentando a economia e a vizinhança. Em muitos casos, as unidades comerciais nem são vendidas, mas alugadas. Geram renda para o edifício e baixam custos de manutenção dos condomínios.
A mesma novidade de sempre
Nada disso é novo. É herança da casa colonial brasileira na construção popular, vinculando casa e trabalho através da ideia de loja e sobreloja - na verdade, uma casa no andar de cima e a loja no andar de baixo, gerida como extensão comercial da vida doméstica do andar superior. Mais tarde, essa cultura passou a incorporar os edifícios modernistas, integrando salas comerciais à porção baixa dos edifícios residenciais. O Copan e o Conjunto Nacional são bons exemplos de radicalização desse modelo, onde se criaram charmosas e extensas galerias. No projeto original para o Edifício Cacique, que fica ali no fim da Avenida Paulista, antes de cruzar a Avenida 23 de Maio, um único hall conjugava elevadores residenciais, que levavam aos apartamentos, e uma bela escada em U conduzindo ao mezanino, ante-sala encantadora de seus dois andares comerciais. Na lateral do prédio, lojas voltadas para a rua; em frente à portaria, dois andares elegantemente envoltos por tijolos de vidro. Ali os arquitetos tiraram partido dos espaços comerciais para compor volumes distintos, ora inspirados pela arquitetura carioca, ora pelo edifício do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) de São Paulo, projeto de Rino Levi executado pelos idealizadores do Edifício Cacique, a construtora Marmo e Marmo.
Essa mescla de usos estimulou volumetrias e composições generosas, ajardinadas, com calçadas que invadiam o térreo. Ora surgiam lojas recuadas dos pilares de dupla altura propositalmente à mostra, ora as galerias criavam passagens comerciais comunicando as ruas adjacentes. Foi nosso ensaio de civilização tropical, animada pela expectativa de progresso técnico e pela poesia cantando a beleza das calçadas do Rio, então capital do país.
Um meio torto
Depois o medo virou estratégia de marketing. A violência tomou o poder das mãos que tocavam violão e criou a sociedade amedrontada, onde a especulação mostrou sua face mais horripilante, construindo pela lógica da escassez. Primeiro as janelas diminuíram, depois ficaram caolhas e perderam as venezianas que viravam abas para sombrear a casa. As crises econômicas esvaziaram as ruas, cada vez mais inseguras. A tradição dos edifícios de uso misto se perdeu e as cidades sofreram com isso. Comprovadamente, a multifuncionalidade gera oportunidades econômicas, vizinhanças mais gentis e maior segurança; o contrário, gera decadência, segregação hostil e aumento da criminalidade.
Curiosamente, essa transição conjugou justamente a perda de interesse pela vida na rua à diminuição das janelas, ao aumento das grades e à afirmação da TV como novo, luminoso e sagrado mirante de comunicação com o mundo. Mesmo que inconscientes, estamos o tempo todo construindo significados. Só depois é que eles viram tijolo e (pouco) vidro.
Novidade tradicional
Construída sobre doutrinas de empreendedores reconfigurando seus mindsets a cada dois minutos, esse anúncio de outra cidade é mera embalagem. Sem descuidar do culto aos recursos de segurança, que também não é de hoje, revisitando a morada colonial adensada seus muitos andares.
Pautado pelo xaveco da cidade-empresa e suas estratégias de lucro, o discurso de venda agora destaca que o prédio parou de dar despesa. Converteu-se em gerador de renda para ser reinvestida em manutenção e melhorias. Nesses edifícios, tudo é contratado à parte: churrasqueira, salão de festas, brinquedoteca, coworking, lavanderia, academia, espaço pet e o que mais o departamento de marketing das incorporadoras inventar. Surgem, assim, salões de festas exuberantes, às vezes alugados até para gente de fora e eventos corporativos, academias de franquias, mercadinhos digitais. E, desde que esse sistema onde você paga pelo que consome não seja uma extorsão disfarçada, ele realmente vale a pena, pois os moradores veem o retorno no caixa do condomínio.
Mas a vida e a cultura serão sempre maiores. Nossa natureza profunda não morre porque, quando vem uma novidade, ela logo se infiltra e resiste como vírus, fortalecida. O Gilberto Gil disse isso uma vez, de um jeito muito mais bonito. É o samba na bossa nova do Tom Jobim indo parar no violão tropicalista dele.
Em terras do Novo Mundo, nascidas assimilando e reinventando modos de viver, esses edifícios reincorporarão nossa essência plural e terão pepel importante na construção de uma experiência coletiva original e criativa - o sonho do Mangabeira Unger, a nova Roma de Darcy Ribeiro. Ali, no térreo de um prédio cinza e bege, comprando uma blusa para o filho ou caderno para a neta, tomando um café ou fazendo a barra da calça, pessoas comuns, diferentes umas das outras, se encontrarão para despercebidamente trocar experiências e fazer as coisas darem certo, como sempre fizeram.
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Dedico esse texto à recente regravação de "Gente", de Caetano Veloso, feita por Xande de Pilares. Esse samba, que é nosso, me encheu de orgulho. Emendou um fio no outro para mostrar um jeito de seguirmos como país: a partir dali, a partir de nós mesmos. Como num respiro que segue o mergulho, saímos de dentro do brasiu minúsculo dos últimos anos, duro, sem gingado, no qual estivemos vivendo e do qual amigos fugiram. Retomamos agora um Brasil de todas as caras, maiúsculo, cheio de suingue, do qual havíamos nos esquecido. Obrigado, Caetano, por nos ensinar sobre a capacidade de gostar.