‘Ninguém morre duas vezes, né?', diz mãe de vítima da chacina de Osasco


Zilda Maria de Paula, de 64 anos, que organizou movimento Treze de Agosto, é uma das testemunhas no julgamento

Por Felipe Resk
Zilda Maria guarda camisas, medalhas e bola do filho, Fernando Luiz de Paula, morto aos 34 anos na chacina do dia 13 de agosto de 2015 Foto: GABRIELA BILO / ESTADÃO

OSASCO - Quando a empregada doméstica Zilda Maria de Paula, de 64 anos, for testemunhar no julgamento da maior chacina da história de São Paulo, o plenário estará diante de uma colecionadora de ausências. A mais recente: a do filho Fernando Luiz de Paula, que aos 34 anos foi morto a tiros no Bar do Juvenal, em Osasco, no maior ataque da noite de 13 de agosto de 2015, deixando para trás uma bola de basquete, nove medalhas desportivas, duas camisas do São Paulo e uma pasta de dente, guardadas com cuidado por dona Zilda. “Não consegui me desfazer de nada disso”, conta.

As lembranças do filho estão espalhadas pela casa. Aparecem em uma marca de dedo e num risco a lápis no teto. Na parede que ele pintou de amarelo. Em quadros, em porta-retratos e até no aparelho de som que nunca mais tocou desde a chacina. Nas prateleiras lotadas de CDs, só falta o disco do Racionais MC, o preferido de Fernando. “Não ia conseguir ouvir mesmo, dei de presente para um amigo.”

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Na semana anterior ao julgamento, dona Zilda estava apreensiva e preferiu passar a maior parte do tempo em casa, em uma viela do Jardim Munhoz, periferia de Osasco, onde vive com sete vira-latas. “Vou falar em nome de todas as famílias que perderam alguém naquele dia”, diz, com a voz firme, para depois amolecer. “E eu não estou preparada para isso, não sei como vai ser, não sei o que vou dizer.”

Antes de continuar, dona Zilda expõe uma dúvida: “Eu vou precisar falar com os advogados deles?”. Eles, no caso, são os réus: dois policiais militares e um guarda municipal de Barueri, acusados dos assassinatos. Dona Zilda faz uma careta ao ouvir que, se a defesa fizer pergunta, ela terá de responder. “Eu não quero ver a cara deles. Sei quem era meu filho, e eles vão dizer que ele era outra coisa. Eu já não pude defender meu filho no dia do crime, agora não vou poder defender de novo.”

É por isso que dona Zilda não quer assistir ao júri. “Assim que terminar meu depoimento, eu vou ficar lá fora, segurando a faixa de protesto: ninguém vai calar a morte do meu filho.”

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Foi ela quem, uma semana após a chacina, organizou uma cerimônia em memória das vítimas, na frente do Bar do Juvenal, com um padre, um pastor e um pai de santo (um dos oito assassinados no local era adepto do candomblé).

Era o embrião do Treze de Agosto, movimento liderado por dona Zilda para articular familiares das vítimas, pedir indenização pelas mortes na Justiça e também ajudar outras pessoas envolvidas em casos de letalidade policial. Um mês após o crime, o grupo também organizou o primeiro ato na Avenida Paulista, com faixas e flores, que se repetiu nos aniversários de um e dois anos da chacina.

Boataria

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Na favela onde mora há 20 anos, é comum surgirem burburinhos sobre toque de recolher ou retaliações da polícia. Na denúncia do Ministério Público, o promotor afirma que o Bar do Juvenal era frequentado por um GCM que morreu dias antes da chacina – este é um dos motivos apontados pela acusação para o crime. E dona Zilda não tem medo de denunciar os agentes de segurança? “Se eu disser que já fui ameaçada, vou estar mentindo. Mas medo não tenho, não. Ninguém morre duas vezes, né? E eu já morri. Morri na hora que meu filho foi baleado.”

