Nunes ameaça romper contrato com a Enel em SP: rescisão é possível?


Medida é prevista pela lei que regula as concessões de serviços públicos; especialistas explicam que esse tipo de acordo pode ser extinto por diferentes razões

Por Emilio Sant'Anna e Marcio Dolzan
Atualização:

A decisão do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), de pedir ao Tribunal de Contas da União (TCU) que fiscalize o contrato com a Enel, concessionária de energia elétrica, e avalie a rescisão do contrato com a empresa pode ter desdobramentos complexos e com efeitos a longo prazo.

A decisão que parece incerta, no entanto, é prevista pela lei que regula as concessões de serviços públicos. ”Os contratos de concessão de serviços públicos podem ser rompidos de forma unilateral pela administração pública. Esta prerrogativa é prevista pelo Direito”, diz Augusto Dal Pozzo, professor de Direito Administrativo da PUC-SP.

Esquina das ruas Gaivota e Rouxinol, no bairro de Moema, zona sul da cidade, onde moradores passaram dias sem luz Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO
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Mas, no caso de energia elétrica, a questão é um pouco mais complexa. “As concessões de geração, distribuição e transmissão de energia elétrica são todas de natureza federal, por força do artigo 21 da Constituição. A União é o poder concedente por meio do Ministério (de Minas e Energia), e ela é também o poder regulador por meio da agência reguladora, a Aneel”, explica Felipe Fonte, professor de Direito da FGV-Rio.

“Os Estados têm competência concorrente para legislar sobre meio ambiente, sobre consumidor, e muitas vezes têm tentado impor certos padrões de qualidade às concessionárias por intermédio de legislação, com a alegação de que caberia nesse guarda-chuva, proteção do consumidor. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido muito refratário a essas ideias, porque tem entendido que elas muitas vezes são contra a regulação federal proveniente da Aneel e, em alguns casos, também impactam no equilíbrio econômico-financeiro da concessão”, pondera Fonte. Assim, caberia ao governo federal decidir pela possível quebra da concessão.

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Embora não seja frequente, o rompimento pode ocorrer em diferentes setores da economia com serviços concedidos. Dal Pozzo reforça, no entanto, que é uma decisão que precisa ser cercada de cuidados para que a população e a administração pública não sejam ainda mais onerados. “Trata-se de um juízo que requer amparo em estudos técnicos preliminares para que possa ser bem conduzido, do contrário, ele pode ensejar prejuízos não calculados inicialmente”, afirma.

Em suas reclamações públicas do serviço prestado pela Enel e ameaças de rompimento do contrato, Nunes e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) constantemente se referem à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), responsável pela regulação do setor no País. Mas essa ação tem poder limitado, esclarece Felipe Fonte.

“Governadores e prefeitos nada podem fazer. Não podem romper o contrato e não podem fazer nada do ponto de vista regulatório, salvo reclamar politicamente e eventualmente apresentar algum tipo de reclamação na Aneel. Eles não têm poderes de aplicação de sanção ou para romper o contrato.”

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Em nota, a Aneel afirma que tem atuado para aprimorar a resposta do segmento de distribuição a eventos climáticos de elevada severidade. “No curto prazo, a agência realizou uma série de reuniões com prefeitos, governo estadual e distribuidoras para articular ações a serem tomadas por cada parte dentro de suas atribuições e instaurou processos de fiscalização a respeito. No caso específico de São Paulo, cabe ressaltar que a agência já encaminhou à Enel São Paulo o Relatório de Fiscalização e atualmente analisa a manifestação da distribuidora para a aplicação das sanções cabíveis”, diz.

Agência também afirma que convocou as distribuidoras para cobrar ações imediatas e estruturar uma agenda de médio prazo. “A fiscalização da Aneel tem discutido e cobrado aprimoramentos nos planos de contingência das distribuidoras; e a agência incluiu em sua agenda regulatória a rediscussão da resiliência de redes frente a eventos climáticos de elevada severidade.”

