Análise|Memória dos ‘tenentes rebeldes’ traça a história do maior conflito armado da história paulistana


Livro do jornalista Dácio Nitrini usa a memória dos combatentes da Força Pública para reconstruir a revolta de 1924, da sublevação dos tenentes e do bombardeio de São Paulo ao exílio dos rebeldes

Por Marcelo Godoy

Era o fim da tarde de 4 de julho de 1924 quando o tenente da Força Pública de São Paulo João Baptista Nitrini encontrou o major Miguel Costa, quando deixava o quartel na Luz, no centro de São Paulo. “Às 9 horas da noite você apareça em minha casa.” A ordem do superior deixou claro ao jovem oficial que a “revolução estava na rua”.

Capa do livro 1924 Tenentes Rebeldes, do jornalista Dácio Nitrini Foto: Reprodução/Estadão

Cem anos após o maior e mais sangrento conflito armado da história da cidade de São Paulo, o jornalista Dácio Nitrini, sobrinho de João Baptista, conta que, ao chegar fardado e armado à residência do major, o tenente deparou-se com seu cunhado, o também tenente da Força Pública Índio do Brasil, portando o fuzil do Regimento de Caçadores. A cena é uma das tantas que Nitrini reconstrói em seu livro 1924 Tenentes Rebeldes, onde o jornalista recria o bombardeio da capital paulista, a retirada dos rebeldes e o exílio.

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As memórias dos tenentes Nitrini e Índio do Brasil são o fio condutor por meio do qual a sensibilidade e a técnica do jornalista conduz o leitor pelas páginas de sua obra. Os tios do jornalista estavam no olho do furacão: a revolta tenentista de 1924 terminaria com a constituição da coluna Prestes, que cortaria os sertões do País, de Sul a Norte, durante quase dois anos, acossada pelas tropas legalistas até se internar na Bolívia.

Se a história da coluna e de seus líderes marcaria profundamente a República nas décadas seguintes, a da revolta paulista e as ações dos rebelados de sua Força Pública fizeram o nome do major Miguel Costa ser uma presença quase obrigatória ao lado do capitão Luiz Carlos Prestes.

Um dos principais intérpretes de tenentismo no Brasil, Boris Fausto afirmava – assim como seu colega José Murilo de Carvalho – que o tenentismo era um movimento de caráter militar, por sua ética e por sua ótica. E são estas duas que Nitrini procura recuperar ao colocar o olhar dos tenentes paulistas no centro de sua obra – dos relatos dos tios aos passos da Coluna da Morte, do tenente João Cabanas.

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Vista de um antigo cemitério no bairro do Ipiranga, em São Paulo durante a Revolução de 1924  Foto: Acervo Estadão

Nitrini exibe os planos dos rebeldes, os combates nas ruas da cidade e a fuga do governo paulista. Mas não esquece do drama da população de São Paulo, apanhada em meio ao fogo cruzado de rebeldes e legalistas e submetida ao bombardeio indiscriminado pelo governo federal, que arrasava a cidade palmo a palmo, técnica que a Força Terrestre desenvolvera para lidar com os rebeldes de Canudos.

Na madrugada do dia 5 de julho, os tios de Nitrini “ficaram quietos, aguardando Miguel Costa despachar ordens com mensageiros desconhecidos”. “Os tenentes Tales e Arlindo surgiram sorrateiros, e receberam do major pastas de couro com os planos táticos e sumiram rápida e silenciosamente no escuro do bairro. Horas depois, João Batista foi procurado pelo major Costa na varanda da casa, onde permanecia de sentinela: ‘Estou a caminho do Regimento e quando você escutar o toque de reunir, corra imediatamente para lá’.”

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Era o começo da rebelião. Miguel Costa sublevara os 500 homens do Regimento de Cavalaria. Nas primeiras horas do levante não era possível distinguir quem era rebelde ou legalista. No ímpeto de se tomar a cidade e derrubar o presidente Artur Bernardes, não se pensou em como diferenciar uns dos outros. A cidade acabou cercada pelas tropas federais. As vítimas desse conflito jazem esquecidas nas valas comuns abertas nos cemitérios de uma cidade, que ainda ostenta as marcas da fuzilaria de 1924 em lugares como a torre ao lado do quartel da Luz, antiga sede do 1.º Batalhão da Força Pública, que hoje abriga a Rota.