Se alguém perguntar se ela espera ficar em paz caso os réus sejam condenados, dona Zilda vai responder que não. “Independentemente de eles pegarem 10, 20, 30 anos de prisão, isso não vai trazer meu filho de volta”, afirma. “O que tem de mudar é a cultura da violência, porque, se continuar nessa de ‘vamos matar bandido’, só vai morrer inocente, civil ou policial.”

Vida

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Dona Zilda passou a infância na Vila Brasilândia, zona norte de São Paulo, e é filha de pais que nunca conheceu. “Eu não nasci, eu surgi”, diz. Criada por uma empregada doméstica que morava com os patrões, foi viver na rua aos 12 anos, quando o entendimento de todos era que ela já tinha idade para trabalhar. Por várias noites, dormiu na calçada do Cemitério da Consolação ou da igreja mais próxima.

Na adolescência, ganhou dinheiro como cambista, comprando ingressos a 2 cruzeiros e revendendo a 3 nos festivais de música da Record. “Quando sobrava um dinheirinho, a gente comprava minipizza, era um barato. Tenho muita saudade desse tempo.” Na escola, foi até o segundo ano do primário, atual ensino fundamental.

Para contar as vezes que ficou grávida, dona Zilda precisa das duas mãos. Usando a esquerda, estica quatro dedos magricelos, um para cada aborto que sofreu, e levanta o polegar para incluir uma menininha, que, prematura, morreu logo após o parto. Com o indicador da mão direita, mostra o único feto que venceu o deslocamento de placenta da mãe, Fernando.

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“Que futuro eu tenho? Que futuro? Não tenho neto, não tenho segunda geração. Meu único sangue era o meu filho, e eu não sei nem da minha origem”, diz. “Se sair a indenização, vou comprar um lugarzinho no interior e me mandar.” Na bagagem, já decidiu, vai levar uma bola de basquete, nove medalhas desportivas, duas camisas do São Paulo e uma pasta de dente.

Zilda Maria guarda camisas, medalhas e bola do filho, Fernando Luiz de Paula, morto aos 34 anos na chacina do dia 13 de agosto de 2015 Foto: GABRIELA BILO / ESTADÃO

OSASCO - Quando a empregada doméstica Zilda Maria de Paula, de 64 anos, for testemunhar no julgamento da maior chacina da história de São Paulo, o plenário estará diante de uma colecionadora de ausências. A mais recente: a do filho Fernando Luiz de Paula, que aos 34 anos foi morto a tiros no Bar do Juvenal, em Osasco, no maior ataque da noite de 13 de agosto de 2015, deixando para trás uma bola de basquete, nove medalhas desportivas, duas camisas do São Paulo e uma pasta de dente, guardadas com cuidado por dona Zilda. “Não consegui me desfazer de nada disso”, conta.

As lembranças do filho estão espalhadas pela casa. Aparecem em uma marca de dedo e num risco a lápis no teto. Na parede que ele pintou de amarelo. Em quadros, em porta-retratos e até no aparelho de som que nunca mais tocou desde a chacina. Nas prateleiras lotadas de CDs, só falta o disco do Racionais MC, o preferido de Fernando. “Não ia conseguir ouvir mesmo, dei de presente para um amigo.”

Na semana anterior ao julgamento, dona Zilda estava apreensiva e preferiu passar a maior parte do tempo em casa, em uma viela do Jardim Munhoz, periferia de Osasco, onde vive com sete vira-latas. “Vou falar em nome de todas as famílias que perderam alguém naquele dia”, diz, com a voz firme, para depois amolecer. “E eu não estou preparada para isso, não sei como vai ser, não sei o que vou dizer.”

Antes de continuar, dona Zilda expõe uma dúvida: “Eu vou precisar falar com os advogados deles?”. Eles, no caso, são os réus: dois policiais militares e um guarda municipal de Barueri, acusados dos assassinatos. Dona Zilda faz uma careta ao ouvir que, se a defesa fizer pergunta, ela terá de responder. “Eu não quero ver a cara deles. Sei quem era meu filho, e eles vão dizer que ele era outra coisa. Eu já não pude defender meu filho no dia do crime, agora não vou poder defender de novo.”