Na quarta-feira, 31 de janeiro, Nunes enviou ao Tribunal de Contas da União (TCU) um pedido para que a corte fiscalize o contrato e a execução dos serviços praticados pela Enel. No requerimento, o Município cita até mesmo a possibilidade de rompimento do contrato. Ao Estadão, a Enel informou que não irá se manifestar sobre o tema.

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Como são extintos os contratos de concessão?

Segundo o professor Felipe Fonte, da FGV-Rio, os contratos de concessão podem ser extintos por diferentes razões. “A maneira natural é pelo advento do tempo; acabou o prazo, a concessionária devolve o serviço ao titular e acabou”, diz .

“Entre outras hipóteses de rompimento está a chamada encampação, que é a retomada do serviço por razão de interesse público. O requisito para que se possa fazer encampação é pagar pelos bens que não estão revertidos (ao poder público) e indenizar a concessionária pela extinção antecipada do contrato. De modo geral, seria uma espécie de desapropriação do direito à exploração do serviço, e desapropriação pressupõe a indenização prévia.”

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Logo após as fortes chuvas do mês passado, Ricardo Nunes chamou o presidente da Enel paulista, Max Xavier Lins, de “mentiroso”, e a empresa de “irresponsável”. Na ocasião, também disse que iria solicitar à Aneel que retire a empresa da cidade.

De acordo com o prefeito, a Enel vem descumprindo determinação judicial no que diz respeito ao plano de contingência para o caso de falta de luz na cidade — o plano havia sido demandado pela Prefeitura em uma ação na Justiça contra a concessionária em novembro. Nunes também demonstrou não estar mais disposto a manter diálogo com a companhia.

É nesse contexto que aparece uma terceira hipótese para rompimento de contrato: pela caducidade. “A caducidade é aplicada quando a prestação do serviço é ruim, quando não está em boa qualidade. Nesse caso, tem-se um acumulado de faltas da concessionária relativas à qualidade do serviço e o poder público vai lá e declara a caducidade dele. Nesse particular, a Aneel tem particular importância, porque é ela que vai aferir a qualidade”, destaca Fonte.

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“A agência reguladora desempenha um papel decisivo no sentido de fornecer informações sobre o modo com que a concessionária vem atuando, ou, ainda, deixando de atuar”, ressalta Augusto Dal Pozzo, da PUC-SP. “Pode impor sanções às concessionárias de serviço público, entre elas, a Enel, como multas administrativas, por exemplo”. O professor da PUC considera que, “em situações extremas”, a agência também poderia agir pelo rompimento do contrato.

“Cabe uma ressalva. O rompimento, por parte da Administração Pública, é uma decisão soberana do ente público que não pode ser impedida pelas agências reguladoras, ainda que elas, cabe reafirmar, tenham total legitimidade para impor sanções.”

Ou seja, a administração pública pode proceder assim quando o interesse público – o bem-estar da coletividade – justificar. Para isso é fundamental que a decisão pelo rompimento do contrato seja acompanhada de fundamentação jurídica.

“Evidentemente, o distrato pode abrir margem para disputas judiciais, com a discussão de eventuais prejuízos sofridos por parte da concessionária. No contexto do Município de São Paulo, um dos mais populosos do mundo, com milhares de consumidores e, portanto, de investimentos atrelados, é altamente provável a judicialização do assunto com a adoção de uma medida nesse sentido”, diz o professor da PUC-SP.

Governador do Rio Grande do Sul também cogitou romper contrato com a concessionária local

Além de São Paulo, a Grande Porto Alegre enfrentou caos no sistema de energia por causa das fortes chuvas que caíram no dia 16 do mês passado. Boa parte da capital gaúcha ficou sem luz por vários dias. Alguns pontos permaneciam com problemas no abastecimento até o início desta semana.

Por causa disso, o governador Eduardo Leite (PSDB) também chegou a ameaçar pelo fim do contrato de concessão. “O Grupo CEEE Equatorial precisa melhorar sua relação com as autoridades e com a sociedade, então estamos demandando uma uma série de ações deles nessa direção”, disse Leite no mês passado, ao Correio do Povo. “Nós temos a expectativa de que a empresa mude a sua postura, e se não fizer isso ao longo do tempo, ela pode enfrentar um processo de retirada da sua concessão.”