Quem pôde fugiu da cidade. Duzentos mil de seus habitantes deixaram tudo para trás. Outros 500 mil não tiveram como escapar. Estrangeiros veteranos da 1ª Guerra Mundial, dos exércitos austro-húngaro, alemão e italiano, formaram unidades mercenárias de apoio aos rebeldes.

A luta durou até 28 de julho e opôs cerca de 15 mil governistas a 7 mil rebeldes, entre militares e civis. Nunca se soube ao certo o número de mortos. O governo de então falou em 500, além de 2,5 mil feridos. Mas só a Santa Casa registrara 723 mortos naqueles dias, o que faz as estimativas de vítimas fatais ultrapassarem a casa do milhar.

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Nitrini conta essa história – da revolta ao exílio dos tenentes – como um mestre da reportagem. Ao usar seus tios, os colegas rebeldes e os civis para retratar a revolta, Nitrini transforma as vidas de cada um em símbolo de uma década determinante para a República.

As vidas anônimas se misturaram à história não como anedotas, mas como parte da trama infindável de fios por meio do qual o relato se estabelece. É a consciência de Nitrini que faz de cada episódio um instrumento para explicar o Brasil de então e o papel dos militares nas décadas vindouras.

 
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Se a capital paulista não teve o mesmo destino da Canudos do Conselheiro é porque os rebeldes daqui resolveram deixá-la antes que ela fosse esmagada pela artilharia inimiga. A reação do governo federal foi brutal: milhares foram presos, inclusive empresários e políticos que buscaram manter a ordem e administrar a cidade ou mediar o conflito. Entre eles, estava o jornalista Julio Mesquita, encarcerado por ordem de Bernardes.

Mais uma vez, é Nitrini quem conta: “O único jornal importante de São Paulo, que prosseguia diariamente nas ruas, era O Estado de S. Paulo, de Júlio Mesquita, impresso sob censura em uma só folha, frente e verso. Antes da intentona de 1924, Mesquita apoiava algumas reformas políticas e econômicas coincidentemente defendidas pelos revoltosos nos artigos que escrevia, mas não era favorável à luta armada para realizá-las. Com a derrota do movimento, foi preso e transferido para a capital federal em 2 de agosto. O jornal foi proibido de circular de 29 de julho a 17 de agosto.”

Os tenentes não se renderam. Levaram sua luta ao interior e, depois, foram se unir aos gaúchos comandados por Prestes. E, de lá, muitos rumaram para o exílio do qual alguns não retornaram. O centenário da revolta encontrou o Brasil após mais um momento em que as relações entre o Poder Civil e o Militar estiveram novamente na ordem do dia. Desta vez, as granadas ficaram apenas nas prateleiras, de onde autores como Nitrini podem buscá-las para novas reportagens históricas.

Era o fim da tarde de 4 de julho de 1924 quando o tenente da Força Pública de São Paulo João Baptista Nitrini encontrou o major Miguel Costa, quando deixava o quartel na Luz, no centro de São Paulo. “Às 9 horas da noite você apareça em minha casa.” A ordem do superior deixou claro ao jovem oficial que a “revolução estava na rua”.

Capa do livro 1924 Tenentes Rebeldes, do jornalista Dácio Nitrini Foto: Reprodução/Estadão

Cem anos após o maior e mais sangrento conflito armado da história da cidade de São Paulo, o jornalista Dácio Nitrini, sobrinho de João Baptista, conta que, ao chegar fardado e armado à residência do major, o tenente deparou-se com seu cunhado, o também tenente da Força Pública Índio do Brasil, portando o fuzil do Regimento de Caçadores. A cena é uma das tantas que Nitrini reconstrói em seu livro 1924 Tenentes Rebeldes, onde o jornalista recria o bombardeio da capital paulista, a retirada dos rebeldes e o exílio.

As memórias dos tenentes Nitrini e Índio do Brasil são o fio condutor por meio do qual a sensibilidade e a técnica do jornalista conduz o leitor pelas páginas de sua obra. Os tios do jornalista estavam no olho do furacão: a revolta tenentista de 1924 terminaria com a constituição da coluna Prestes, que cortaria os sertões do País, de Sul a Norte, durante quase dois anos, acossada pelas tropas legalistas até se internar na Bolívia.