É por isso que dona Zilda não quer assistir ao júri. “Assim que terminar meu depoimento, eu vou ficar lá fora, segurando a faixa de protesto: ninguém vai calar a morte do meu filho.”

Foi ela quem, uma semana após a chacina, organizou uma cerimônia em memória das vítimas, na frente do Bar do Juvenal, com um padre, um pastor e um pai de santo (um dos oito assassinados no local era adepto do candomblé).

Era o embrião do Treze de Agosto, movimento liderado por dona Zilda para articular familiares das vítimas, pedir indenização pelas mortes na Justiça e também ajudar outras pessoas envolvidas em casos de letalidade policial. Um mês após o crime, o grupo também organizou o primeiro ato na Avenida Paulista, com faixas e flores, que se repetiu nos aniversários de um e dois anos da chacina.

Boataria

Na favela onde mora há 20 anos, é comum surgirem burburinhos sobre toque de recolher ou retaliações da polícia. Na denúncia do Ministério Público, o promotor afirma que o Bar do Juvenal era frequentado por um GCM que morreu dias antes da chacina – este é um dos motivos apontados pela acusação para o crime. E dona Zilda não tem medo de denunciar os agentes de segurança? “Se eu disser que já fui ameaçada, vou estar mentindo. Mas medo não tenho, não. Ninguém morre duas vezes, né? E eu já morri. Morri na hora que meu filho foi baleado.”

Se alguém perguntar se ela espera ficar em paz caso os réus sejam condenados, dona Zilda vai responder que não. “Independentemente de eles pegarem 10, 20, 30 anos de prisão, isso não vai trazer meu filho de volta”, afirma. “O que tem de mudar é a cultura da violência, porque, se continuar nessa de ‘vamos matar bandido’, só vai morrer inocente, civil ou policial.”

Vida

Dona Zilda passou a infância na Vila Brasilândia, zona norte de São Paulo, e é filha de pais que nunca conheceu. “Eu não nasci, eu surgi”, diz. Criada por uma empregada doméstica que morava com os patrões, foi viver na rua aos 12 anos, quando o entendimento de todos era que ela já tinha idade para trabalhar. Por várias noites, dormiu na calçada do Cemitério da Consolação ou da igreja mais próxima.

Na adolescência, ganhou dinheiro como cambista, comprando ingressos a 2 cruzeiros e revendendo a 3 nos festivais de música da Record. “Quando sobrava um dinheirinho, a gente comprava minipizza, era um barato. Tenho muita saudade desse tempo.” Na escola, foi até o segundo ano do primário, atual ensino fundamental.

Para contar as vezes que ficou grávida, dona Zilda precisa das duas mãos. Usando a esquerda, estica quatro dedos magricelos, um para cada aborto que sofreu, e levanta o polegar para incluir uma menininha, que, prematura, morreu logo após o parto. Com o indicador da mão direita, mostra o único feto que venceu o deslocamento de placenta da mãe, Fernando.

“Que futuro eu tenho? Que futuro? Não tenho neto, não tenho segunda geração. Meu único sangue era o meu filho, e eu não sei nem da minha origem”, diz. “Se sair a indenização, vou comprar um lugarzinho no interior e me mandar.” Na bagagem, já decidiu, vai levar uma bola de basquete, nove medalhas desportivas, duas camisas do São Paulo e uma pasta de dente.

Zilda Maria guarda camisas, medalhas e bola do filho, Fernando Luiz de Paula, morto aos 34 anos na chacina do dia 13 de agosto de 2015 Foto: GABRIELA BILO / ESTADÃO

OSASCO - Quando a empregada doméstica Zilda Maria de Paula, de 64 anos, for testemunhar no julgamento da maior chacina da história de São Paulo, o plenário estará diante de uma colecionadora de ausências. A mais recente: a do filho Fernando Luiz de Paula, que aos 34 anos foi morto a tiros no Bar do Juvenal, em Osasco, no maior ataque da noite de 13 de agosto de 2015, deixando para trás uma bola de basquete, nove medalhas desportivas, duas camisas do São Paulo e uma pasta de dente, guardadas com cuidado por dona Zilda. “Não consegui me desfazer de nada disso”, conta.