A CEEE Equatorial alegou, em nota enviada ao Estadão, que vem realizando um conjunto de obras e investimentos estruturantes no sistema elétrico do Rio Grande do Sul, desde que assumiu o controle da concessionária, há pouco mais de dois anos. A concessionária alegou que, na ocasião, se deparou com mais de 70% das subestações em situação de sobrecarga e mais de 570 mil postes de madeira em final de vida útil.

“A despeito disso, é importante destacar que a concessão sofreu forte impacto de eventos climáticos extremos e sucessivos, com registros de fortes chuvas e ventos de mais de 120 km/h por quatro ocasiões em um curto intervalo de tempo. Tal situação coloca intensa pressão sobre a rede de distribuição, apesar de todo o empenho em alocação de recursos, aplicação de planos de contingência e reforço de equipes - inclusive de outras localidades do País”, diz a CEEE Equatorial.

A empresa também alega que “os investimentos realizados pela distribuidora, desde a sua chegada, possibilitaram a mitigação de riscos ao sistema elétrico local e o avanço em diversos indicadores regulatórios de qualidade definidos e fiscalizados pelo ente regulador”.

Uma semana no escuro

Em São Paulo, enquanto o poder público não se decide se irá ou não romper o contrato com a Enel, os problemas se acumulam. Síndica de um edifício residencial na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, Gisele Frey passou uma semana sem luz enquanto se desesperava com as sucessivas visitas de equipes da Enel que não conseguiam reestabelecer o fornecimento de energia elétrica.

A via-crúcis das 18 famílias que moram no prédio de dez andares começou durante a chuva do dia 8 deste mês quando a queda de um galho rompeu a ligação entre o poste e o edifício. “Chamamos a Enel que disse que não podia fazer nada enquanto a prefeitura não removesse os galhos. Quando o último galho foi removido pegou fogo na fiação”, afirma a síndica.

Alagamento na Freguesia do Ó, zona norte de São Paulo, após fortes chuvas no dia 10 de janeiro Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

No dia seguinte, uma nova equipe da Enel foi ao local e constatou que seria necessária a troca da fiação na parte interna do prédio. A síndica, então, correu para contratar um eletricista para fazer o serviço. “A cada equipe que vinha aqui, começava tudo de novo. Eles chegavam sem saber de nada e nós explicávamos tudo de novo”, afirma Gisele.

De segunda-feira, dia 8, até sexta-feira, dia 12, diferentes equipes foram ao local e o problema não era resolvido. A situação piorou na quinta-feira quando a bomba de água do prédio parou de funcionar e os moradores ficaram sem água. “Imagine o que é ficar sem luz durante uma semana e aí acabar a água?”, diz a síndica. “Temos moradores idosos que não conseguem se locomover.”

A saída foi alugar um gerador de energia elétrica para reestabelecer pelo menos o serviço da bomba de água. “Uma coisa que não entendo é que cada vez que uma equipe vai embora sem resolver o problema, eles encerram a chamada. E a cada nova equipe que vem não sabe nada do que está acontecendo”, diz Gisele.

A situação só foi resolvida na segunda-feira, dia 15, uma semana após o fornecimento de energia ser interrompido. “Não desejo isso a ninguém”, reclama a síndica.

Enel diz que colocou 800 equipes em campo

No mês passado, a Enel não comentou as afirmações do prefeito de São Paulo e as ameaças de rompimento de contrato. Sobre os problemas enfrentados durante uma semana pelos moradores do edifício na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, a empresa afirmou que “a equipe em campo precisou fazer reparos no poste danificado e a substituição do transformador queimado. No momento do restabelecimento do serviço, foi identificado um defeito na fiação interna do imóvel, o que impossibilitou a energização e o cliente foi informado que esse reparo era de sua responsabilidade.”