Se a história da coluna e de seus líderes marcaria profundamente a República nas décadas seguintes, a da revolta paulista e as ações dos rebelados de sua Força Pública fizeram o nome do major Miguel Costa ser uma presença quase obrigatória ao lado do capitão Luiz Carlos Prestes.

Um dos principais intérpretes de tenentismo no Brasil, Boris Fausto afirmava – assim como seu colega José Murilo de Carvalho – que o tenentismo era um movimento de caráter militar, por sua ética e por sua ótica. E são estas duas que Nitrini procura recuperar ao colocar o olhar dos tenentes paulistas no centro de sua obra – dos relatos dos tios aos passos da Coluna da Morte, do tenente João Cabanas.

Vista de um antigo cemitério no bairro do Ipiranga, em São Paulo durante a Revolução de 1924  Foto: Acervo Estadão

Nitrini exibe os planos dos rebeldes, os combates nas ruas da cidade e a fuga do governo paulista. Mas não esquece do drama da população de São Paulo, apanhada em meio ao fogo cruzado de rebeldes e legalistas e submetida ao bombardeio indiscriminado pelo governo federal, que arrasava a cidade palmo a palmo, técnica que a Força Terrestre desenvolvera para lidar com os rebeldes de Canudos.

Na madrugada do dia 5 de julho, os tios de Nitrini “ficaram quietos, aguardando Miguel Costa despachar ordens com mensageiros desconhecidos”. “Os tenentes Tales e Arlindo surgiram sorrateiros, e receberam do major pastas de couro com os planos táticos e sumiram rápida e silenciosamente no escuro do bairro. Horas depois, João Batista foi procurado pelo major Costa na varanda da casa, onde permanecia de sentinela: ‘Estou a caminho do Regimento e quando você escutar o toque de reunir, corra imediatamente para lá’.”

Era o começo da rebelião. Miguel Costa sublevara os 500 homens do Regimento de Cavalaria. Nas primeiras horas do levante não era possível distinguir quem era rebelde ou legalista. No ímpeto de se tomar a cidade e derrubar o presidente Artur Bernardes, não se pensou em como diferenciar uns dos outros. A cidade acabou cercada pelas tropas federais. As vítimas desse conflito jazem esquecidas nas valas comuns abertas nos cemitérios de uma cidade, que ainda ostenta as marcas da fuzilaria de 1924 em lugares como a torre ao lado do quartel da Luz, antiga sede do 1.º Batalhão da Força Pública, que hoje abriga a Rota.

Quem pôde fugiu da cidade. Duzentos mil de seus habitantes deixaram tudo para trás. Outros 500 mil não tiveram como escapar. Estrangeiros veteranos da 1ª Guerra Mundial, dos exércitos austro-húngaro, alemão e italiano, formaram unidades mercenárias de apoio aos rebeldes.

A luta durou até 28 de julho e opôs cerca de 15 mil governistas a 7 mil rebeldes, entre militares e civis. Nunca se soube ao certo o número de mortos. O governo de então falou em 500, além de 2,5 mil feridos. Mas só a Santa Casa registrara 723 mortos naqueles dias, o que faz as estimativas de vítimas fatais ultrapassarem a casa do milhar.

Nitrini conta essa história – da revolta ao exílio dos tenentes – como um mestre da reportagem. Ao usar seus tios, os colegas rebeldes e os civis para retratar a revolta, Nitrini transforma as vidas de cada um em símbolo de uma década determinante para a República.

As vidas anônimas se misturaram à história não como anedotas, mas como parte da trama infindável de fios por meio do qual o relato se estabelece. É a consciência de Nitrini que faz de cada episódio um instrumento para explicar o Brasil de então e o papel dos militares nas décadas vindouras.

 

Se a capital paulista não teve o mesmo destino da Canudos do Conselheiro é porque os rebeldes daqui resolveram deixá-la antes que ela fosse esmagada pela artilharia inimiga. A reação do governo federal foi brutal: milhares foram presos, inclusive empresários e políticos que buscaram manter a ordem e administrar a cidade ou mediar o conflito. Entre eles, estava o jornalista Julio Mesquita, encarcerado por ordem de Bernardes.

