Correndo atrás do vento

Opinião|Linhas de expressão


Por Luiz Henrique Matos

Ao lado do açougue onde um velho desossava metade de um boi na calçada, ficava a loja em que o homem que torrava cafés estava encostado na porta, vestindo seu avental jeans e observando o movimento de turistas na rua. Estávamos em uma ilha com pouco mais de cinco mil habitantes e só me tornei alvo do seu olhar negligente quando entrei na loja atraído pelo cheiro agradável e pelo saco de juta de sessenta quilos escrito "Café do Brasil" prostrado na entrada e a julgar pelo estado, viajou para aquele lugar décadas antes de mim. Pelo período em que as meninas perambularam por uma loja de acessórios coloridos dispostos em corredores infinitos, eu me distraí naquele ambiente monocromático, observando a máquina de torra e moagem, os recipientes com a diversidade de grãos e as ferramentas empoeiradas.

Sozinho e socialmente desconfortável à medida que era seguido pelo dono do estabelecimento, fiz o que sempre faço nessas horas: piorei a situação. Desembestei a fazer perguntas para as quais eu não tinha interesse em saber a resposta, mas me pareceu uma medida de sobrevivência útil no momento. Até que uma saída melhor me ocorreu: comprar. Vinte minutos depois, saí dali com um pacote de meio quilo de grãos nobres de café forte e encorpado - foi o que ele disse e me fez acreditar que anotou, em seu idioma, na etiqueta que colou no lacre que selou na hora - me dando conta então de que aquela embalagem viajaria comigo pelos próximos vinte dias, a milhares de quilômetros da minha própria cafeteira, onde Manú prepara todas as manhãs nosso café nada forte, nem encorpado, mas com habitual nobreza e conversas nada constrangidas.

Sentei-me num banco na rua para esperar as meninas. O homem voltou para a porta da loja. O açougueiro seguia com sua carnificina, agora ajudado por um menino. Enquanto estive ali, ninguém entrou para comprar café ou carne.

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Viver em uma pequena ilha, crescer em uma ilha, os limites tão claramente definidos, as linhas de fronteiras perfeitamente visíveis, o mar. Gastar ali os dias, talvez a vida toda, cortando bifes, vendendo presilhas ou torrando cafés importados de lugares cujos pés nunca tocaram. Tornar-se uma ilha.

O caderno onde eu faria anotações sobre as experiências e impressões de viagem não tem uma frase escrita por mim. Eu o carrego na mochila, mas tão logo o ponho sobre a mesa, é surrupiado por alguma mãozinha, cujo esforço é confrontado por outra e elas brigam pelo caderno, repartem folhas, me pedem a caneta "eu primeiro! Eu pedi primeiro!" e eu tiro da bolsa duas canetas porque já era claro, desde sempre, que essa cena se repetiria, como se repete, cada vez que papeis e canetas aparecem sobre a mesa de qualquer lugar onde estejamos.

Nina agora desenha com traços cada vez mais precisos, bastante artísticos e poéticos e já se expressa com uma identidade bem definida. Cecília observa e tenta imitar a irmã mais velha, mas embora procure por um espelho, ela acaba fazendo do seu jeito, com cores, histórias e riscos que desrespeitam limites que os anos impõem e, especialmente por isso, também são tão belos.

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E são elas que registram em meu pequeno bloco, a seu modo, as impressões do que viram. Seus rastros em meus cadernos, lembranças de destinos por onde passamos, que se somam às notas mentais que preservo dessas andanças na esperança de que a memória preserve as imagens que devem permanecer. Porque eu não poderia escrever nada melhor do que isso que vejo e guardo. As linhas para onde volto quando desejo viajar no tempo.

Linhas de expressão. No espelho e, sobretudo, nas fotos em que me vi. Vejo linhas que não existiam antes e agora marcam meu rosto. Fios grisalhos ocupando uma área cada vez maior de cabelo e barba. O rosto curvado, a coluna míope, a visão que me trai, uma certa confusão com as palavras... E ao redor disso, as meninas, também mais crescidas e mudando a fisionomia. Consegui notar - a contragosto, registrem - o avanço da idade de uma forma que no dia-a-dia, entre um pão com manteiga pela manhã e a hora da televisão à noite, não dá para assimilar. Seguimos adiante, uma dor no joelho aqui, um frasco com comprimidos ali, o evitar de café depois das seis acolá e permanecemos crentes de que é pouco, só um pouco de dias a mais que se acumulam. Por isso, quando viajamos nas férias e passamos algumas semanas confinados juntos nessa época do ano, é como se existisse um recorte na marcação do tempo que funciona como a janela de espaço temporal em que observamo-nos. O fio da existência, sutil, nos arrasta.

O fio da meada se perde, de repente, e sem que um aviso prévio seja dado, a cápsula em que habitávamos e nos fazia acreditar que pertencíamos a um grupo geracional em movimento, explode. E notamos que esse degrau que um dia duramente descobrimos existir entre nós e nossos pais também se apresenta, acachapante, entre nós e nossas filhas.

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Falando neles, meus pais estavam em nossa casa há algumas semanas e Cecília veio do quarto para a sala. "Como ela está grande! Até assustei quando vi", minha mãe comentou. "Às vezes", respondi, "escuto os passos de uma delas vindo pelo corredor e imagino que a criança que vai passar pela porta é menor do que a que aparece. Na minha mente, elas sempre são muito menores do que já estão". Meu pai pousou sua xícara sobre a mesa e olhando para baixo, deu um sorriso discreto e comentou "isso nunca muda". Esperou um instante - ele sempre espera mais um instante - e emendou: "não importa quanto tempo passe, a gente só vê as crianças. O olhar para os filhos continua sendo assim".

Em algumas manhãs, quando saio para correr, noto à distância um casal vindo no sentido contrário. A miopia me impede de enxergar com clareza, mas pelo movimento dos braços, o jeito de caminhar, sei que são meus pais fazendo sua caminhada matutina. Eu queria que soubessem que em certos dias eu vejo aquele casal de idosos com seus passos curtos e dentro de mim também bate o sentimento do menino querendo colo. Não importam os caminhos da vida, como os fios que minha mãe tece com agulhas nossas linhas se cruzam emaranhadas.

