Uma das mudanças propostas pela Prefeitura de São Paulo para tentar frear o boom de 250 mil microapartamentos na cidade foi retirada da nova versão do projeto de lei de revisão do Plano Diretor. O texto substitutivo removeu o trecho que permitia a construção “gratuita” de vagas de garagem perto de metrô, trem e corredor de ônibus apenas para apartamentos de ao menos 30 m² em prédios de uso misto. Com a proposta de alteração, essa regra vai abranger apenas os condomínios totalmente residenciais, que são menos da metade do que é construído nessas áreas, em decorrência de benefícios municipais para comércio, serviços, escritórios e studios de locação temporária em edifícios com apartamentos.
O texto que substitui o proposto pela gestão Ricardo Nunes (MDB) foi apresentado pelo relator do projeto de lei, o vereador Rodrigo Goulart (PSD), em uma audiência pública na terça-feira, 23. A previsão é de que todas as alterações sejam feitas na versão final antes da primeira votação, na quarta-feira, 31, com a segunda e definitiva apreciação na semana seguinte. Uma ação ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo busca, contudo, suspender a tramitação até que a Câmara Municipal apresente um estudo que explique os impactos e motivos das mudanças no projeto original.
A nova versão também chamou a atenção por trazer regras que incentivam a criação de prédios mais altos na cidade, dentre outras mudanças. Também há um trecho que prevê a expansão do Parque Burle Marx, com a anexação de áreas de Mata Atlântica do entorno. Se aprovada, a nova versão estará em vigor ao menos até 2029, a depender da aprovação de um novo Plano Diretor, o que pode demorar mais tempo.
No caso das vagas de garagem, a retirada do trecho proposto pela Prefeitura para os prédios de uso misto resultará na manutenção das regras atuais. Ou seja, esses empreendimentos que têm comércio no térreo ou studios classificados oficialmente como não residenciais (mesmo que usados como moradia fixa na prática) poderão construir “de graça” um espaço de estacionamento para cada unidade, independentemente da metragem, mesmo que sejam de 10m², por exemplo.
A norma atual é aplicada em um contexto em que os apartamentos estão cada vez menores (cerca de ⅔ dos lançados recentemente tem menos de 45 m², por exemplo) e as incorporadoras têm apostado nas microunidades para otimizar o total de vagas nos edifícios, por exemplo. Ou seja, a garagem do studio não é dele de fato, mas direcionada para um apartamento maior, vendido com duas vagas. Como o Estadão explicou, o boom de unidades compactas está ligado a outros fatores também, como a queda de juros recorde de 2018 a 2020 e um decreto de 2016, por exemplo.
Esta é a terceira vez que o trecho sobre incentivos para a criação de vagas de garagem perto dos “eixos de transporte” é modificado desde a apresentação da minuta do Plano Diretor pela Prefeitura, em janeiro. À época, a gestão Nunes justificou que objetivo era justamente “desestimular a produção de microunidades habitacionais nessas regiões bem servidas de transporte público, que não tem atendido às necessidades habitacionais de núcleos familiares”.
A mudança ocorre em conjunto com outra que amplia a área de influência dos eixos de transporte de 600 m para até 1 km, no caso de estações de trem e metrô, e de 300 m para até 450 m, em corredores de ônibus. Ou seja, se o PL for aprovado nos moldes atuais, um volume ainda maior de novos empreendimentos poderá ter uma vaga por apartamento se tiver o uso misto, o que é incentivado pelo Município por meio de vários benefícios construídos.
Além disso, estudos têm demonstrado que essa mudança é maior especialmente em bairros de classes média e alta, como Butantã, Brooklin e Pinheiros. O objetivo do Plano Diretor originalmente é que esses empreendimentos atraiam uma população que vá utilizar o transporte coletivo, a fim de reduzir os deslocamentos de carro pela cidade.
No parecer em que justifica as mudanças do texto substitutivo, o relator da revisão apenas sinaliza que foram realizadas para “corrigir a distorção gerada pelo atual regramento”, sem explicar o porquê de ter optado por não resolver a distorção da regra atual no caso de uso misto, como ocorria no PL enviado à Câmara. No caso da expansão do raio de influência dos eixos, a resposta é que foi feita para corrigir “algumas distorções pontuais existentes nos atuais mapas”. Procurados pela reportagem, o vereador Rodrigo Goulart e a Prefeitura não comentaram sobre as decisões.