Mais uma vez, é Nitrini quem conta: “O único jornal importante de São Paulo, que prosseguia diariamente nas ruas, era O Estado de S. Paulo, de Júlio Mesquita, impresso sob censura em uma só folha, frente e verso. Antes da intentona de 1924, Mesquita apoiava algumas reformas políticas e econômicas coincidentemente defendidas pelos revoltosos nos artigos que escrevia, mas não era favorável à luta armada para realizá-las. Com a derrota do movimento, foi preso e transferido para a capital federal em 2 de agosto. O jornal foi proibido de circular de 29 de julho a 17 de agosto.”

Os tenentes não se renderam. Levaram sua luta ao interior e, depois, foram se unir aos gaúchos comandados por Prestes. E, de lá, muitos rumaram para o exílio do qual alguns não retornaram. O centenário da revolta encontrou o Brasil após mais um momento em que as relações entre o Poder Civil e o Militar estiveram novamente na ordem do dia. Desta vez, as granadas ficaram apenas nas prateleiras, de onde autores como Nitrini podem buscá-las para novas reportagens históricas.

Era o fim da tarde de 4 de julho de 1924 quando o tenente da Força Pública de São Paulo João Baptista Nitrini encontrou o major Miguel Costa, quando deixava o quartel na Luz, no centro de São Paulo. “Às 9 horas da noite você apareça em minha casa.” A ordem do superior deixou claro ao jovem oficial que a “revolução estava na rua”.

Capa do livro 1924 Tenentes Rebeldes, do jornalista Dácio Nitrini Foto: Reprodução/Estadão

Cem anos após o maior e mais sangrento conflito armado da história da cidade de São Paulo, o jornalista Dácio Nitrini, sobrinho de João Baptista, conta que, ao chegar fardado e armado à residência do major, o tenente deparou-se com seu cunhado, o também tenente da Força Pública Índio do Brasil, portando o fuzil do Regimento de Caçadores. A cena é uma das tantas que Nitrini reconstrói em seu livro 1924 Tenentes Rebeldes, onde o jornalista recria o bombardeio da capital paulista, a retirada dos rebeldes e o exílio.

As memórias dos tenentes Nitrini e Índio do Brasil são o fio condutor por meio do qual a sensibilidade e a técnica do jornalista conduz o leitor pelas páginas de sua obra. Os tios do jornalista estavam no olho do furacão: a revolta tenentista de 1924 terminaria com a constituição da coluna Prestes, que cortaria os sertões do País, de Sul a Norte, durante quase dois anos, acossada pelas tropas legalistas até se internar na Bolívia.

Se a história da coluna e de seus líderes marcaria profundamente a República nas décadas seguintes, a da revolta paulista e as ações dos rebelados de sua Força Pública fizeram o nome do major Miguel Costa ser uma presença quase obrigatória ao lado do capitão Luiz Carlos Prestes.

Um dos principais intérpretes de tenentismo no Brasil, Boris Fausto afirmava – assim como seu colega José Murilo de Carvalho – que o tenentismo era um movimento de caráter militar, por sua ética e por sua ótica. E são estas duas que Nitrini procura recuperar ao colocar o olhar dos tenentes paulistas no centro de sua obra – dos relatos dos tios aos passos da Coluna da Morte, do tenente João Cabanas.

Vista de um antigo cemitério no bairro do Ipiranga, em São Paulo durante a Revolução de 1924  Foto: Acervo Estadão

Nitrini exibe os planos dos rebeldes, os combates nas ruas da cidade e a fuga do governo paulista. Mas não esquece do drama da população de São Paulo, apanhada em meio ao fogo cruzado de rebeldes e legalistas e submetida ao bombardeio indiscriminado pelo governo federal, que arrasava a cidade palmo a palmo, técnica que a Força Terrestre desenvolvera para lidar com os rebeldes de Canudos.

Na madrugada do dia 5 de julho, os tios de Nitrini “ficaram quietos, aguardando Miguel Costa despachar ordens com mensageiros desconhecidos”. “Os tenentes Tales e Arlindo surgiram sorrateiros, e receberam do major pastas de couro com os planos táticos e sumiram rápida e silenciosamente no escuro do bairro. Horas depois, João Batista foi procurado pelo major Costa na varanda da casa, onde permanecia de sentinela: ‘Estou a caminho do Regimento e quando você escutar o toque de reunir, corra imediatamente para lá’.”