"Nenhum homem é uma ilha", escreveu John Donne, que nasceu e morreu em uma, nas suas meditações. Pensava nisso enquanto viajávamos entre pedaços de terra pseudo-flutuantes naquelas férias. Cruzando o mar dentro de um barco enorme durante uma noite inteira e, lá fora, era água, água, céu, água, céu, o barco, uns pássaros, outros barcos, muita água passando em movimento e eu esticado na cama sem conseguir dormir. Caramba, como os pássaros chegam até aqui? Viajar num barco é estar em estado completo de impermanência. Entre uma cidade e outra, seguíamos. Navegar a vida não é nada preciso. Há esses portos novos onde atracamos e há o lugar a que pertencemos.

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Durante aqueles dias, nossas mãos tocaram monumentos e artefatos que foram criados há milhares de anos. Caminhávamos por aqueles lugares, cercados de câmeras capturando fotos que habitariam publicações que sobrevivem por míseras horas num perfil de internet. O passado que sondávamos por essas frestas e fragmentos da história era mais intenso que o presente efêmero em que estávamos. O que é o tempo, o que é velhice, o que determina esse espaço entre começo e fim e o que significa o passar dos dias diante dessa imensidão? Frutos de mãos como as nossas, trançando fios e linhas. A impermanência do homem que permanece em suas obras.

"O homem nasce com o anseio pela eternidade em seu coração", disse um rei no fim de sua vida. Essa eternidade que nos ocupa, plantada em nós pelo Eterno em quem habitamos, o fruto que somos e os frutos que damos.

É preciso fazer do tempo um amigo, foi um conselho que recebi e teimo em não acatar. Em geral, é justamente o tempo meu algoz e inseparável companhia. Jamais um amigo. Nele navego e me refestelo nas lembranças que me compõem. Com ele também luto, luto e sempre perco a batalha, na expectativa de que suas águas fluam de forma mais serena e possam ser navegadas, com o desejo de que possamos vivenciar melhor os dias, nossas filhas, no espaço miúdo da rotina caseira em que habitamos e que tanto nos preenche.

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Nenhum homem é uma filha, o poeta talvez dissesse se fosse testemunha da minha nostalgia. "Mas, e filhas?", eu iria retrucar, só de teimosia.

Volto e volto nessas páginas, reviro lembranças e cadernos com os traços que elas deixam por aqui para compor nossa história. É um quadro, fico pensando. A imagem que capturamos convivendo diariamente, microscópicamente, abrindo os sentidos para experiências novas enquanto nos unimos nessas viagens. Rastros de eternidade. Olho pela janela, vejo as fotos que registramos, penso nas meninas em cada lugar que desembarcamos como se as novas paisagens que contemplamos nessas caminhadas fossem a moldura que se move em torno do que atrai meu olhar como ímã: elas, sempre ali, que permanecem como o único ponto de continuidade enquanto tudo ao redor se movimenta.

Os sinos da igreja tocaram para nos lembrar que era hora de partir. O sol se punha sobre o mar no horizonte. Terminamos nosso jantar apressados e corremos para a balsa que nos levaria embora. Manú dormiu aconchegada em meu ombro enquanto navegávamos. Por sorte, há coisas que não mudam.

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Viver em uma ilha.

John Donne segue: "Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é um partícula do continente, uma parte da terra. Se um pequeno torrão carregado pelo mar deixa menor a Europa, como se todo um promontório fosse, ou a herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti".

Ainda não abri o pacote de café que comprei naquela manhã. De vez em quando, eu pego a embalagem no armário, aperto um pouco para sentir o cheiro dos grãos ali dentro e fico conferindo os traços da caligrafia do homem e lembrando dos dias em que fingimos suspender a passagem do tempo só para poder contemplá-lo.

Me distraio enquanto meu café esfria na xícara sobre a mesa e Manu termina de preparar a refeição que as meninas comem apressadas antes de irem para a escola. Desde que voltamos, entramos novamente na cápsula cotidiana que mascara as linhas de expressão e a passagem dos dias. A hora se impõe. Elas saem apressadas, lanches nas mãos, a bagagem cheia de cadernos e folhas em branco. Linhas e linhas, pela vida afora. Eternidade adentro.

Ao lado do açougue onde um velho desossava metade de um boi na calçada, ficava a loja em que o homem que torrava cafés estava encostado na porta, vestindo seu avental jeans e observando o movimento de turistas na rua. Estávamos em uma ilha com pouco mais de cinco mil habitantes e só me tornei alvo do seu olhar negligente quando entrei na loja atraído pelo cheiro agradável e pelo saco de juta de sessenta quilos escrito "Café do Brasil" prostrado na entrada e a julgar pelo estado, viajou para aquele lugar décadas antes de mim. Pelo período em que as meninas perambularam por uma loja de acessórios coloridos dispostos em corredores infinitos, eu me distraí naquele ambiente monocromático, observando a máquina de torra e moagem, os recipientes com a diversidade de grãos e as ferramentas empoeiradas.

Sozinho e socialmente desconfortável à medida que era seguido pelo dono do estabelecimento, fiz o que sempre faço nessas horas: piorei a situação. Desembestei a fazer perguntas para as quais eu não tinha interesse em saber a resposta, mas me pareceu uma medida de sobrevivência útil no momento. Até que uma saída melhor me ocorreu: comprar. Vinte minutos depois, saí dali com um pacote de meio quilo de grãos nobres de café forte e encorpado - foi o que ele disse e me fez acreditar que anotou, em seu idioma, na etiqueta que colou no lacre que selou na hora - me dando conta então de que aquela embalagem viajaria comigo pelos próximos vinte dias, a milhares de quilômetros da minha própria cafeteira, onde Manú prepara todas as manhãs nosso café nada forte, nem encorpado, mas com habitual nobreza e conversas nada constrangidas.

Sentei-me num banco na rua para esperar as meninas. O homem voltou para a porta da loja. O açougueiro seguia com sua carnificina, agora ajudado por um menino. Enquanto estive ali, ninguém entrou para comprar café ou carne.

Viver em uma pequena ilha, crescer em uma ilha, os limites tão claramente definidos, as linhas de fronteiras perfeitamente visíveis, o mar. Gastar ali os dias, talvez a vida toda, cortando bifes, vendendo presilhas ou torrando cafés importados de lugares cujos pés nunca tocaram. Tornar-se uma ilha.

O caderno onde eu faria anotações sobre as experiências e impressões de viagem não tem uma frase escrita por mim. Eu o carrego na mochila, mas tão logo o ponho sobre a mesa, é surrupiado por alguma mãozinha, cujo esforço é confrontado por outra e elas brigam pelo caderno, repartem folhas, me pedem a caneta "eu primeiro! Eu pedi primeiro!" e eu tiro da bolsa duas canetas porque já era claro, desde sempre, que essa cena se repetiria, como se repete, cada vez que papeis e canetas aparecem sobre a mesa de qualquer lugar onde estejamos.