As lembranças do filho estão espalhadas pela casa. Aparecem em uma marca de dedo e num risco a lápis no teto. Na parede que ele pintou de amarelo. Em quadros, em porta-retratos e até no aparelho de som que nunca mais tocou desde a chacina. Nas prateleiras lotadas de CDs, só falta o disco do Racionais MC, o preferido de Fernando. “Não ia conseguir ouvir mesmo, dei de presente para um amigo.”

Na semana anterior ao julgamento, dona Zilda estava apreensiva e preferiu passar a maior parte do tempo em casa, em uma viela do Jardim Munhoz, periferia de Osasco, onde vive com sete vira-latas. “Vou falar em nome de todas as famílias que perderam alguém naquele dia”, diz, com a voz firme, para depois amolecer. “E eu não estou preparada para isso, não sei como vai ser, não sei o que vou dizer.”

Antes de continuar, dona Zilda expõe uma dúvida: “Eu vou precisar falar com os advogados deles?”. Eles, no caso, são os réus: dois policiais militares e um guarda municipal de Barueri, acusados dos assassinatos. Dona Zilda faz uma careta ao ouvir que, se a defesa fizer pergunta, ela terá de responder. “Eu não quero ver a cara deles. Sei quem era meu filho, e eles vão dizer que ele era outra coisa. Eu já não pude defender meu filho no dia do crime, agora não vou poder defender de novo.”

É por isso que dona Zilda não quer assistir ao júri. “Assim que terminar meu depoimento, eu vou ficar lá fora, segurando a faixa de protesto: ninguém vai calar a morte do meu filho.”

Foi ela quem, uma semana após a chacina, organizou uma cerimônia em memória das vítimas, na frente do Bar do Juvenal, com um padre, um pastor e um pai de santo (um dos oito assassinados no local era adepto do candomblé).

Era o embrião do Treze de Agosto, movimento liderado por dona Zilda para articular familiares das vítimas, pedir indenização pelas mortes na Justiça e também ajudar outras pessoas envolvidas em casos de letalidade policial. Um mês após o crime, o grupo também organizou o primeiro ato na Avenida Paulista, com faixas e flores, que se repetiu nos aniversários de um e dois anos da chacina.

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Na favela onde mora há 20 anos, é comum surgirem burburinhos sobre toque de recolher ou retaliações da polícia. Na denúncia do Ministério Público, o promotor afirma que o Bar do Juvenal era frequentado por um GCM que morreu dias antes da chacina – este é um dos motivos apontados pela acusação para o crime. E dona Zilda não tem medo de denunciar os agentes de segurança? “Se eu disser que já fui ameaçada, vou estar mentindo. Mas medo não tenho, não. Ninguém morre duas vezes, né? E eu já morri. Morri na hora que meu filho foi baleado.”

Se alguém perguntar se ela espera ficar em paz caso os réus sejam condenados, dona Zilda vai responder que não. “Independentemente de eles pegarem 10, 20, 30 anos de prisão, isso não vai trazer meu filho de volta”, afirma. “O que tem de mudar é a cultura da violência, porque, se continuar nessa de ‘vamos matar bandido’, só vai morrer inocente, civil ou policial.”

Vida

Dona Zilda passou a infância na Vila Brasilândia, zona norte de São Paulo, e é filha de pais que nunca conheceu. “Eu não nasci, eu surgi”, diz. Criada por uma empregada doméstica que morava com os patrões, foi viver na rua aos 12 anos, quando o entendimento de todos era que ela já tinha idade para trabalhar. Por várias noites, dormiu na calçada do Cemitério da Consolação ou da igreja mais próxima.

Na adolescência, ganhou dinheiro como cambista, comprando ingressos a 2 cruzeiros e revendendo a 3 nos festivais de música da Record. “Quando sobrava um dinheirinho, a gente comprava minipizza, era um barato. Tenho muita saudade desse tempo.” Na escola, foi até o segundo ano do primário, atual ensino fundamental.