Era o começo da rebelião. Miguel Costa sublevara os 500 homens do Regimento de Cavalaria. Nas primeiras horas do levante não era possível distinguir quem era rebelde ou legalista. No ímpeto de se tomar a cidade e derrubar o presidente Artur Bernardes, não se pensou em como diferenciar uns dos outros. A cidade acabou cercada pelas tropas federais. As vítimas desse conflito jazem esquecidas nas valas comuns abertas nos cemitérios de uma cidade, que ainda ostenta as marcas da fuzilaria de 1924 em lugares como a torre ao lado do quartel da Luz, antiga sede do 1.º Batalhão da Força Pública, que hoje abriga a Rota.

Quem pôde fugiu da cidade. Duzentos mil de seus habitantes deixaram tudo para trás. Outros 500 mil não tiveram como escapar. Estrangeiros veteranos da 1ª Guerra Mundial, dos exércitos austro-húngaro, alemão e italiano, formaram unidades mercenárias de apoio aos rebeldes.

A luta durou até 28 de julho e opôs cerca de 15 mil governistas a 7 mil rebeldes, entre militares e civis. Nunca se soube ao certo o número de mortos. O governo de então falou em 500, além de 2,5 mil feridos. Mas só a Santa Casa registrara 723 mortos naqueles dias, o que faz as estimativas de vítimas fatais ultrapassarem a casa do milhar.

Nitrini conta essa história – da revolta ao exílio dos tenentes – como um mestre da reportagem. Ao usar seus tios, os colegas rebeldes e os civis para retratar a revolta, Nitrini transforma as vidas de cada um em símbolo de uma década determinante para a República.

As vidas anônimas se misturaram à história não como anedotas, mas como parte da trama infindável de fios por meio do qual o relato se estabelece. É a consciência de Nitrini que faz de cada episódio um instrumento para explicar o Brasil de então e o papel dos militares nas décadas vindouras.

 

Se a capital paulista não teve o mesmo destino da Canudos do Conselheiro é porque os rebeldes daqui resolveram deixá-la antes que ela fosse esmagada pela artilharia inimiga. A reação do governo federal foi brutal: milhares foram presos, inclusive empresários e políticos que buscaram manter a ordem e administrar a cidade ou mediar o conflito. Entre eles, estava o jornalista Julio Mesquita, encarcerado por ordem de Bernardes.

Mais uma vez, é Nitrini quem conta: “O único jornal importante de São Paulo, que prosseguia diariamente nas ruas, era O Estado de S. Paulo, de Júlio Mesquita, impresso sob censura em uma só folha, frente e verso. Antes da intentona de 1924, Mesquita apoiava algumas reformas políticas e econômicas coincidentemente defendidas pelos revoltosos nos artigos que escrevia, mas não era favorável à luta armada para realizá-las. Com a derrota do movimento, foi preso e transferido para a capital federal em 2 de agosto. O jornal foi proibido de circular de 29 de julho a 17 de agosto.”

Os tenentes não se renderam. Levaram sua luta ao interior e, depois, foram se unir aos gaúchos comandados por Prestes. E, de lá, muitos rumaram para o exílio do qual alguns não retornaram. O centenário da revolta encontrou o Brasil após mais um momento em que as relações entre o Poder Civil e o Militar estiveram novamente na ordem do dia. Desta vez, as granadas ficaram apenas nas prateleiras, de onde autores como Nitrini podem buscá-las para novas reportagens históricas.

Era o fim da tarde de 4 de julho de 1924 quando o tenente da Força Pública de São Paulo João Baptista Nitrini encontrou o major Miguel Costa, quando deixava o quartel na Luz, no centro de São Paulo. “Às 9 horas da noite você apareça em minha casa.” A ordem do superior deixou claro ao jovem oficial que a “revolução estava na rua”.

Capa do livro 1924 Tenentes Rebeldes, do jornalista Dácio Nitrini Foto: Reprodução/Estadão

Cem anos após o maior e mais sangrento conflito armado da história da cidade de São Paulo, o jornalista Dácio Nitrini, sobrinho de João Baptista, conta que, ao chegar fardado e armado à residência do major, o tenente deparou-se com seu cunhado, o também tenente da Força Pública Índio do Brasil, portando o fuzil do Regimento de Caçadores. A cena é uma das tantas que Nitrini reconstrói em seu livro 1924 Tenentes Rebeldes, onde o jornalista recria o bombardeio da capital paulista, a retirada dos rebeldes e o exílio.