Nina agora desenha com traços cada vez mais precisos, bastante artísticos e poéticos e já se expressa com uma identidade bem definida. Cecília observa e tenta imitar a irmã mais velha, mas embora procure por um espelho, ela acaba fazendo do seu jeito, com cores, histórias e riscos que desrespeitam limites que os anos impõem e, especialmente por isso, também são tão belos.

E são elas que registram em meu pequeno bloco, a seu modo, as impressões do que viram. Seus rastros em meus cadernos, lembranças de destinos por onde passamos, que se somam às notas mentais que preservo dessas andanças na esperança de que a memória preserve as imagens que devem permanecer. Porque eu não poderia escrever nada melhor do que isso que vejo e guardo. As linhas para onde volto quando desejo viajar no tempo.

Linhas de expressão. No espelho e, sobretudo, nas fotos em que me vi. Vejo linhas que não existiam antes e agora marcam meu rosto. Fios grisalhos ocupando uma área cada vez maior de cabelo e barba. O rosto curvado, a coluna míope, a visão que me trai, uma certa confusão com as palavras... E ao redor disso, as meninas, também mais crescidas e mudando a fisionomia. Consegui notar - a contragosto, registrem - o avanço da idade de uma forma que no dia-a-dia, entre um pão com manteiga pela manhã e a hora da televisão à noite, não dá para assimilar. Seguimos adiante, uma dor no joelho aqui, um frasco com comprimidos ali, o evitar de café depois das seis acolá e permanecemos crentes de que é pouco, só um pouco de dias a mais que se acumulam. Por isso, quando viajamos nas férias e passamos algumas semanas confinados juntos nessa época do ano, é como se existisse um recorte na marcação do tempo que funciona como a janela de espaço temporal em que observamo-nos. O fio da existência, sutil, nos arrasta.

O fio da meada se perde, de repente, e sem que um aviso prévio seja dado, a cápsula em que habitávamos e nos fazia acreditar que pertencíamos a um grupo geracional em movimento, explode. E notamos que esse degrau que um dia duramente descobrimos existir entre nós e nossos pais também se apresenta, acachapante, entre nós e nossas filhas.

Falando neles, meus pais estavam em nossa casa há algumas semanas e Cecília veio do quarto para a sala. "Como ela está grande! Até assustei quando vi", minha mãe comentou. "Às vezes", respondi, "escuto os passos de uma delas vindo pelo corredor e imagino que a criança que vai passar pela porta é menor do que a que aparece. Na minha mente, elas sempre são muito menores do que já estão". Meu pai pousou sua xícara sobre a mesa e olhando para baixo, deu um sorriso discreto e comentou "isso nunca muda". Esperou um instante - ele sempre espera mais um instante - e emendou: "não importa quanto tempo passe, a gente só vê as crianças. O olhar para os filhos continua sendo assim".

Em algumas manhãs, quando saio para correr, noto à distância um casal vindo no sentido contrário. A miopia me impede de enxergar com clareza, mas pelo movimento dos braços, o jeito de caminhar, sei que são meus pais fazendo sua caminhada matutina. Eu queria que soubessem que em certos dias eu vejo aquele casal de idosos com seus passos curtos e dentro de mim também bate o sentimento do menino querendo colo. Não importam os caminhos da vida, como os fios que minha mãe tece com agulhas nossas linhas se cruzam emaranhadas.

"Nenhum homem é uma ilha", escreveu John Donne, que nasceu e morreu em uma, nas suas meditações. Pensava nisso enquanto viajávamos entre pedaços de terra pseudo-flutuantes naquelas férias. Cruzando o mar dentro de um barco enorme durante uma noite inteira e, lá fora, era água, água, céu, água, céu, o barco, uns pássaros, outros barcos, muita água passando em movimento e eu esticado na cama sem conseguir dormir. Caramba, como os pássaros chegam até aqui? Viajar num barco é estar em estado completo de impermanência. Entre uma cidade e outra, seguíamos. Navegar a vida não é nada preciso. Há esses portos novos onde atracamos e há o lugar a que pertencemos.

Durante aqueles dias, nossas mãos tocaram monumentos e artefatos que foram criados há milhares de anos. Caminhávamos por aqueles lugares, cercados de câmeras capturando fotos que habitariam publicações que sobrevivem por míseras horas num perfil de internet. O passado que sondávamos por essas frestas e fragmentos da história era mais intenso que o presente efêmero em que estávamos. O que é o tempo, o que é velhice, o que determina esse espaço entre começo e fim e o que significa o passar dos dias diante dessa imensidão? Frutos de mãos como as nossas, trançando fios e linhas. A impermanência do homem que permanece em suas obras.

"O homem nasce com o anseio pela eternidade em seu coração", disse um rei no fim de sua vida. Essa eternidade que nos ocupa, plantada em nós pelo Eterno em quem habitamos, o fruto que somos e os frutos que damos.

É preciso fazer do tempo um amigo, foi um conselho que recebi e teimo em não acatar. Em geral, é justamente o tempo meu algoz e inseparável companhia. Jamais um amigo. Nele navego e me refestelo nas lembranças que me compõem. Com ele também luto, luto e sempre perco a batalha, na expectativa de que suas águas fluam de forma mais serena e possam ser navegadas, com o desejo de que possamos vivenciar melhor os dias, nossas filhas, no espaço miúdo da rotina caseira em que habitamos e que tanto nos preenche.

Nenhum homem é uma filha, o poeta talvez dissesse se fosse testemunha da minha nostalgia. "Mas, e filhas?", eu iria retrucar, só de teimosia.

Volto e volto nessas páginas, reviro lembranças e cadernos com os traços que elas deixam por aqui para compor nossa história. É um quadro, fico pensando. A imagem que capturamos convivendo diariamente, microscópicamente, abrindo os sentidos para experiências novas enquanto nos unimos nessas viagens. Rastros de eternidade. Olho pela janela, vejo as fotos que registramos, penso nas meninas em cada lugar que desembarcamos como se as novas paisagens que contemplamos nessas caminhadas fossem a moldura que se move em torno do que atrai meu olhar como ímã: elas, sempre ali, que permanecem como o único ponto de continuidade enquanto tudo ao redor se movimenta.