A Enel afirmou também que “as fortes chuvas que atingiram a área de concessão da companhia em São Paulo, foram acompanhadas por rajadas de ventos de mais de 90km/h associados a quedas de árvores e galhos destruindo diversos trechos da rede elétrica”.

A empresa ressaltou que os bairros mais atingidos pelo temporal foram Jardim Paulista, Vila Nova Conceição, Moema, Planalto Paulista, Jabaquara, Vila Mariana, Pedreira, Pirituba, Centro e Itaquera.

“Na ocasião, o pico de clientes interrompidos foi cerca de 300 mil, o que representa 4% do total de clientes da distribuidora em São Paulo. De imediato, a companhia reforçou seu plano de ação com mais de 800 equipes em campo e manobras remotas via sistema de telecomando para minimizar o impacto aos clientes. Durante cinco dias consecutivos, toda área de concessão da distribuidora foi impactada e técnicos da companhia atuaram, inclusive durante a madrugada, para reconstruir os trechos da rede de energia que foram danificados. O trabalho de restabelecimento de energia e reparos na rede, muitas vezes, é complexo, pois envolve a substituição de cabos e postes, entre outros equipamentos”.

Nesta quinta-feira, 1 de fevereiro, a empresa declarou que desde as fortes chuvas de novembro do ano passado implantou um plano de contingência especial. “Em casos mais severos, o aumento do contingente operacional pode ser até três vezes superior aos da operação em período normal”, o que se aplica também aos canais de atendimento, segundo a Enel.

“A companhia também tem intensificado as ações de manutenção preventiva e vai seguir investindo na automação e fortalecimento da rede elétrica (novas subestações, reforma de subestações existentes, novos circuitos elétricos, substituição de cabos elétricos convencionais por cabos compactos, dentre outras importantes ações). Os equipamentos de automação permitem reduzir o número de clientes afetados em caso de interrupção de energia e restabelecer a energia mais rapidamente por meio de manobras remotas na rede.”

A decisão do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), de pedir ao Tribunal de Contas da União (TCU) que fiscalize o contrato com a Enel, concessionária de energia elétrica, e avalie a rescisão do contrato com a empresa pode ter desdobramentos complexos e com efeitos a longo prazo.

A decisão que parece incerta, no entanto, é prevista pela lei que regula as concessões de serviços públicos. ”Os contratos de concessão de serviços públicos podem ser rompidos de forma unilateral pela administração pública. Esta prerrogativa é prevista pelo Direito”, diz Augusto Dal Pozzo, professor de Direito Administrativo da PUC-SP.

Esquina das ruas Gaivota e Rouxinol, no bairro de Moema, zona sul da cidade, onde moradores passaram dias sem luz Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Mas, no caso de energia elétrica, a questão é um pouco mais complexa. “As concessões de geração, distribuição e transmissão de energia elétrica são todas de natureza federal, por força do artigo 21 da Constituição. A União é o poder concedente por meio do Ministério (de Minas e Energia), e ela é também o poder regulador por meio da agência reguladora, a Aneel”, explica Felipe Fonte, professor de Direito da FGV-Rio.

“Os Estados têm competência concorrente para legislar sobre meio ambiente, sobre consumidor, e muitas vezes têm tentado impor certos padrões de qualidade às concessionárias por intermédio de legislação, com a alegação de que caberia nesse guarda-chuva, proteção do consumidor. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido muito refratário a essas ideias, porque tem entendido que elas muitas vezes são contra a regulação federal proveniente da Aneel e, em alguns casos, também impactam no equilíbrio econômico-financeiro da concessão”, pondera Fonte. Assim, caberia ao governo federal decidir pela possível quebra da concessão.

Embora não seja frequente, o rompimento pode ocorrer em diferentes setores da economia com serviços concedidos. Dal Pozzo reforça, no entanto, que é uma decisão que precisa ser cercada de cuidados para que a população e a administração pública não sejam ainda mais onerados. “Trata-se de um juízo que requer amparo em estudos técnicos preliminares para que possa ser bem conduzido, do contrário, ele pode ensejar prejuízos não calculados inicialmente”, afirma.

