A poucas quadras da Praça da Liberdade e da Sé, uma ruazinha de sentido único e pouco movimentada esconde a história de um dos principais arquitetos da São Paulo do começo do século passado. Ali, na casa ornamentada com leões e um “1924″ em sua fachada, viveu Felisberto Ranzini por cinco décadas, até o fim de sua vida.
Embora não tão conhecido, o arquiteto ítalo-brasileiro é um dos autores por trás de alguns dos maiores marcos paulistanos. A lista seleta inclui o Mercado Municipal (o Mercadão) e a Casa das Rosas (na Avenida Paulista), todos pelo escritório de Ramos de Azevedo.
Assim como Ranzini ficou quase desconhecido por décadas, o novo uso do palacete busca resgatar e valorizar figuras históricas. Nesse caso, especialmente da literatura mundial. Isso porque o espaço foi recém-transformado no novíssimo Museu do Livro Esquecido, no centro paulistano.
No momento em que celebra os 100 anos, a antiga residência passou a ter um programa de visitação fixo, cerca de três anos após ser adquirida por um grupo de amigos apaixonados por literatura. A abertura ao público ocorre aos poucos, com a sala de leitura e o acervo em fase de organização, por exemplo.
Há tanto a possibilidade de visitação livre, quanto de tour guiado (seja por um mediador, seja por um audioguia). Além disso, a programação inclui encontros de clubes de leitura, lançamentos de livros, oficinas e mais atividades. A entrada é gratuita até o início de novembro, com cobrança de R$ 20 a partir do dia 9 do próximo mês.
Para além da parte cultural e das visitas, os planos a curto prazo envolvem também serviços de restauro e conservação de livros, que poderão complementar a renda de preservação do espaço. A Casa Ranzini é tombada como patrimônio cultural do Estado e da cidade de São Paulo desde 2015.
Veja os diferentes ambientes da casa no vídeo abaixo (a matéria continua após a visualização):
Por que a casa foi transformada em Museu do Livro Esquecido?
O palacete foi adquirido por um grupo de amigos em 2021, conta o coordenador do museu, Pedro H. Zimerman. Segundo ele, os sócios têm diferentes formações e preferem se manter no anonimato.
“A ideia é ser um lugar voltado para a história do livro — tanto na parte de conservação, com edições muito antigas, quanto de explorar esse acervo nas exposições”, descreve. “Com o público que visita a casa, que tem a atenção despertada para a casa, a ideia é aproveitar essa atenção para voltar para a reflexão sobre a história dos livros e histórias interessantes do mundo da literatura”, completa.
De acordo com Zimerman, a criação de um espaço do tipo era apenas uma ideia até a casa ser colocada à venda e encontrada pelo grupo, que não estava em uma busca ativa por um imóvel. “Foi uma coincidência juntar a ideia de restaurar a casa com a elaboração do museu”, diz. “Se não fosse nessa casa, dificilmente teria saído do papel”, explica.
Para a inauguração, foram reunidos exemplares de livros de Ranzini (sobre o estilo colonial brasileiro e o Rio de Janeiro), assim como dois retratos de crianças, igualmente de sua autoria. “Uma das nossas missões é descobrir quem são. O menino pode ser o filho único dele”, aponta o coordenador do museu.
Ao todo, o acervo reúne cerca de 5 mil ou 6 mil livros, desde exemplares mais recentes até do século 16, trazidos de coleções dos sócios e de aquisições em sebos e leilões, além de doações (selecionadas a partir de uma curadoria). Há, especialmente, literatura clássica e “livros sobre livros”, voltados ao estudo da literatura, visto que o espaço também quer ser uma referência para pesquisadores profissionais e amadores.
Dentre as raridades do acervo, está uma edição estrangeira das obras de Santo Agostinho, publicada na Basiléia (Suíça). “O que chama a atenção é que tem muitas anotações manuscritas, em grego, em hebraico, em árabe e em latim. Então, imagina quantos lugares esse livro passou, e o que está escrito — que a gente ainda não conhece esse significado”, justifica o coordenador.
O nome do museu faz referência às obras literárias que ficaram esquecidas com o tempo, o que está no símbolo do espaço (um homem que resgata um livro com uma vara de pesca). O conceito também envolve a ideia de trazer aspectos não tão lembrados de alguns autores, temas etc.
O museu é repleto de mobiliário em madeira, em grande parte advindo de antiquários, assim como foram trocados os ilustres, também como parte da ambientação. Nos cômodos, o que também chama a atenção são os vitrais, como o que ilustra possivelmente Veneza até um outro com a imagem de uma embarcação.
Antes do museu ser inaugurado, foram feitas algumas intervenções, como a que resgatou o piso original do quintal e a recuperação do forro, que estava comprometido. Várias marcas do processo de restauro foram mantidas, a fim de que os visitantes entrem em contato com esse tipo de obra. Somente na coifa da antiga cozinha, por exemplo, foram encontradas 15 camadas diferentes de tinta.
A atual mostra de abertura se chama “A solidão e a escrita: pioneiras”, focada nas escritoras Carolina Maria de Jesus (século 20), Teresa Margarida da Silva e Orta (século 18) e Christine de Pizan (Cristina de Pisano, séculos 14/15). Seguirá em cartaz até 23 de fevereiro.