Os sinos da igreja tocaram para nos lembrar que era hora de partir. O sol se punha sobre o mar no horizonte. Terminamos nosso jantar apressados e corremos para a balsa que nos levaria embora. Manú dormiu aconchegada em meu ombro enquanto navegávamos. Por sorte, há coisas que não mudam.

Viver em uma ilha.

John Donne segue: "Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é um partícula do continente, uma parte da terra. Se um pequeno torrão carregado pelo mar deixa menor a Europa, como se todo um promontório fosse, ou a herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti".

Ainda não abri o pacote de café que comprei naquela manhã. De vez em quando, eu pego a embalagem no armário, aperto um pouco para sentir o cheiro dos grãos ali dentro e fico conferindo os traços da caligrafia do homem e lembrando dos dias em que fingimos suspender a passagem do tempo só para poder contemplá-lo.

Me distraio enquanto meu café esfria na xícara sobre a mesa e Manu termina de preparar a refeição que as meninas comem apressadas antes de irem para a escola. Desde que voltamos, entramos novamente na cápsula cotidiana que mascara as linhas de expressão e a passagem dos dias. A hora se impõe. Elas saem apressadas, lanches nas mãos, a bagagem cheia de cadernos e folhas em branco. Linhas e linhas, pela vida afora. Eternidade adentro.

Ao lado do açougue onde um velho desossava metade de um boi na calçada, ficava a loja em que o homem que torrava cafés estava encostado na porta, vestindo seu avental jeans e observando o movimento de turistas na rua. Estávamos em uma ilha com pouco mais de cinco mil habitantes e só me tornei alvo do seu olhar negligente quando entrei na loja atraído pelo cheiro agradável e pelo saco de juta de sessenta quilos escrito "Café do Brasil" prostrado na entrada e a julgar pelo estado, viajou para aquele lugar décadas antes de mim. Pelo período em que as meninas perambularam por uma loja de acessórios coloridos dispostos em corredores infinitos, eu me distraí naquele ambiente monocromático, observando a máquina de torra e moagem, os recipientes com a diversidade de grãos e as ferramentas empoeiradas.

Sozinho e socialmente desconfortável à medida que era seguido pelo dono do estabelecimento, fiz o que sempre faço nessas horas: piorei a situação. Desembestei a fazer perguntas para as quais eu não tinha interesse em saber a resposta, mas me pareceu uma medida de sobrevivência útil no momento. Até que uma saída melhor me ocorreu: comprar. Vinte minutos depois, saí dali com um pacote de meio quilo de grãos nobres de café forte e encorpado - foi o que ele disse e me fez acreditar que anotou, em seu idioma, na etiqueta que colou no lacre que selou na hora - me dando conta então de que aquela embalagem viajaria comigo pelos próximos vinte dias, a milhares de quilômetros da minha própria cafeteira, onde Manú prepara todas as manhãs nosso café nada forte, nem encorpado, mas com habitual nobreza e conversas nada constrangidas.

Sentei-me num banco na rua para esperar as meninas. O homem voltou para a porta da loja. O açougueiro seguia com sua carnificina, agora ajudado por um menino. Enquanto estive ali, ninguém entrou para comprar café ou carne.

Viver em uma pequena ilha, crescer em uma ilha, os limites tão claramente definidos, as linhas de fronteiras perfeitamente visíveis, o mar. Gastar ali os dias, talvez a vida toda, cortando bifes, vendendo presilhas ou torrando cafés importados de lugares cujos pés nunca tocaram. Tornar-se uma ilha.

O caderno onde eu faria anotações sobre as experiências e impressões de viagem não tem uma frase escrita por mim. Eu o carrego na mochila, mas tão logo o ponho sobre a mesa, é surrupiado por alguma mãozinha, cujo esforço é confrontado por outra e elas brigam pelo caderno, repartem folhas, me pedem a caneta "eu primeiro! Eu pedi primeiro!" e eu tiro da bolsa duas canetas porque já era claro, desde sempre, que essa cena se repetiria, como se repete, cada vez que papeis e canetas aparecem sobre a mesa de qualquer lugar onde estejamos.

Nina agora desenha com traços cada vez mais precisos, bastante artísticos e poéticos e já se expressa com uma identidade bem definida. Cecília observa e tenta imitar a irmã mais velha, mas embora procure por um espelho, ela acaba fazendo do seu jeito, com cores, histórias e riscos que desrespeitam limites que os anos impõem e, especialmente por isso, também são tão belos.

E são elas que registram em meu pequeno bloco, a seu modo, as impressões do que viram. Seus rastros em meus cadernos, lembranças de destinos por onde passamos, que se somam às notas mentais que preservo dessas andanças na esperança de que a memória preserve as imagens que devem permanecer. Porque eu não poderia escrever nada melhor do que isso que vejo e guardo. As linhas para onde volto quando desejo viajar no tempo.

Linhas de expressão. No espelho e, sobretudo, nas fotos em que me vi. Vejo linhas que não existiam antes e agora marcam meu rosto. Fios grisalhos ocupando uma área cada vez maior de cabelo e barba. O rosto curvado, a coluna míope, a visão que me trai, uma certa confusão com as palavras... E ao redor disso, as meninas, também mais crescidas e mudando a fisionomia. Consegui notar - a contragosto, registrem - o avanço da idade de uma forma que no dia-a-dia, entre um pão com manteiga pela manhã e a hora da televisão à noite, não dá para assimilar. Seguimos adiante, uma dor no joelho aqui, um frasco com comprimidos ali, o evitar de café depois das seis acolá e permanecemos crentes de que é pouco, só um pouco de dias a mais que se acumulam. Por isso, quando viajamos nas férias e passamos algumas semanas confinados juntos nessa época do ano, é como se existisse um recorte na marcação do tempo que funciona como a janela de espaço temporal em que observamo-nos. O fio da existência, sutil, nos arrasta.

O fio da meada se perde, de repente, e sem que um aviso prévio seja dado, a cápsula em que habitávamos e nos fazia acreditar que pertencíamos a um grupo geracional em movimento, explode. E notamos que esse degrau que um dia duramente descobrimos existir entre nós e nossos pais também se apresenta, acachapante, entre nós e nossas filhas.

