Quem passa por três importantes vias da Vila Mariana, Butantã e Ipiranga dificilmente sabe que blocos de concreto deteriorados e pichados marcavam, quase um século atrás, os extremos de São Paulo. Esses monumentos eram marcos quilométricos rodoviários e indicavam o limite entre a capital e as estradas que davam acesso aos municípios vizinhos.
Eles foram tombados neste mês pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de SP (Conpresp), 15 anos após o projeto chegar à instituição, e, agora, devem ser restaurados.
Os três marcos são os únicos - além do marco zero da Sé, tombado em 2007 - localizados pela Prefeitura. Um fica na altura do número 5.135 da Avenida Francisco Morato, no Butantã; outro na Rua França Pinto, na esquina com a Rua Domingos de Morais, na Vila Mariana; e o terceiro, na frente do número 375 da Rua Silva Bueno, no Ipiranga. Eles estão rachados, pichados e sem placas de identificação - apenas o do Ipiranga tem correntes para proteção.
O abandono é tão grande que até mesmo quem passa por essas vias todo dia não sabe que os blocos são peças históricas da cidade. É o caso do comerciante Ênio Kamura, de 44 anos, que trabalha há 18 em uma loja na frente do marco da Vila Mariana. "Já ouvimos falar que é um marco, mas marco do quê? Tem uma data apagada lá, mas devia ter pelo menos uma placa explicando o que é", afirma. Já o motorista Eduardo Bizetto, de 53 anos, que mora na Vila Mariana e passa todo dia na frente do marco, afirma que cachorros urinam no bloco e que vândalos chegaram a tentar pichá-lo. "A Prefeitura tem de informar que é uma peça histórica. Eu mesmo pensei que fosse uma mureta de proteção que ficasse na calçada e estivesse mal cuidada", disse.
Segundo a presidente do Conpresp, Nadia Somekh, o órgão pretende restaurar os marcos e pesquisar se há outros na cidade que resistiram às alterações urbanas dos últimos 100 anos. "São os três primeiros a serem tombados, mas a gente está descobrindo ainda. Tem muita coisa enterrada da história de São Paulo e que estamos desenterrando."
Localização. A ideia de colocar marcos para georreferenciamento partiu do engenheiro francês Edmond-Théodore Lorieux (1867-1932). Os marcos foram instalados na gestão do prefeito Washington Luis Pereira de Sousa (1914-1919), em 1916, e eram referências do antigo sistema de engenharia viária.
Naquele período, os transportes motorizados estavam sendo introduzidos e ainda se consolidavam no País. Foi na primeira década do século 20, por exemplo, que empresas como a extinta Grassi, que fabricava carruagens, coches e troles, passaram a produzir também os primeiros ônibus de São Paulo.
O arquiteto e consultor de transporte Flamínio Fichmann explica que esses monumentos fazem parte do patrimônio histórico da cidade, mas não são métricas usadas hoje. A medição é feita atualmente por modernos sistemas de monitoramento via satélite. "Hoje, não temos a necessidade de ir ao local e medir como antes. Fazemos isso por GPS. Ficou muito mais simples", afirma.
Crescimento. Para Fichmann, os marcos apontam o quanto a malha rodoviária paulistana se ampliou de forma desenfreada nos últimos anos. "A gente produziu a cultura do automóvel no Brasil, sempre tendo o carro como um bem de consumo importante e a principal forma de deslocamento. Fizemos uma opção errada, porque poderíamos ter investido na malha ferroviária e no deslocamento por mar", afirma.
Em 1917, segundo estudo do Conpresp, havia 1.757 automóveis circulando na capital e 816 no interior - segundo o Detran, a frota registrada em maio de 2013 era de 5.367.671 só na cidade de São Paulo.
Desde a época em que os marcos começaram a ser usados, a cidade cresceu de tal maneira que os bairros que antes ficavam nas extremidades hoje estão longe da periferia. O do Butantã, por exemplo, que indicava a antiga Estrada n.º 5, ligando Pinheiros, Taboão e Osasco, delimitava a fronteira entre a capital e o município de Santo Amaro - hoje, um distrito da zona sul de São Paulo. O do Ipiranga apontava o início da Estrada n.º 4 (Estrada de Santos), que ligava São Paulo à Serra do Mar.
Segundo Fichmann, desde então a cidade sofreu o fenômeno da conurbação, a unificação da malha urbana com as cidades vizinhas, pondo fim aos limites entre municípios. "Hoje, para sair da capital e ir para o ABC, se não tiver uma placa, ninguém vai saber onde fica o limite."