As memórias dos tenentes Nitrini e Índio do Brasil são o fio condutor por meio do qual a sensibilidade e a técnica do jornalista conduz o leitor pelas páginas de sua obra. Os tios do jornalista estavam no olho do furacão: a revolta tenentista de 1924 terminaria com a constituição da coluna Prestes, que cortaria os sertões do País, de Sul a Norte, durante quase dois anos, acossada pelas tropas legalistas até se internar na Bolívia.

Se a história da coluna e de seus líderes marcaria profundamente a República nas décadas seguintes, a da revolta paulista e as ações dos rebelados de sua Força Pública fizeram o nome do major Miguel Costa ser uma presença quase obrigatória ao lado do capitão Luiz Carlos Prestes.

Um dos principais intérpretes de tenentismo no Brasil, Boris Fausto afirmava – assim como seu colega José Murilo de Carvalho – que o tenentismo era um movimento de caráter militar, por sua ética e por sua ótica. E são estas duas que Nitrini procura recuperar ao colocar o olhar dos tenentes paulistas no centro de sua obra – dos relatos dos tios aos passos da Coluna da Morte, do tenente João Cabanas.

Vista de um antigo cemitério no bairro do Ipiranga, em São Paulo durante a Revolução de 1924  Foto: Acervo Estadão

Nitrini exibe os planos dos rebeldes, os combates nas ruas da cidade e a fuga do governo paulista. Mas não esquece do drama da população de São Paulo, apanhada em meio ao fogo cruzado de rebeldes e legalistas e submetida ao bombardeio indiscriminado pelo governo federal, que arrasava a cidade palmo a palmo, técnica que a Força Terrestre desenvolvera para lidar com os rebeldes de Canudos.

Na madrugada do dia 5 de julho, os tios de Nitrini “ficaram quietos, aguardando Miguel Costa despachar ordens com mensageiros desconhecidos”. “Os tenentes Tales e Arlindo surgiram sorrateiros, e receberam do major pastas de couro com os planos táticos e sumiram rápida e silenciosamente no escuro do bairro. Horas depois, João Batista foi procurado pelo major Costa na varanda da casa, onde permanecia de sentinela: ‘Estou a caminho do Regimento e quando você escutar o toque de reunir, corra imediatamente para lá’.”

Era o começo da rebelião. Miguel Costa sublevara os 500 homens do Regimento de Cavalaria. Nas primeiras horas do levante não era possível distinguir quem era rebelde ou legalista. No ímpeto de se tomar a cidade e derrubar o presidente Artur Bernardes, não se pensou em como diferenciar uns dos outros. A cidade acabou cercada pelas tropas federais. As vítimas desse conflito jazem esquecidas nas valas comuns abertas nos cemitérios de uma cidade, que ainda ostenta as marcas da fuzilaria de 1924 em lugares como a torre ao lado do quartel da Luz, antiga sede do 1.º Batalhão da Força Pública, que hoje abriga a Rota.

Quem pôde fugiu da cidade. Duzentos mil de seus habitantes deixaram tudo para trás. Outros 500 mil não tiveram como escapar. Estrangeiros veteranos da 1ª Guerra Mundial, dos exércitos austro-húngaro, alemão e italiano, formaram unidades mercenárias de apoio aos rebeldes.

A luta durou até 28 de julho e opôs cerca de 15 mil governistas a 7 mil rebeldes, entre militares e civis. Nunca se soube ao certo o número de mortos. O governo de então falou em 500, além de 2,5 mil feridos. Mas só a Santa Casa registrara 723 mortos naqueles dias, o que faz as estimativas de vítimas fatais ultrapassarem a casa do milhar.

Nitrini conta essa história – da revolta ao exílio dos tenentes – como um mestre da reportagem. Ao usar seus tios, os colegas rebeldes e os civis para retratar a revolta, Nitrini transforma as vidas de cada um em símbolo de uma década determinante para a República.