Falando neles, meus pais estavam em nossa casa há algumas semanas e Cecília veio do quarto para a sala. "Como ela está grande! Até assustei quando vi", minha mãe comentou. "Às vezes", respondi, "escuto os passos de uma delas vindo pelo corredor e imagino que a criança que vai passar pela porta é menor do que a que aparece. Na minha mente, elas sempre são muito menores do que já estão". Meu pai pousou sua xícara sobre a mesa e olhando para baixo, deu um sorriso discreto e comentou "isso nunca muda". Esperou um instante - ele sempre espera mais um instante - e emendou: "não importa quanto tempo passe, a gente só vê as crianças. O olhar para os filhos continua sendo assim".

Em algumas manhãs, quando saio para correr, noto à distância um casal vindo no sentido contrário. A miopia me impede de enxergar com clareza, mas pelo movimento dos braços, o jeito de caminhar, sei que são meus pais fazendo sua caminhada matutina. Eu queria que soubessem que em certos dias eu vejo aquele casal de idosos com seus passos curtos e dentro de mim também bate o sentimento do menino querendo colo. Não importam os caminhos da vida, como os fios que minha mãe tece com agulhas nossas linhas se cruzam emaranhadas.

"Nenhum homem é uma ilha", escreveu John Donne, que nasceu e morreu em uma, nas suas meditações. Pensava nisso enquanto viajávamos entre pedaços de terra pseudo-flutuantes naquelas férias. Cruzando o mar dentro de um barco enorme durante uma noite inteira e, lá fora, era água, água, céu, água, céu, o barco, uns pássaros, outros barcos, muita água passando em movimento e eu esticado na cama sem conseguir dormir. Caramba, como os pássaros chegam até aqui? Viajar num barco é estar em estado completo de impermanência. Entre uma cidade e outra, seguíamos. Navegar a vida não é nada preciso. Há esses portos novos onde atracamos e há o lugar a que pertencemos.

Durante aqueles dias, nossas mãos tocaram monumentos e artefatos que foram criados há milhares de anos. Caminhávamos por aqueles lugares, cercados de câmeras capturando fotos que habitariam publicações que sobrevivem por míseras horas num perfil de internet. O passado que sondávamos por essas frestas e fragmentos da história era mais intenso que o presente efêmero em que estávamos. O que é o tempo, o que é velhice, o que determina esse espaço entre começo e fim e o que significa o passar dos dias diante dessa imensidão? Frutos de mãos como as nossas, trançando fios e linhas. A impermanência do homem que permanece em suas obras.

"O homem nasce com o anseio pela eternidade em seu coração", disse um rei no fim de sua vida. Essa eternidade que nos ocupa, plantada em nós pelo Eterno em quem habitamos, o fruto que somos e os frutos que damos.

É preciso fazer do tempo um amigo, foi um conselho que recebi e teimo em não acatar. Em geral, é justamente o tempo meu algoz e inseparável companhia. Jamais um amigo. Nele navego e me refestelo nas lembranças que me compõem. Com ele também luto, luto e sempre perco a batalha, na expectativa de que suas águas fluam de forma mais serena e possam ser navegadas, com o desejo de que possamos vivenciar melhor os dias, nossas filhas, no espaço miúdo da rotina caseira em que habitamos e que tanto nos preenche.

Nenhum homem é uma filha, o poeta talvez dissesse se fosse testemunha da minha nostalgia. "Mas, e filhas?", eu iria retrucar, só de teimosia.

Volto e volto nessas páginas, reviro lembranças e cadernos com os traços que elas deixam por aqui para compor nossa história. É um quadro, fico pensando. A imagem que capturamos convivendo diariamente, microscópicamente, abrindo os sentidos para experiências novas enquanto nos unimos nessas viagens. Rastros de eternidade. Olho pela janela, vejo as fotos que registramos, penso nas meninas em cada lugar que desembarcamos como se as novas paisagens que contemplamos nessas caminhadas fossem a moldura que se move em torno do que atrai meu olhar como ímã: elas, sempre ali, que permanecem como o único ponto de continuidade enquanto tudo ao redor se movimenta.

Os sinos da igreja tocaram para nos lembrar que era hora de partir. O sol se punha sobre o mar no horizonte. Terminamos nosso jantar apressados e corremos para a balsa que nos levaria embora. Manú dormiu aconchegada em meu ombro enquanto navegávamos. Por sorte, há coisas que não mudam.

Viver em uma ilha.

John Donne segue: "Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é um partícula do continente, uma parte da terra. Se um pequeno torrão carregado pelo mar deixa menor a Europa, como se todo um promontório fosse, ou a herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti".

Ainda não abri o pacote de café que comprei naquela manhã. De vez em quando, eu pego a embalagem no armário, aperto um pouco para sentir o cheiro dos grãos ali dentro e fico conferindo os traços da caligrafia do homem e lembrando dos dias em que fingimos suspender a passagem do tempo só para poder contemplá-lo.

Me distraio enquanto meu café esfria na xícara sobre a mesa e Manu termina de preparar a refeição que as meninas comem apressadas antes de irem para a escola. Desde que voltamos, entramos novamente na cápsula cotidiana que mascara as linhas de expressão e a passagem dos dias. A hora se impõe. Elas saem apressadas, lanches nas mãos, a bagagem cheia de cadernos e folhas em branco. Linhas e linhas, pela vida afora. Eternidade adentro.

Ao lado do açougue onde um velho desossava metade de um boi na calçada, ficava a loja em que o homem que torrava cafés estava encostado na porta, vestindo seu avental jeans e observando o movimento de turistas na rua. Estávamos em uma ilha com pouco mais de cinco mil habitantes e só me tornei alvo do seu olhar negligente quando entrei na loja atraído pelo cheiro agradável e pelo saco de juta de sessenta quilos escrito "Café do Brasil" prostrado na entrada e a julgar pelo estado, viajou para aquele lugar décadas antes de mim. Pelo período em que as meninas perambularam por uma loja de acessórios coloridos dispostos em corredores infinitos, eu me distraí naquele ambiente monocromático, observando a máquina de torra e moagem, os recipientes com a diversidade de grãos e as ferramentas empoeiradas.

Sozinho e socialmente desconfortável à medida que era seguido pelo dono do estabelecimento, fiz o que sempre faço nessas horas: piorei a situação. Desembestei a fazer perguntas para as quais eu não tinha interesse em saber a resposta, mas me pareceu uma medida de sobrevivência útil no momento. Até que uma saída melhor me ocorreu: comprar. Vinte minutos depois, saí dali com um pacote de meio quilo de grãos nobres de café forte e encorpado - foi o que ele disse e me fez acreditar que anotou, em seu idioma, na etiqueta que colou no lacre que selou na hora - me dando conta então de que aquela embalagem viajaria comigo pelos próximos vinte dias, a milhares de quilômetros da minha própria cafeteira, onde Manú prepara todas as manhãs nosso café nada forte, nem encorpado, mas com habitual nobreza e conversas nada constrangidas.