Desde a inauguração, o espaço é aberto nas terças-feiras (visitas guiadas) e no fim de semana, que concentra a maior parte do fluxo. Estuda-se a ampliação em mais um dia, mas a ideia não é de abertura diária.
Segundo o coordenador, o museu tem recebido cerca de 120 a 200 pessoas por dia nos fins de semana. Esse público envolve principalmente o que descobriu o espaço pelas redes sociais, grupos levados por guias de turismo, indicações e, ainda, alguns curiosos do entorno.
Qual é a história da Casa Ranzini? E quem foi Felisberto Ranzini?
Nascido em 1881, na Lombardia, Felisberto Ranzini chegou a São Paulo aos sete anos de idade, junto da família, de imigrantes italianos. Estudou no Liceu de Artes e Ofícios até se tornar um “arquiteto prático”, integrando a equipe de Ramos de Azevedo por cerca de quatro décadas, de acordo com o historiador Waldir Salvadore.
“Era parte das dezenas de italianos que trabalhavam no mítico escritório do Ramos de Azevedo”, conta. “Esses profissionais ficavam no limbo, desenhando, projetando, mas, como de praxe, não assinavam. Na assinatura, ficava apenas o escritório Ramos de Azevedo”, completa.
Dentre os principais projetos em que se envolveu, além do Mercadão, da Casa das Rosas e do Palácio das Indústrias, estão, também, o Palácio dos Correios (no Vale do Anhangabaú), parte dos pavilhões da Santa Casa de Misericórdia e o Palácio da Justiça. Também foi pintor, além de professor no Liceu e na Escola Politécnica. Apesar disso, para Salvadore, o arquiteto “viveu na sombra” durante toda a vida.
Ranzini projetou a própria casa no começo do século passado, onde morou com a família até a sua morte, em 1976. O local seguiu com descendentes do arquiteto até por volta de 2006, quando foi vendido.
Embora eclética, a Casa Ranzini tinha influência do chamado estilo florentino — adotado por parte dos imigrantes italianos que ascendiam socialmente de acordo com Salvadore, autor do livro Italiano e nosso: Felisberto Ranzini e o ‘estilo florentino’. “O palacete fiorentino era simbolicamente a glória, uma expressão de sucesso, como mais adiante foi a arquitetura de inspiração neoclássica”, avalia.
O historiador explica que os contatos que tinha dentro do escritório Ramos de Azevedo ajudaram o arquiteto a ter acesso a equipamentos e matéria-prima importados e de alta qualidade. “A Casa Ranzini é uma pérola. Ele fez um projeto de primeiríssima linha”, diz. De acordo com o historiador, outras residências de tijolo à vista na mesma rua também foram projetadas por Ranzini, que as mantinha como imóveis de renda (para aluguel), das quais duas permanecem até hoje.
“Vi várias delas (casas de inspiração florentina) desaparecendo”, recorda-se. Para ele, o tombamento “salvou” o imóvel, embora relate as dificuldades de mantê-lo intacto até a venda para os atuais donos.
“Hoje, a casa é vista. Houve um tempo em que, simplesmente, não, até por estar em lugar improvável, fora dos grandes eixos de circulação”, avalia o historiador. Salvadore foi autor do pedido de tombamento, assim como era um dos proprietários do imóvel após ter sido vendido pela família Ranzini, por volta de 2005, quando chegou a ser transformado em um centro de artes.
A casa tem dois andares, além de um porão, onde ficava o escritório de Ranzini. Segundo relato de um neto de Ranzini ao historiador, o arquiteto guardava uma pintura do Mercadão no local, com a inscrição de autoria de Felisberto Ranzini — o que se tratava quase de uma pequena subversão, pois os projetos costumavam ser assinados apenas com o nome do escritório.
Para o historiador, alguns elementos na fachada podem remeter à arquitetura da Itália fascista. Referências do tipo estavam presentes em outras obras públicas e privadas do período na cidade.
O que fazer no entorno?
O museu fica na divisa entre os distritos Sé e Liberdade. Há, portanto, diversos centros culturais, teatros, museus, igrejas históricas e opções gastronômicas a poucas quadras de distância.
Entre as opções de roteiro mais próximas, estão o Museu do Tribunal de Justiça de São Paulo, localizado em uma via paralela à Casa Ranzini. Perto dali, com poucos minutos de caminhada, também estão a Praça da Liberdade, a casa de shows Cine Joia, o Templo Lohan (budista), a Catedral da Sé, a Capela dos Aflitos e o Sesc Carmo, dentre outras atrações.
Museu do Livro Esquecido
Visitação livre nos sábados e domingos, das 10h às 17h
Visitas guiadas nas tardes de terça-feira
Consulta ao acervo (mediante agendamento) nas segundas, terças e sextas-feiras, das 9h às 17h
Rua Santa Luzia, 31 — distrito Sé
Ingressos: entrada franca até 3 de novembro; depois, a R$ 20 (com meia entrada para casos previstos em lei), via Sympla: www.sympla.com.br/produtor/museudolivroesquecido
Mais informações: www.instagram.com/museudolivroesquecido