As vidas anônimas se misturaram à história não como anedotas, mas como parte da trama infindável de fios por meio do qual o relato se estabelece. É a consciência de Nitrini que faz de cada episódio um instrumento para explicar o Brasil de então e o papel dos militares nas décadas vindouras.

 

Se a capital paulista não teve o mesmo destino da Canudos do Conselheiro é porque os rebeldes daqui resolveram deixá-la antes que ela fosse esmagada pela artilharia inimiga. A reação do governo federal foi brutal: milhares foram presos, inclusive empresários e políticos que buscaram manter a ordem e administrar a cidade ou mediar o conflito. Entre eles, estava o jornalista Julio Mesquita, encarcerado por ordem de Bernardes.

Mais uma vez, é Nitrini quem conta: “O único jornal importante de São Paulo, que prosseguia diariamente nas ruas, era O Estado de S. Paulo, de Júlio Mesquita, impresso sob censura em uma só folha, frente e verso. Antes da intentona de 1924, Mesquita apoiava algumas reformas políticas e econômicas coincidentemente defendidas pelos revoltosos nos artigos que escrevia, mas não era favorável à luta armada para realizá-las. Com a derrota do movimento, foi preso e transferido para a capital federal em 2 de agosto. O jornal foi proibido de circular de 29 de julho a 17 de agosto.”

Os tenentes não se renderam. Levaram sua luta ao interior e, depois, foram se unir aos gaúchos comandados por Prestes. E, de lá, muitos rumaram para o exílio do qual alguns não retornaram. O centenário da revolta encontrou o Brasil após mais um momento em que as relações entre o Poder Civil e o Militar estiveram novamente na ordem do dia. Desta vez, as granadas ficaram apenas nas prateleiras, de onde autores como Nitrini podem buscá-las para novas reportagens históricas.

Era o fim da tarde de 4 de julho de 1924 quando o tenente da Força Pública de São Paulo João Baptista Nitrini encontrou o major Miguel Costa, quando deixava o quartel na Luz, no centro de São Paulo. “Às 9 horas da noite você apareça em minha casa.” A ordem do superior deixou claro ao jovem oficial que a “revolução estava na rua”.

Capa do livro 1924 Tenentes Rebeldes, do jornalista Dácio Nitrini Foto: Reprodução/Estadão

Cem anos após o maior e mais sangrento conflito armado da história da cidade de São Paulo, o jornalista Dácio Nitrini, sobrinho de João Baptista, conta que, ao chegar fardado e armado à residência do major, o tenente deparou-se com seu cunhado, o também tenente da Força Pública Índio do Brasil, portando o fuzil do Regimento de Caçadores. A cena é uma das tantas que Nitrini reconstrói em seu livro 1924 Tenentes Rebeldes, onde o jornalista recria o bombardeio da capital paulista, a retirada dos rebeldes e o exílio.

As memórias dos tenentes Nitrini e Índio do Brasil são o fio condutor por meio do qual a sensibilidade e a técnica do jornalista conduz o leitor pelas páginas de sua obra. Os tios do jornalista estavam no olho do furacão: a revolta tenentista de 1924 terminaria com a constituição da coluna Prestes, que cortaria os sertões do País, de Sul a Norte, durante quase dois anos, acossada pelas tropas legalistas até se internar na Bolívia.

Se a história da coluna e de seus líderes marcaria profundamente a República nas décadas seguintes, a da revolta paulista e as ações dos rebelados de sua Força Pública fizeram o nome do major Miguel Costa ser uma presença quase obrigatória ao lado do capitão Luiz Carlos Prestes.

Um dos principais intérpretes de tenentismo no Brasil, Boris Fausto afirmava – assim como seu colega José Murilo de Carvalho – que o tenentismo era um movimento de caráter militar, por sua ética e por sua ótica. E são estas duas que Nitrini procura recuperar ao colocar o olhar dos tenentes paulistas no centro de sua obra – dos relatos dos tios aos passos da Coluna da Morte, do tenente João Cabanas.

Vista de um antigo cemitério no bairro do Ipiranga, em São Paulo durante a Revolução de 1924  Foto: Acervo Estadão

Nitrini exibe os planos dos rebeldes, os combates nas ruas da cidade e a fuga do governo paulista. Mas não esquece do drama da população de São Paulo, apanhada em meio ao fogo cruzado de rebeldes e legalistas e submetida ao bombardeio indiscriminado pelo governo federal, que arrasava a cidade palmo a palmo, técnica que a Força Terrestre desenvolvera para lidar com os rebeldes de Canudos.