Sentei-me num banco na rua para esperar as meninas. O homem voltou para a porta da loja. O açougueiro seguia com sua carnificina, agora ajudado por um menino. Enquanto estive ali, ninguém entrou para comprar café ou carne.

Viver em uma pequena ilha, crescer em uma ilha, os limites tão claramente definidos, as linhas de fronteiras perfeitamente visíveis, o mar. Gastar ali os dias, talvez a vida toda, cortando bifes, vendendo presilhas ou torrando cafés importados de lugares cujos pés nunca tocaram. Tornar-se uma ilha.

O caderno onde eu faria anotações sobre as experiências e impressões de viagem não tem uma frase escrita por mim. Eu o carrego na mochila, mas tão logo o ponho sobre a mesa, é surrupiado por alguma mãozinha, cujo esforço é confrontado por outra e elas brigam pelo caderno, repartem folhas, me pedem a caneta "eu primeiro! Eu pedi primeiro!" e eu tiro da bolsa duas canetas porque já era claro, desde sempre, que essa cena se repetiria, como se repete, cada vez que papeis e canetas aparecem sobre a mesa de qualquer lugar onde estejamos.

Nina agora desenha com traços cada vez mais precisos, bastante artísticos e poéticos e já se expressa com uma identidade bem definida. Cecília observa e tenta imitar a irmã mais velha, mas embora procure por um espelho, ela acaba fazendo do seu jeito, com cores, histórias e riscos que desrespeitam limites que os anos impõem e, especialmente por isso, também são tão belos.

E são elas que registram em meu pequeno bloco, a seu modo, as impressões do que viram. Seus rastros em meus cadernos, lembranças de destinos por onde passamos, que se somam às notas mentais que preservo dessas andanças na esperança de que a memória preserve as imagens que devem permanecer. Porque eu não poderia escrever nada melhor do que isso que vejo e guardo. As linhas para onde volto quando desejo viajar no tempo.

Linhas de expressão. No espelho e, sobretudo, nas fotos em que me vi. Vejo linhas que não existiam antes e agora marcam meu rosto. Fios grisalhos ocupando uma área cada vez maior de cabelo e barba. O rosto curvado, a coluna míope, a visão que me trai, uma certa confusão com as palavras... E ao redor disso, as meninas, também mais crescidas e mudando a fisionomia. Consegui notar - a contragosto, registrem - o avanço da idade de uma forma que no dia-a-dia, entre um pão com manteiga pela manhã e a hora da televisão à noite, não dá para assimilar. Seguimos adiante, uma dor no joelho aqui, um frasco com comprimidos ali, o evitar de café depois das seis acolá e permanecemos crentes de que é pouco, só um pouco de dias a mais que se acumulam. Por isso, quando viajamos nas férias e passamos algumas semanas confinados juntos nessa época do ano, é como se existisse um recorte na marcação do tempo que funciona como a janela de espaço temporal em que observamo-nos. O fio da existência, sutil, nos arrasta.

O fio da meada se perde, de repente, e sem que um aviso prévio seja dado, a cápsula em que habitávamos e nos fazia acreditar que pertencíamos a um grupo geracional em movimento, explode. E notamos que esse degrau que um dia duramente descobrimos existir entre nós e nossos pais também se apresenta, acachapante, entre nós e nossas filhas.

Falando neles, meus pais estavam em nossa casa há algumas semanas e Cecília veio do quarto para a sala. "Como ela está grande! Até assustei quando vi", minha mãe comentou. "Às vezes", respondi, "escuto os passos de uma delas vindo pelo corredor e imagino que a criança que vai passar pela porta é menor do que a que aparece. Na minha mente, elas sempre são muito menores do que já estão". Meu pai pousou sua xícara sobre a mesa e olhando para baixo, deu um sorriso discreto e comentou "isso nunca muda". Esperou um instante - ele sempre espera mais um instante - e emendou: "não importa quanto tempo passe, a gente só vê as crianças. O olhar para os filhos continua sendo assim".

Em algumas manhãs, quando saio para correr, noto à distância um casal vindo no sentido contrário. A miopia me impede de enxergar com clareza, mas pelo movimento dos braços, o jeito de caminhar, sei que são meus pais fazendo sua caminhada matutina. Eu queria que soubessem que em certos dias eu vejo aquele casal de idosos com seus passos curtos e dentro de mim também bate o sentimento do menino querendo colo. Não importam os caminhos da vida, como os fios que minha mãe tece com agulhas nossas linhas se cruzam emaranhadas.

"Nenhum homem é uma ilha", escreveu John Donne, que nasceu e morreu em uma, nas suas meditações. Pensava nisso enquanto viajávamos entre pedaços de terra pseudo-flutuantes naquelas férias. Cruzando o mar dentro de um barco enorme durante uma noite inteira e, lá fora, era água, água, céu, água, céu, o barco, uns pássaros, outros barcos, muita água passando em movimento e eu esticado na cama sem conseguir dormir. Caramba, como os pássaros chegam até aqui? Viajar num barco é estar em estado completo de impermanência. Entre uma cidade e outra, seguíamos. Navegar a vida não é nada preciso. Há esses portos novos onde atracamos e há o lugar a que pertencemos.

Durante aqueles dias, nossas mãos tocaram monumentos e artefatos que foram criados há milhares de anos. Caminhávamos por aqueles lugares, cercados de câmeras capturando fotos que habitariam publicações que sobrevivem por míseras horas num perfil de internet. O passado que sondávamos por essas frestas e fragmentos da história era mais intenso que o presente efêmero em que estávamos. O que é o tempo, o que é velhice, o que determina esse espaço entre começo e fim e o que significa o passar dos dias diante dessa imensidão? Frutos de mãos como as nossas, trançando fios e linhas. A impermanência do homem que permanece em suas obras.

"O homem nasce com o anseio pela eternidade em seu coração", disse um rei no fim de sua vida. Essa eternidade que nos ocupa, plantada em nós pelo Eterno em quem habitamos, o fruto que somos e os frutos que damos.

