Moradores da Pompeia, zona oeste de São Paulo, travam uma briga na Justiça para impedir a construção de um edifício de 22 andares, projetado pela construtora e incorporadora Exto Terra. O grupo afirma que o empreendimento traz riscos à Praça Homero Silva (também conhecida como Praça da Nascente), que fica nas imediações da área do empreendimento (altura do número 2.195 da Avenida Pompeia), e prejudica as possíveis nascentes de água que afloram no bairro.
A disputa contra a Exto se arrasta na Justiça há nove anos - uma liminar impede a construção. Em julho, houve novo desdobramento: perícia judicial determinada pelo juiz que acompanha o caso indicou a existência de seis afloramentos de água próximos ao terreno da incorporadora.
Os laudos técnicos apresentados pelo Ministério Público de São Paulo também apontam a presença desses afloramentos. Por outro lado, a Prefeitura de São Paulo e o Exto atestam, também por meio de estudos, que a região não possui nascentes.
Uma frente que reúne ativistas ambientais e moradores dos bairros daquela região organizam manifestação para este sábado, 23, às 10h, em data que marca o início da primavera. O grupo defende também que o lote da construtora seja anexado à Praça Homero Silva para ampliar a área verde do bairro.
Se comprovada a existência de nascentes, o local deveria se configurar como Área de Proteção Permanente (APP), conforme prevê o artigo 4º do Código Florestal (12.651/2012). “Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei: as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros”.
A lei determina que as nascentes sejam preservadas (de preferência com vegetação nativa) e que não se tenha ocupação dentro desse raio de 50 metros.
“Com a revisão do Plano Diretor (promulgado em julho) e da Lei de Zoneamento (cuja proposta da Prefeitura foi divulgada nesta semana), achamos por bem retomar a campanha pela Praça da Nascente sob a luz de que a cidade está perdendo áreas verdes”, afirma a arquiteta e urbanista Luciana Cury, que faz parte do coletivo Ocupe e Abrace. “A vegetação (de São Paulo) está sendo suprimida”, diz.
O Plano Diretor e a Lei de Zoneamento são duas das mais importantes leis que orientam e regulam a forma como a cidade deve crescer e como pode ser ocupada. Se o Plano Diretor fornece diretrizes para o uso do espaço na escala macro da cidade, é a Lei de Zoneamento que especifica e regula como essa ocupação deve ser feita no micro, como em quadras e praças, por exemplo.
O local que abriga a Praça da Nascente é considerada uma Zona Especial de Proteção Ambiental (Zepam), enquanto o terreno da Exto Terra está sobre uma Zona de Centralidade (ZC), que permite a construção de empreendimentos - é possível checar esses dados neste mapa interativo do Estadão.
Luciana e outros ativistas, nos últimos dois meses, têm buscado convencer a Câmara Municipal, que votará a revisão da Lei de Zoneamento, de alterar o lote que pertence à construtora para zona de proteção ambiental.
Afundamentos podem matar as árvores, diz urbanista
O arquiteto e urbanista José Otávio Lotufo, pesquisador do Labverde da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (USP), diz que a preservação das nascentes é importante para manter a qualidade do sistema hídrico, da biodiversidade e da vida das pessoas que ocupam esses espaços naturais.
Segundo ele, há riscos ambientais de se construir em áreas de nascentes, prejudicando a capacidade de irrigação da vegetação local por causa de mudanças no lençol freático. Outro problema é criar áreas de sombreamento e barragem de energia solar que são necessárias para as árvores.
“Quando você constrói um prédio de grande porte, é necessário fazer fundações (construir para baixo) profundas, que vão passar pelo lençol freático. Então, essa construção para baixo resulta em rebaixamento desse lençol. Árvores de grande porte, com raízes consolidadas, podem até morrer com esse rebaixamento”, diz Lotufo, que desenvolveu a sua tese de doutorado, em 2013, em cima do caso da Praça da Nascente e pesquisou a relação do espaço com os moradores da região. Para ele, a mobilização demonstra um interesse dos munícipes de proteger as áreas coletivas.
Briga na Justiça já dura nove anos
A briga na Justiça entre moradores da Pompeia e a construtora Exto Terra começou em 2014. O terreno de 1,7 mil m², que abrigava oito casas, foi comprado pela empresa para a construção de um prédio. Ao saberem, os moradores fizeram uma petição pública em oposição à obra.
Na época, a Praça da Nascente tinha acabado de passar por um processo de revitalização encabeçada pelos próprios moradores da Pompeia. O local era ponto de assalto e comércio de drogas, e não era incomum encontrar lixo acumulado no meio da vegetação segundo os moradores, que viam o local abandonado.
A reforma da área verde envolveu a limpeza, instalação de brinquedos para crianças, reforço na iluminação e abertura de novos acessos e caminhos pela praça. A população aproveitou a água das nascentes para preencher um lago que construíram e também irrigar uma horta cuidada e cultivada pela própria comunidade.