Na madrugada do dia 5 de julho, os tios de Nitrini “ficaram quietos, aguardando Miguel Costa despachar ordens com mensageiros desconhecidos”. “Os tenentes Tales e Arlindo surgiram sorrateiros, e receberam do major pastas de couro com os planos táticos e sumiram rápida e silenciosamente no escuro do bairro. Horas depois, João Batista foi procurado pelo major Costa na varanda da casa, onde permanecia de sentinela: ‘Estou a caminho do Regimento e quando você escutar o toque de reunir, corra imediatamente para lá’.”

Era o começo da rebelião. Miguel Costa sublevara os 500 homens do Regimento de Cavalaria. Nas primeiras horas do levante não era possível distinguir quem era rebelde ou legalista. No ímpeto de se tomar a cidade e derrubar o presidente Artur Bernardes, não se pensou em como diferenciar uns dos outros. A cidade acabou cercada pelas tropas federais. As vítimas desse conflito jazem esquecidas nas valas comuns abertas nos cemitérios de uma cidade, que ainda ostenta as marcas da fuzilaria de 1924 em lugares como a torre ao lado do quartel da Luz, antiga sede do 1.º Batalhão da Força Pública, que hoje abriga a Rota.

Quem pôde fugiu da cidade. Duzentos mil de seus habitantes deixaram tudo para trás. Outros 500 mil não tiveram como escapar. Estrangeiros veteranos da 1ª Guerra Mundial, dos exércitos austro-húngaro, alemão e italiano, formaram unidades mercenárias de apoio aos rebeldes.

A luta durou até 28 de julho e opôs cerca de 15 mil governistas a 7 mil rebeldes, entre militares e civis. Nunca se soube ao certo o número de mortos. O governo de então falou em 500, além de 2,5 mil feridos. Mas só a Santa Casa registrara 723 mortos naqueles dias, o que faz as estimativas de vítimas fatais ultrapassarem a casa do milhar.

Nitrini conta essa história – da revolta ao exílio dos tenentes – como um mestre da reportagem. Ao usar seus tios, os colegas rebeldes e os civis para retratar a revolta, Nitrini transforma as vidas de cada um em símbolo de uma década determinante para a República.

As vidas anônimas se misturaram à história não como anedotas, mas como parte da trama infindável de fios por meio do qual o relato se estabelece. É a consciência de Nitrini que faz de cada episódio um instrumento para explicar o Brasil de então e o papel dos militares nas décadas vindouras.

 

Se a capital paulista não teve o mesmo destino da Canudos do Conselheiro é porque os rebeldes daqui resolveram deixá-la antes que ela fosse esmagada pela artilharia inimiga. A reação do governo federal foi brutal: milhares foram presos, inclusive empresários e políticos que buscaram manter a ordem e administrar a cidade ou mediar o conflito. Entre eles, estava o jornalista Julio Mesquita, encarcerado por ordem de Bernardes.

Mais uma vez, é Nitrini quem conta: “O único jornal importante de São Paulo, que prosseguia diariamente nas ruas, era O Estado de S. Paulo, de Júlio Mesquita, impresso sob censura em uma só folha, frente e verso. Antes da intentona de 1924, Mesquita apoiava algumas reformas políticas e econômicas coincidentemente defendidas pelos revoltosos nos artigos que escrevia, mas não era favorável à luta armada para realizá-las. Com a derrota do movimento, foi preso e transferido para a capital federal em 2 de agosto. O jornal foi proibido de circular de 29 de julho a 17 de agosto.”

Os tenentes não se renderam. Levaram sua luta ao interior e, depois, foram se unir aos gaúchos comandados por Prestes. E, de lá, muitos rumaram para o exílio do qual alguns não retornaram. O centenário da revolta encontrou o Brasil após mais um momento em que as relações entre o Poder Civil e o Militar estiveram novamente na ordem do dia. Desta vez, as granadas ficaram apenas nas prateleiras, de onde autores como Nitrini podem buscá-las para novas reportagens históricas.

Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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