É preciso fazer do tempo um amigo, foi um conselho que recebi e teimo em não acatar. Em geral, é justamente o tempo meu algoz e inseparável companhia. Jamais um amigo. Nele navego e me refestelo nas lembranças que me compõem. Com ele também luto, luto e sempre perco a batalha, na expectativa de que suas águas fluam de forma mais serena e possam ser navegadas, com o desejo de que possamos vivenciar melhor os dias, nossas filhas, no espaço miúdo da rotina caseira em que habitamos e que tanto nos preenche.

Nenhum homem é uma filha, o poeta talvez dissesse se fosse testemunha da minha nostalgia. "Mas, e filhas?", eu iria retrucar, só de teimosia.

Volto e volto nessas páginas, reviro lembranças e cadernos com os traços que elas deixam por aqui para compor nossa história. É um quadro, fico pensando. A imagem que capturamos convivendo diariamente, microscópicamente, abrindo os sentidos para experiências novas enquanto nos unimos nessas viagens. Rastros de eternidade. Olho pela janela, vejo as fotos que registramos, penso nas meninas em cada lugar que desembarcamos como se as novas paisagens que contemplamos nessas caminhadas fossem a moldura que se move em torno do que atrai meu olhar como ímã: elas, sempre ali, que permanecem como o único ponto de continuidade enquanto tudo ao redor se movimenta.

Os sinos da igreja tocaram para nos lembrar que era hora de partir. O sol se punha sobre o mar no horizonte. Terminamos nosso jantar apressados e corremos para a balsa que nos levaria embora. Manú dormiu aconchegada em meu ombro enquanto navegávamos. Por sorte, há coisas que não mudam.

Viver em uma ilha.

John Donne segue: "Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é um partícula do continente, uma parte da terra. Se um pequeno torrão carregado pelo mar deixa menor a Europa, como se todo um promontório fosse, ou a herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti".

Ainda não abri o pacote de café que comprei naquela manhã. De vez em quando, eu pego a embalagem no armário, aperto um pouco para sentir o cheiro dos grãos ali dentro e fico conferindo os traços da caligrafia do homem e lembrando dos dias em que fingimos suspender a passagem do tempo só para poder contemplá-lo.

Me distraio enquanto meu café esfria na xícara sobre a mesa e Manu termina de preparar a refeição que as meninas comem apressadas antes de irem para a escola. Desde que voltamos, entramos novamente na cápsula cotidiana que mascara as linhas de expressão e a passagem dos dias. A hora se impõe. Elas saem apressadas, lanches nas mãos, a bagagem cheia de cadernos e folhas em branco. Linhas e linhas, pela vida afora. Eternidade adentro.

Ao lado do açougue onde um velho desossava metade de um boi na calçada, ficava a loja em que o homem que torrava cafés estava encostado na porta, vestindo seu avental jeans e observando o movimento de turistas na rua. Estávamos em uma ilha com pouco mais de cinco mil habitantes e só me tornei alvo do seu olhar negligente quando entrei na loja atraído pelo cheiro agradável e pelo saco de juta de sessenta quilos escrito "Café do Brasil" prostrado na entrada e a julgar pelo estado, viajou para aquele lugar décadas antes de mim. Pelo período em que as meninas perambularam por uma loja de acessórios coloridos dispostos em corredores infinitos, eu me distraí naquele ambiente monocromático, observando a máquina de torra e moagem, os recipientes com a diversidade de grãos e as ferramentas empoeiradas.

Sozinho e socialmente desconfortável à medida que era seguido pelo dono do estabelecimento, fiz o que sempre faço nessas horas: piorei a situação. Desembestei a fazer perguntas para as quais eu não tinha interesse em saber a resposta, mas me pareceu uma medida de sobrevivência útil no momento. Até que uma saída melhor me ocorreu: comprar. Vinte minutos depois, saí dali com um pacote de meio quilo de grãos nobres de café forte e encorpado - foi o que ele disse e me fez acreditar que anotou, em seu idioma, na etiqueta que colou no lacre que selou na hora - me dando conta então de que aquela embalagem viajaria comigo pelos próximos vinte dias, a milhares de quilômetros da minha própria cafeteira, onde Manú prepara todas as manhãs nosso café nada forte, nem encorpado, mas com habitual nobreza e conversas nada constrangidas.

Sentei-me num banco na rua para esperar as meninas. O homem voltou para a porta da loja. O açougueiro seguia com sua carnificina, agora ajudado por um menino. Enquanto estive ali, ninguém entrou para comprar café ou carne.

Viver em uma pequena ilha, crescer em uma ilha, os limites tão claramente definidos, as linhas de fronteiras perfeitamente visíveis, o mar. Gastar ali os dias, talvez a vida toda, cortando bifes, vendendo presilhas ou torrando cafés importados de lugares cujos pés nunca tocaram. Tornar-se uma ilha.

O caderno onde eu faria anotações sobre as experiências e impressões de viagem não tem uma frase escrita por mim. Eu o carrego na mochila, mas tão logo o ponho sobre a mesa, é surrupiado por alguma mãozinha, cujo esforço é confrontado por outra e elas brigam pelo caderno, repartem folhas, me pedem a caneta "eu primeiro! Eu pedi primeiro!" e eu tiro da bolsa duas canetas porque já era claro, desde sempre, que essa cena se repetiria, como se repete, cada vez que papeis e canetas aparecem sobre a mesa de qualquer lugar onde estejamos.

Nina agora desenha com traços cada vez mais precisos, bastante artísticos e poéticos e já se expressa com uma identidade bem definida. Cecília observa e tenta imitar a irmã mais velha, mas embora procure por um espelho, ela acaba fazendo do seu jeito, com cores, histórias e riscos que desrespeitam limites que os anos impõem e, especialmente por isso, também são tão belos.

E são elas que registram em meu pequeno bloco, a seu modo, as impressões do que viram. Seus rastros em meus cadernos, lembranças de destinos por onde passamos, que se somam às notas mentais que preservo dessas andanças na esperança de que a memória preserve as imagens que devem permanecer. Porque eu não poderia escrever nada melhor do que isso que vejo e guardo. As linhas para onde volto quando desejo viajar no tempo.