Com as assinaturas da petição pública, os moradores entraram com uma representação no MP. A Promotoria decidiu investigar e acionou a Justiça para impedir a construção do prédio por meio de ação civil pública.
Na ação, o Ministério Público diz que a Exto Terra não tem permissão de erguer o empreendimento imobiliário porque a região seria Área de Proteção Permanente (APP) em razão da presença de, ao menos, seis afloramentos de água na Praça Homero Silva, que desembocam no Córrego Água Preta.
Os afloramentos de água foram identificados e mapeados pelo Instituto Geográfico e Cartográfico do Estado de São Paulo (IGC), em vistoria feita na praça em 2014. E, em 2015, em nova análise feita pelo mesmo órgão, o IGC encontrou uma nascente dentro do terreno que atualmente pertence a Exto.
A empresa, que possui o terreno desde 2014 e nunca conseguiu iniciar as obras, afirma que o local não é impróprio para a construção. A reportagem esteve na Pompeia e constatou que o terreno está fechado por tapumes, mas não tem placas ou informativos sobre o empreendimento imobiliário. Do alto da encosta, na Praça da Nascente, é possível ver que as obras ainda não começaram e que há ainda ruínas das antigas casas que ficavam no local.
Em 2021, o juiz da 8ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo, Luís Eduardo Medeiros Grisolia, acatou os argumentos do MP e concedeu liminar - isto é, de caráter provisório - afirmando que a preservação de nascente é de interesse público. Com isso, proibiu a Prefeitura de São Paulo de autorizar a Exto de levantar o empreendimento sob o risco de a empresa pagar R$ 100 mil de multa caso a ordem fosse descumprida.
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A construtora recorreu da decisão e apresentou laudo para atestar que o terreno não é impróprio para a construção.
Diante do impasse das duas versões, em junho de 2022, o mesmo juiz determinou que a área fosse novamente avaliada por um perito indicado pelo próprio magistrado. O profissional responsável pela perícia judicial avaliou e concluiu que o local tem seis nascentes com afloramentos. Apontou ainda que seis delas estariam dentro de um raio de 50 metros da área do futuro empreendimento.
“Há nascentes no local, inclusive cartografada pela Emplasa, no entanto pela falta de detalhamento nos estudos realizados, não se sabe com exatidão como é o fluxo de água subterrânea no interior da Praça Homero Silva. Uma coisa que pode-se afirmar é que a região como um todo sempre foi marcada (historicamente), pela presença de recurso hídrico”, aponta o perito no laudo obtido pela reportagem.
Ao Estadão, o MP diz concordar com a perícia judicial e destaca a identificação de “6 (seis) pontos de surgência de água (P1, P2, P3, P4, P7 e P8), classificados como nascentes, inclusive alimentando o Córrego Água Preta originado nessa praça.”
Em nota, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que “o processo esteve em grau de recurso e, agora, está em fase de regularização dos honorários periciais.”
Construtora diz que documentação está em ‘consonância’ com a lei
Em nota, a Exto afirma que a documentação para a construção no terreno na Avenida Pompeia “está em perfeita consonância com as normas vigentes nas esferas municipais, estaduais e federais”. Afirma ainda que foi expedido o Alvará de Aprovação pela gestão municipal. O documento, porém, não dá direito à construção.
“Ou seja, todos os órgãos técnicos da Prefeitura de São Paulo (como o DEPAVE - Departamento de Parques e Áreas Verdes e a SVMA - Secretaria do Verde e do Meio Ambiente) aprovaram tecnicamente a construção do empreendimento da Exto na Avenida Pompéia”, completou a construtora.
“Sempre que inicia uma incorporação imobiliária, a Exto somente efetiva a compra de seus terrenos após criteriosa análise dos aspectos jurídicos, legais e ambientais. Para o terreno na Avenida Pompéia não foi diferente”, informou a Exto no comunicado. A empresa diz ainda que o terreno já abrigava habitações que “nunca foi objeto de proteção ambiental.”
A Exto diz ainda ter compromisso com a sociedade e o município, e que suas atividades são pautadas na “legalidade e lisura projetos e empreendimentos”, e afirma “que não irá aceitar intervenções ilegais que lhe ocasionem prejuízos”.
Prefeitura diz que não há nascentes no local
Já a Prefeitura, por meio da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, afirma que, um estudo geológico-hidrogeológico-ambiental, feito no bairro da Pompeia e concluído em 2018, “apontou a inexistência de nascentes, conforme definição da legislação ambiental vigente, tanto para a área em questão, como para as áreas adjacentes.” Por conta disso, o local, segundo a administração, não pode ser considerada uma APP (Área de Preservação Permanente).
A Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL), confirmou que foi emitido Alvará de Aprovação de Edificação Nova em 2022 à Exto. “O documento não dá direito de iniciar obra”, afirma. “Até a presente data, não houve solicitação de alvará de execução de obra para a área informada”, completou a Prefeitura.