Para contar as vezes que ficou grávida, dona Zilda precisa das duas mãos. Usando a esquerda, estica quatro dedos magricelos, um para cada aborto que sofreu, e levanta o polegar para incluir uma menininha, que, prematura, morreu logo após o parto. Com o indicador da mão direita, mostra o único feto que venceu o deslocamento de placenta da mãe, Fernando.

“Que futuro eu tenho? Que futuro? Não tenho neto, não tenho segunda geração. Meu único sangue era o meu filho, e eu não sei nem da minha origem”, diz. “Se sair a indenização, vou comprar um lugarzinho no interior e me mandar.” Na bagagem, já decidiu, vai levar uma bola de basquete, nove medalhas desportivas, duas camisas do São Paulo e uma pasta de dente.

Zilda Maria guarda camisas, medalhas e bola do filho, Fernando Luiz de Paula, morto aos 34 anos na chacina do dia 13 de agosto de 2015 Foto: GABRIELA BILO / ESTADÃO

OSASCO - Quando a empregada doméstica Zilda Maria de Paula, de 64 anos, for testemunhar no julgamento da maior chacina da história de São Paulo, o plenário estará diante de uma colecionadora de ausências. A mais recente: a do filho Fernando Luiz de Paula, que aos 34 anos foi morto a tiros no Bar do Juvenal, em Osasco, no maior ataque da noite de 13 de agosto de 2015, deixando para trás uma bola de basquete, nove medalhas desportivas, duas camisas do São Paulo e uma pasta de dente, guardadas com cuidado por dona Zilda. “Não consegui me desfazer de nada disso”, conta.

As lembranças do filho estão espalhadas pela casa. Aparecem em uma marca de dedo e num risco a lápis no teto. Na parede que ele pintou de amarelo. Em quadros, em porta-retratos e até no aparelho de som que nunca mais tocou desde a chacina. Nas prateleiras lotadas de CDs, só falta o disco do Racionais MC, o preferido de Fernando. “Não ia conseguir ouvir mesmo, dei de presente para um amigo.”

Na semana anterior ao julgamento, dona Zilda estava apreensiva e preferiu passar a maior parte do tempo em casa, em uma viela do Jardim Munhoz, periferia de Osasco, onde vive com sete vira-latas. “Vou falar em nome de todas as famílias que perderam alguém naquele dia”, diz, com a voz firme, para depois amolecer. “E eu não estou preparada para isso, não sei como vai ser, não sei o que vou dizer.”

Antes de continuar, dona Zilda expõe uma dúvida: “Eu vou precisar falar com os advogados deles?”. Eles, no caso, são os réus: dois policiais militares e um guarda municipal de Barueri, acusados dos assassinatos. Dona Zilda faz uma careta ao ouvir que, se a defesa fizer pergunta, ela terá de responder. “Eu não quero ver a cara deles. Sei quem era meu filho, e eles vão dizer que ele era outra coisa. Eu já não pude defender meu filho no dia do crime, agora não vou poder defender de novo.”

É por isso que dona Zilda não quer assistir ao júri. “Assim que terminar meu depoimento, eu vou ficar lá fora, segurando a faixa de protesto: ninguém vai calar a morte do meu filho.”

Foi ela quem, uma semana após a chacina, organizou uma cerimônia em memória das vítimas, na frente do Bar do Juvenal, com um padre, um pastor e um pai de santo (um dos oito assassinados no local era adepto do candomblé).

Era o embrião do Treze de Agosto, movimento liderado por dona Zilda para articular familiares das vítimas, pedir indenização pelas mortes na Justiça e também ajudar outras pessoas envolvidas em casos de letalidade policial. Um mês após o crime, o grupo também organizou o primeiro ato na Avenida Paulista, com faixas e flores, que se repetiu nos aniversários de um e dois anos da chacina.

