Há 50 anos, o centro da cidade de São Paulo parava e assistia a cenas dramáticas que provavelmente nunca sairão da mente das vítimas e espectadores, que foram surpreendidos com um incêndio de grandes proporções no Edifício Joelma, onde funcionava o banco gaúcho Crefisul.
Com 181 mortos e mais de 300 feridos, o caso é um dos maiores incêndios em arranha-céu do mundo em número de mortes. A tragédia foi estopim para mudanças importantes nas leis da capital, que finalmente tiveram a prevenção contra esse tipo de fatalidade em seu escopo, e também para mostrar a importância do Corpo de Bombeiros e a necessidade de mais estrutura e postos de trabalho espalhados pela maior cidade da América Latina.
“Não havia movimento de prevenção na cidade”, conta Celso Toshito Matsuda, doutor em Comunicação e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), que foi vereador entre 1972 e 1985.
As páginas do Estadão contam em detalhes o desenrolar de um drama que durou um dia inteiro. “O incêndio do edifício Joelma, em 1974, é provavelmente a maior cobertura da história do ‘Estadão’”, afirma Edmundo Leite, coordenador do Acervo do jornal. “Para se ter uma ideia da grandiosidade, os créditos da cobertura contam 48 repórteres e 11 fotógrafos.”
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Por volta de 8h30, cerca de 750 funcionários já trabalhavam no prédio. No 12° andar, alguns operários instalavam um aparelho de ar condicionado. “De repente, o curto circuito, a fagulha, as chamas que atingem as cortinas novas”, revela a edição de 2 de fevereiro de 1974 do Estadão.
Os relatos colhidos pelo jornal durante a fatalidade são dramáticos. “Só sei que parecia um inferno, com fumaça por todo lado e gente gritando muito”, disse um sobrevivente. “Os corpos começaram a cair como moscas”, relatou um bombeiro. “O que aumentava o pavor era ver os corpos queimados e as pessoas se desesperando”, falou outra vítima.
Conforme o fogo se alastrava e as notícias sobre o incêndio chegavam aos moradores da cidade, as ruas que circundam a edificação foram se enchendo de milhares de pessoas em pânico, curiosas, na busca de familiares que trabalhavam ali ou que queriam ajudar.
Matsuda tinha o costume de chegar cedo à Câmara Municipal, que fica bem próxima ao Joelma, para tomar café em um bar. “Quando cheguei vi todo aquele tumulto. Todo mundo na rua, gritando. Eu falei assim: ‘o que é que aconteceu?’.”
“Vi as cenas mais dramáticas que pude assistir. Confesso que me abalou emocionalmente durante muito tempo… Pessoas pulando do prédio e se estatelando lá embaixo”, lembra.
“Aquela imagem daquelas pessoas no terraço chegando cada vez mais perto de querer se atirar, e, principalmente, nas janelas. Nas janelas daquele edifício existe uma espécie de um tabladinho. As pessoas pulavam e ficavam lá fora segurando no tabladinho. Só que o fogo se alastrava de tal maneira, e, evidentemente, as pessoas não aguentavam o calor. A gente percebia o desespero deles até o ponto de que fechavam os olhos e se atiravam.”
Incêndio no edifício Joelma
O resgate
Em pânico, as pessoas que estavam dentro do prédio se dividiam entre aquelas que corriam para os banheiros, as que se aproximavam e se dependuravam nas janelas ou as que subiam para o terraço, com a memória do resgate do incêndio no Edifício Andraus, também na região central da cidade, dois anos antes, que contou com helicópteros.
“Os primeiros helicópteros chegaram depois das 9h10, 9h15. Mas diferente do que aconteceu no edifício Andraus, no caso do Joelma, eles não conseguiam se aproximar, não conseguiam. estender uma corda ou pousar, (porque) a fumaça intensa o fogo ofereciam riscos aos pilotos”, conta Ubirajara Prestes, historiador e secretário de documentação da Câmara Municipal de SP.
Para que o resgate aéreo funcionasse, foi preciso transformar o heliponto do Palácio Anchieta, onde fica a Câmara Municipal, em um verdadeiro pronto-socorro. As vítimas que eram salvas do terraço pela aeronave da Força Aérea Brasileira (FAB) do Joelma eram içadas até ali, onde passavam por uma triagem.
Os que ainda conseguiam andar, eram levados ao solo até ambulâncias, os mais graves eram levados imediatamente a hospitais da cidade com ajuda de helicópteros menores.
Mais de oitenta pessoas foram resgatadas no terraço. Outras centenas pelo trabalho dos bombeiros que bravamente encararam o incêndio com ajuda de escadas Magirus que não alcançaram os andares mais altos em um prédio de 25 pisos e 94 metros. Mesmo assim, 181 pessoas morreram e mais de 300 ficaram feridas.
Os bombeiros
A operação de controle do fogo foi marcada por críticas das lideranças do Corpo dos Bombeiros da época, que se viam em uma situação semelhante à tragédia do Andraus, dois anos depois, sem sentir que suas demandas haviam sido respondidas.
Eles reclamavam de quadros de funcionários reduzidos, poucos postos de atendimento, o despreparo dos grandes edifícios para incêndios, problemas com a rede de água e da falta de material adequado em descompasso com as tecnologias já utilizadas por alguns países.
“No Joelma, não tínhamos escadas de segurança, por isso, as pessoas não tinham por onde descer e sair em segurança”, conta Ronaldo Aparecido Ribeiro, capitão do departamento de Segurança contra Incêndio da área de Legislação. A tarefa de combater o incêndio se tornou ainda mais difícil porque os hidrantes do prédio não funcionavam, e as mangueiras dos carros dos bombeiros não tinham pressão suficiente para alcançar todos os andares.