Linhas de expressão. No espelho e, sobretudo, nas fotos em que me vi. Vejo linhas que não existiam antes e agora marcam meu rosto. Fios grisalhos ocupando uma área cada vez maior de cabelo e barba. O rosto curvado, a coluna míope, a visão que me trai, uma certa confusão com as palavras... E ao redor disso, as meninas, também mais crescidas e mudando a fisionomia. Consegui notar - a contragosto, registrem - o avanço da idade de uma forma que no dia-a-dia, entre um pão com manteiga pela manhã e a hora da televisão à noite, não dá para assimilar. Seguimos adiante, uma dor no joelho aqui, um frasco com comprimidos ali, o evitar de café depois das seis acolá e permanecemos crentes de que é pouco, só um pouco de dias a mais que se acumulam. Por isso, quando viajamos nas férias e passamos algumas semanas confinados juntos nessa época do ano, é como se existisse um recorte na marcação do tempo que funciona como a janela de espaço temporal em que observamo-nos. O fio da existência, sutil, nos arrasta.

O fio da meada se perde, de repente, e sem que um aviso prévio seja dado, a cápsula em que habitávamos e nos fazia acreditar que pertencíamos a um grupo geracional em movimento, explode. E notamos que esse degrau que um dia duramente descobrimos existir entre nós e nossos pais também se apresenta, acachapante, entre nós e nossas filhas.

Falando neles, meus pais estavam em nossa casa há algumas semanas e Cecília veio do quarto para a sala. "Como ela está grande! Até assustei quando vi", minha mãe comentou. "Às vezes", respondi, "escuto os passos de uma delas vindo pelo corredor e imagino que a criança que vai passar pela porta é menor do que a que aparece. Na minha mente, elas sempre são muito menores do que já estão". Meu pai pousou sua xícara sobre a mesa e olhando para baixo, deu um sorriso discreto e comentou "isso nunca muda". Esperou um instante - ele sempre espera mais um instante - e emendou: "não importa quanto tempo passe, a gente só vê as crianças. O olhar para os filhos continua sendo assim".

Em algumas manhãs, quando saio para correr, noto à distância um casal vindo no sentido contrário. A miopia me impede de enxergar com clareza, mas pelo movimento dos braços, o jeito de caminhar, sei que são meus pais fazendo sua caminhada matutina. Eu queria que soubessem que em certos dias eu vejo aquele casal de idosos com seus passos curtos e dentro de mim também bate o sentimento do menino querendo colo. Não importam os caminhos da vida, como os fios que minha mãe tece com agulhas nossas linhas se cruzam emaranhadas.

"Nenhum homem é uma ilha", escreveu John Donne, que nasceu e morreu em uma, nas suas meditações. Pensava nisso enquanto viajávamos entre pedaços de terra pseudo-flutuantes naquelas férias. Cruzando o mar dentro de um barco enorme durante uma noite inteira e, lá fora, era água, água, céu, água, céu, o barco, uns pássaros, outros barcos, muita água passando em movimento e eu esticado na cama sem conseguir dormir. Caramba, como os pássaros chegam até aqui? Viajar num barco é estar em estado completo de impermanência. Entre uma cidade e outra, seguíamos. Navegar a vida não é nada preciso. Há esses portos novos onde atracamos e há o lugar a que pertencemos.

Durante aqueles dias, nossas mãos tocaram monumentos e artefatos que foram criados há milhares de anos. Caminhávamos por aqueles lugares, cercados de câmeras capturando fotos que habitariam publicações que sobrevivem por míseras horas num perfil de internet. O passado que sondávamos por essas frestas e fragmentos da história era mais intenso que o presente efêmero em que estávamos. O que é o tempo, o que é velhice, o que determina esse espaço entre começo e fim e o que significa o passar dos dias diante dessa imensidão? Frutos de mãos como as nossas, trançando fios e linhas. A impermanência do homem que permanece em suas obras.

"O homem nasce com o anseio pela eternidade em seu coração", disse um rei no fim de sua vida. Essa eternidade que nos ocupa, plantada em nós pelo Eterno em quem habitamos, o fruto que somos e os frutos que damos.

É preciso fazer do tempo um amigo, foi um conselho que recebi e teimo em não acatar. Em geral, é justamente o tempo meu algoz e inseparável companhia. Jamais um amigo. Nele navego e me refestelo nas lembranças que me compõem. Com ele também luto, luto e sempre perco a batalha, na expectativa de que suas águas fluam de forma mais serena e possam ser navegadas, com o desejo de que possamos vivenciar melhor os dias, nossas filhas, no espaço miúdo da rotina caseira em que habitamos e que tanto nos preenche.

Nenhum homem é uma filha, o poeta talvez dissesse se fosse testemunha da minha nostalgia. "Mas, e filhas?", eu iria retrucar, só de teimosia.

Volto e volto nessas páginas, reviro lembranças e cadernos com os traços que elas deixam por aqui para compor nossa história. É um quadro, fico pensando. A imagem que capturamos convivendo diariamente, microscópicamente, abrindo os sentidos para experiências novas enquanto nos unimos nessas viagens. Rastros de eternidade. Olho pela janela, vejo as fotos que registramos, penso nas meninas em cada lugar que desembarcamos como se as novas paisagens que contemplamos nessas caminhadas fossem a moldura que se move em torno do que atrai meu olhar como ímã: elas, sempre ali, que permanecem como o único ponto de continuidade enquanto tudo ao redor se movimenta.

Os sinos da igreja tocaram para nos lembrar que era hora de partir. O sol se punha sobre o mar no horizonte. Terminamos nosso jantar apressados e corremos para a balsa que nos levaria embora. Manú dormiu aconchegada em meu ombro enquanto navegávamos. Por sorte, há coisas que não mudam.

Viver em uma ilha.

John Donne segue: "Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é um partícula do continente, uma parte da terra. Se um pequeno torrão carregado pelo mar deixa menor a Europa, como se todo um promontório fosse, ou a herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque eu pertenço à humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti".

Ainda não abri o pacote de café que comprei naquela manhã. De vez em quando, eu pego a embalagem no armário, aperto um pouco para sentir o cheiro dos grãos ali dentro e fico conferindo os traços da caligrafia do homem e lembrando dos dias em que fingimos suspender a passagem do tempo só para poder contemplá-lo.

Me distraio enquanto meu café esfria na xícara sobre a mesa e Manu termina de preparar a refeição que as meninas comem apressadas antes de irem para a escola. Desde que voltamos, entramos novamente na cápsula cotidiana que mascara as linhas de expressão e a passagem dos dias. A hora se impõe. Elas saem apressadas, lanches nas mãos, a bagagem cheia de cadernos e folhas em branco. Linhas e linhas, pela vida afora. Eternidade adentro.

Opinião por Luiz Henrique Matos

É escritor e publicitário. Autor dos livros “Enquanto a gente se distrai, o tempo foge” e "Nem que a vaca tussa!" e criador do canal Frases de Crianças.

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