Boataria

Na favela onde mora há 20 anos, é comum surgirem burburinhos sobre toque de recolher ou retaliações da polícia. Na denúncia do Ministério Público, o promotor afirma que o Bar do Juvenal era frequentado por um GCM que morreu dias antes da chacina – este é um dos motivos apontados pela acusação para o crime. E dona Zilda não tem medo de denunciar os agentes de segurança? “Se eu disser que já fui ameaçada, vou estar mentindo. Mas medo não tenho, não. Ninguém morre duas vezes, né? E eu já morri. Morri na hora que meu filho foi baleado.”

Se alguém perguntar se ela espera ficar em paz caso os réus sejam condenados, dona Zilda vai responder que não. “Independentemente de eles pegarem 10, 20, 30 anos de prisão, isso não vai trazer meu filho de volta”, afirma. “O que tem de mudar é a cultura da violência, porque, se continuar nessa de ‘vamos matar bandido’, só vai morrer inocente, civil ou policial.”

Vida

Dona Zilda passou a infância na Vila Brasilândia, zona norte de São Paulo, e é filha de pais que nunca conheceu. “Eu não nasci, eu surgi”, diz. Criada por uma empregada doméstica que morava com os patrões, foi viver na rua aos 12 anos, quando o entendimento de todos era que ela já tinha idade para trabalhar. Por várias noites, dormiu na calçada do Cemitério da Consolação ou da igreja mais próxima.

Na adolescência, ganhou dinheiro como cambista, comprando ingressos a 2 cruzeiros e revendendo a 3 nos festivais de música da Record. “Quando sobrava um dinheirinho, a gente comprava minipizza, era um barato. Tenho muita saudade desse tempo.” Na escola, foi até o segundo ano do primário, atual ensino fundamental.

Para contar as vezes que ficou grávida, dona Zilda precisa das duas mãos. Usando a esquerda, estica quatro dedos magricelos, um para cada aborto que sofreu, e levanta o polegar para incluir uma menininha, que, prematura, morreu logo após o parto. Com o indicador da mão direita, mostra o único feto que venceu o deslocamento de placenta da mãe, Fernando.

“Que futuro eu tenho? Que futuro? Não tenho neto, não tenho segunda geração. Meu único sangue era o meu filho, e eu não sei nem da minha origem”, diz. “Se sair a indenização, vou comprar um lugarzinho no interior e me mandar.” Na bagagem, já decidiu, vai levar uma bola de basquete, nove medalhas desportivas, duas camisas do São Paulo e uma pasta de dente.

Zilda Maria guarda camisas, medalhas e bola do filho, Fernando Luiz de Paula, morto aos 34 anos na chacina do dia 13 de agosto de 2015 Foto: GABRIELA BILO / ESTADÃO

OSASCO - Quando a empregada doméstica Zilda Maria de Paula, de 64 anos, for testemunhar no julgamento da maior chacina da história de São Paulo, o plenário estará diante de uma colecionadora de ausências. A mais recente: a do filho Fernando Luiz de Paula, que aos 34 anos foi morto a tiros no Bar do Juvenal, em Osasco, no maior ataque da noite de 13 de agosto de 2015, deixando para trás uma bola de basquete, nove medalhas desportivas, duas camisas do São Paulo e uma pasta de dente, guardadas com cuidado por dona Zilda. “Não consegui me desfazer de nada disso”, conta.

As lembranças do filho estão espalhadas pela casa. Aparecem em uma marca de dedo e num risco a lápis no teto. Na parede que ele pintou de amarelo. Em quadros, em porta-retratos e até no aparelho de som que nunca mais tocou desde a chacina. Nas prateleiras lotadas de CDs, só falta o disco do Racionais MC, o preferido de Fernando. “Não ia conseguir ouvir mesmo, dei de presente para um amigo.”

Na semana anterior ao julgamento, dona Zilda estava apreensiva e preferiu passar a maior parte do tempo em casa, em uma viela do Jardim Munhoz, periferia de Osasco, onde vive com sete vira-latas. “Vou falar em nome de todas as famílias que perderam alguém naquele dia”, diz, com a voz firme, para depois amolecer. “E eu não estou preparada para isso, não sei como vai ser, não sei o que vou dizer.”