“Foi um desafio muito grande para a capacidade do Corpo de Bombeiros, mas também de todas as instituições públicas que nos auxiliaram na época nesse combate”, resume Ribeiro.
As leis
A cidade de São Paulo crescia, e crescia de forma acelerada, tanto em número de pessoas quanto de edificações. Mas o Código de Obras pouco ou nada falava sobre prevenção de incêndios.
“Uma das coisas que chama atenção é o contexto político que o Brasil vivia. Era o período do presidente Emílio Garrastazu Médici, e era a época em que se falava sobre progresso, sobre o crescimento da cidade, o crescimento industrial do Brasil”, lembra Prestes.
“(Mas) Já havia no começo dos anos 1970, discussões em São Paulo sobre os problemas do crescimento acelerado da cidade. Uma cidade que se orgulhava do seu crescimento populacional urbano, dos seus grandes prédios, que se espalhavam por vários lugares. Havia uma tendência a se refletir sobre as dificuldades que esse grande crescimento provocava desde as desigualdades, do acesso a serviços e da violência.”
“O incêndio do Joelma também foi uma forma de se refletir sobre as dificuldades do crescimento acelerado das grandes metrópoles.”
O incêndio no Edifício Andraus, em 24 de fevereiro de 1972, já indicava que as regras precisavam ser revisitadas. A Prefeitura prometeu enviar a revisão do Código de Obras para deliberação da Câmara, mas isso ficou só na promessa.
“No mesmo dia do incêndio (do Joelma), à noite, o novo prefeito Miguel Colasuonno reuniu-se com técnicos, com o comando do Corpo de Bombeiros, e começaram então a redigir um documento que saiu sete dias depois”, fala Prestes.
“Foi um decreto falando sobre prevenção a incêndios. Mesmo assim, o código de obras precisaria ser reformulado, esse documento que vinha sendo debatido já há alguns anos. Eles trouxeram esse documento novamente. Foi apresentado finalmente à Câmara, onde houve muitas discussões.”
“Esse documento foi intensamente debatido. Se tornou um projeto de lei que se tornou uma lei municipal em 1975, sendo esse documento o novo código de obras. E ele finalmente incorporava muitas medidas de prevenção a incêndio e de fiscalização das edificações”, finaliza Prestes.
“Foi feito uma legislação rapidamente, determinando que a partir daquela daquela época nenhum prédio seria aprovado sem recurso de escadas de emergência e aqueles que já estivessem construídos e não tivessem esse tipo de recurso, teriam que encontrar um meio ou de construir externamente ou se ligar a um outro edifício que tivesse, fazendo pontes, conexões”, lembra Matsuda.
Gradativamente, os bombeiros também conseguiam expandir os postos de trabalho e o efetivo de funcionários. Enquanto isso, tocavam estudos e se especializavam neste tema pouco falado na época, a prevenção.
“Desenvolvemos a partir daí os nossos estudos e capacitação na área de prevenção contra incêndio, que, hoje, consideramos uma das áreas mais importantes da segurança contra incêndio. Quando você previne, não tem o resultado final que são as tragédias”, diz Ribeiro.
“Nós decidimos estudar a importância da estrutura da edificação para que se suportar um incêndio e poder proteger as pessoas mesmo durante o incêndio. Foi a partir daí que surgiram os conceitos de saída de emergência e das escadas de segurança contra incêndio”, continua. Tudo isso resultou na primeira legislação dos bombeiros, o decreto 20.811/1983.
Da década de 1980 para cá, esse decreto foi atualizado várias vezes e criou recursos como o auto de vistoria (AVCB), que estabelece parâmetros para abertura de edificações que recebem um número considerável de pessoas; além de permitir que o corpo de bombeiros fiscalize se as normas de segurança estão sendo cumpridas adequadamente.
“Quando você tem uma edificação, ela vai requerer níveis de segurança de acordo com o número de ocupação, da metragem dela, da altura da edificação e também de acordo com a carga incêndio.”
“Temos um estudo de doutorado, de oficiais do Corpo de Bombeiros, que conseguimos verificar que apenas 2% das edificações com auto de vistoria sofreram incêndio”, afirma Ribeiro.
“No ano passado, (tivemos) 500 mil ocorrências de incêndio e salvamento e resgate atendidas. Dessas, 50 mil ocorrências foram de incêndio, e apenas 2% nas edificações que estão protegidas com o sistema de segurança contra incêndio e vistoriadas.”
A lição
O recado que o Joelma deu e que ecoa na cabeça das pessoas que presenciaram o incêndio e das instituições que participaram do resgate, é a necessidade de estar atento sempre e preparar-se para impedir que novas tragédias aconteçam.
“A segurança é temporal e relativa. Temos que estar antenados nas coisas que estão acontecendo para nós evoluirmos. A legislação de segurança contra incêndio não pode ser imutável. Nós temos tecnologias acontecendo, métodos construtivos novos acontecendo, então nós temos que verificar os riscos que importam para modificarmos essa legislação e nos adaptarmos àquela nova situação para propiciar a segurança para os indivíduos”, afirma Gustavo Domingos Soares da Silva, chefe da Seção de Assuntos Institucionais do gabinete do comandante do Corpo de Bombeiros.
“Nós estamos vivendo uma época em que o caos, os dramas que podem ocorrer dentro de uma cidade começam a mudar também de perfil. Os incêndios hoje não são as causas, são quase que consequências, por exemplo, de uma uma enchente, das mudanças climáticas, de ventos, de ventanias e de tufões”, diz Matsuda. “A cidade tem que ser resiliente.”