A concentração de prédios de uso misto perto de metrô, trem e corredor de ônibus é de conhecimento público. O Diagnóstico de Aplicação do Plano Diretor Estratégico 2014 - 2021, feito pela Prefeitura, aponta que cerca da metade dos apartamentos licenciados em eixo na cidade está em empreendimentos de uso misto, por exemplo. O documento até aponta que “a proporção de área transformada (terreno), área construída e quantidade de unidades habitacionais em empreendimentos de uso misto triplicou de uma legislação para a outra, ganhando especial destaque nos EETUs (eixos)”.
‘Em vez de corrigir a distorção que se verificou, ele potencializa’, diz pesquisador
Professora de Direito e coordenadora do Núcleo de Questões Urbanas do Insper, Bianca Tavolari avalia que tantas mudanças na mesma regra trazem insegurança jurídica para o mercado imobiliário, com o que chama de uma “descoordenação imensa”. “Nos eixos, cada vez mais, são predominantes os empreendimentos mistos, não os residenciais.”
Também avalia que a regra que dificultava microunidades com garagem proposta pela gestão Nunes era insuficiente para conter o boom de studios, que têm acesso a outros incentivos atrativos. Além disso, para ela, as regras de garagem para o uso residencial não são positivas, por permitirem brechas para a construção de apartamentos com mais de uma vaga.
Um estudo de um grupo de trabalho do Insper liderado pelo pesquisador Adriano Borges Costa identificou, por exemplo, que a versão proposta pela Prefeitura permitiria que empreendimentos com unidades medianas (de 60 a 80 m²) tivessem até 33% mais vagas do que a regra atual. Na prática, o estudo estima que o número máximo de vagas poderia crescer em 12%. Porém, por ser de março, ainda não considerou as regras do novo texto.
Coordenador do Laboratório de Projetos e Políticas Públicas (LPP) e professor na Mackenzie, o urbanista Valter Caldana avalia que a retirada do trecho mantém e até potencializa uma “distorção” da lei atual. Além disso, critica o grande volume de alterações propostas na nova versão do PL.
“Esse substituto fragiliza o plano. Faz com que se perca conquistas. Em vez de corrigir a distorção que se verificou, ele potencializa”, destaca. “Está mexendo em elementos estruturais que afastam o plano dos seus objetivos e vai criando uma situação de insustentabilidade em todos os sentidos, econômico, sustentável, social, cultural.”
Nova versão do PL do Plano Diretor tem mais mudanças que impactam nas garagens
Há, ainda, outras mudanças propostas para a regra de garagens perto de metrô, trem e corredor de ônibus. Uma delas é que a norma de vagas passará a valer também nos eixos que não foram “ativados”, isto é, sem previsão de início de obra ou assemelhado. No caso da futura Linha 6-Laranja, por exemplo, a área de influência das estações foi ativada em 2016, impactando na crescente verticalização de bairros como a Pompeia.
A regra para vagas “grátis” em apartamentos de prédios residenciais tem uma segunda opção. Além de uma vaga para cada unidade com ao menos 30 m², também há opção de uma vaga a cada 70 m² de área privativa construída. Para especialistas, isso facilitaria que apartamentos grandes tenham mais de uma vaga. Originalmente, a Prefeitura sugeriu que essa alternativa envolvesse “área construída computável”, o que inclui parte das áreas comuns, por exemplo, mas foi alterada pelos vereadores.
Também é possível dispor de vagas adicionais mediante o pagamento de outorga onerosa. Essa alternativa tem, porém, um impacto maior no projeto e custo, que precisam obedecer a limites de área construída e tamanho médio de unidade (hoje, é de cerca de 80 m² no caso dos eixos).
O novo texto do PL manteve também uma proposta da Prefeitura de dar 10% de área construída “grátis” para os empreendimentos sem nenhuma vaga de garagem. Para especialistas ouvidos pelo Estadão, diante de outros incentivos previstos pelo Plano Diretor, é difícil precisar se essa norma poderá desestimular o número de garagens perto de transporte de massa.
Outra medida voltada a desestimular esse boom foi mantida na nova versão do PL: a que aumenta o fator de interesse social (utilizado no cálculo do que é cobrado das construtoras quando constroem acima de um limite básico) para as unidades abaixo de 30 m², igualando-as às de 70 m², enquanto os de metragem mediada ficarão mais atrativos. Hoje, esse fator é mais vantajoso para imóveis até 50 m². A diferença será de fator 0,8 para 1 na base do cálculo.
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