Antes de continuar, dona Zilda expõe uma dúvida: “Eu vou precisar falar com os advogados deles?”. Eles, no caso, são os réus: dois policiais militares e um guarda municipal de Barueri, acusados dos assassinatos. Dona Zilda faz uma careta ao ouvir que, se a defesa fizer pergunta, ela terá de responder. “Eu não quero ver a cara deles. Sei quem era meu filho, e eles vão dizer que ele era outra coisa. Eu já não pude defender meu filho no dia do crime, agora não vou poder defender de novo.”

É por isso que dona Zilda não quer assistir ao júri. “Assim que terminar meu depoimento, eu vou ficar lá fora, segurando a faixa de protesto: ninguém vai calar a morte do meu filho.”

Foi ela quem, uma semana após a chacina, organizou uma cerimônia em memória das vítimas, na frente do Bar do Juvenal, com um padre, um pastor e um pai de santo (um dos oito assassinados no local era adepto do candomblé).

Era o embrião do Treze de Agosto, movimento liderado por dona Zilda para articular familiares das vítimas, pedir indenização pelas mortes na Justiça e também ajudar outras pessoas envolvidas em casos de letalidade policial. Um mês após o crime, o grupo também organizou o primeiro ato na Avenida Paulista, com faixas e flores, que se repetiu nos aniversários de um e dois anos da chacina.

Boataria

Na favela onde mora há 20 anos, é comum surgirem burburinhos sobre toque de recolher ou retaliações da polícia. Na denúncia do Ministério Público, o promotor afirma que o Bar do Juvenal era frequentado por um GCM que morreu dias antes da chacina – este é um dos motivos apontados pela acusação para o crime. E dona Zilda não tem medo de denunciar os agentes de segurança? “Se eu disser que já fui ameaçada, vou estar mentindo. Mas medo não tenho, não. Ninguém morre duas vezes, né? E eu já morri. Morri na hora que meu filho foi baleado.”

Se alguém perguntar se ela espera ficar em paz caso os réus sejam condenados, dona Zilda vai responder que não. “Independentemente de eles pegarem 10, 20, 30 anos de prisão, isso não vai trazer meu filho de volta”, afirma. “O que tem de mudar é a cultura da violência, porque, se continuar nessa de ‘vamos matar bandido’, só vai morrer inocente, civil ou policial.”

Vida

Dona Zilda passou a infância na Vila Brasilândia, zona norte de São Paulo, e é filha de pais que nunca conheceu. “Eu não nasci, eu surgi”, diz. Criada por uma empregada doméstica que morava com os patrões, foi viver na rua aos 12 anos, quando o entendimento de todos era que ela já tinha idade para trabalhar. Por várias noites, dormiu na calçada do Cemitério da Consolação ou da igreja mais próxima.

Na adolescência, ganhou dinheiro como cambista, comprando ingressos a 2 cruzeiros e revendendo a 3 nos festivais de música da Record. “Quando sobrava um dinheirinho, a gente comprava minipizza, era um barato. Tenho muita saudade desse tempo.” Na escola, foi até o segundo ano do primário, atual ensino fundamental.

Para contar as vezes que ficou grávida, dona Zilda precisa das duas mãos. Usando a esquerda, estica quatro dedos magricelos, um para cada aborto que sofreu, e levanta o polegar para incluir uma menininha, que, prematura, morreu logo após o parto. Com o indicador da mão direita, mostra o único feto que venceu o deslocamento de placenta da mãe, Fernando.

“Que futuro eu tenho? Que futuro? Não tenho neto, não tenho segunda geração. Meu único sangue era o meu filho, e eu não sei nem da minha origem”, diz. “Se sair a indenização, vou comprar um lugarzinho no interior e me mandar.” Na bagagem, já decidiu, vai levar uma bola de basquete, nove medalhas desportivas, duas camisas do São Paulo e uma pasta de dente.

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