Em suas reclamações públicas do serviço prestado pela Enel e ameaças de rompimento do contrato, Nunes e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) constantemente se referem à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), responsável pela regulação do setor no País. Mas essa ação tem poder limitado, esclarece Felipe Fonte.

“Governadores e prefeitos nada podem fazer. Não podem romper o contrato e não podem fazer nada do ponto de vista regulatório, salvo reclamar politicamente e eventualmente apresentar algum tipo de reclamação na Aneel. Eles não têm poderes de aplicação de sanção ou para romper o contrato.”

Em nota, a Aneel afirma que tem atuado para aprimorar a resposta do segmento de distribuição a eventos climáticos de elevada severidade. “No curto prazo, a agência realizou uma série de reuniões com prefeitos, governo estadual e distribuidoras para articular ações a serem tomadas por cada parte dentro de suas atribuições e instaurou processos de fiscalização a respeito. No caso específico de São Paulo, cabe ressaltar que a agência já encaminhou à Enel São Paulo o Relatório de Fiscalização e atualmente analisa a manifestação da distribuidora para a aplicação das sanções cabíveis”, diz.

Agência também afirma que convocou as distribuidoras para cobrar ações imediatas e estruturar uma agenda de médio prazo. “A fiscalização da Aneel tem discutido e cobrado aprimoramentos nos planos de contingência das distribuidoras; e a agência incluiu em sua agenda regulatória a rediscussão da resiliência de redes frente a eventos climáticos de elevada severidade.”

Na quarta-feira, 31 de janeiro, Nunes enviou ao Tribunal de Contas da União (TCU) um pedido para que a corte fiscalize o contrato e a execução dos serviços praticados pela Enel. No requerimento, o Município cita até mesmo a possibilidade de rompimento do contrato. Ao Estadão, a Enel informou que não irá se manifestar sobre o tema.

Como são extintos os contratos de concessão?

Segundo o professor Felipe Fonte, da FGV-Rio, os contratos de concessão podem ser extintos por diferentes razões. “A maneira natural é pelo advento do tempo; acabou o prazo, a concessionária devolve o serviço ao titular e acabou”, diz .

“Entre outras hipóteses de rompimento está a chamada encampação, que é a retomada do serviço por razão de interesse público. O requisito para que se possa fazer encampação é pagar pelos bens que não estão revertidos (ao poder público) e indenizar a concessionária pela extinção antecipada do contrato. De modo geral, seria uma espécie de desapropriação do direito à exploração do serviço, e desapropriação pressupõe a indenização prévia.”

Logo após as fortes chuvas do mês passado, Ricardo Nunes chamou o presidente da Enel paulista, Max Xavier Lins, de “mentiroso”, e a empresa de “irresponsável”. Na ocasião, também disse que iria solicitar à Aneel que retire a empresa da cidade.

De acordo com o prefeito, a Enel vem descumprindo determinação judicial no que diz respeito ao plano de contingência para o caso de falta de luz na cidade — o plano havia sido demandado pela Prefeitura em uma ação na Justiça contra a concessionária em novembro. Nunes também demonstrou não estar mais disposto a manter diálogo com a companhia.

É nesse contexto que aparece uma terceira hipótese para rompimento de contrato: pela caducidade. “A caducidade é aplicada quando a prestação do serviço é ruim, quando não está em boa qualidade. Nesse caso, tem-se um acumulado de faltas da concessionária relativas à qualidade do serviço e o poder público vai lá e declara a caducidade dele. Nesse particular, a Aneel tem particular importância, porque é ela que vai aferir a qualidade”, destaca Fonte.

“A agência reguladora desempenha um papel decisivo no sentido de fornecer informações sobre o modo com que a concessionária vem atuando, ou, ainda, deixando de atuar”, ressalta Augusto Dal Pozzo, da PUC-SP. “Pode impor sanções às concessionárias de serviço público, entre elas, a Enel, como multas administrativas, por exemplo”. O professor da PUC considera que, “em situações extremas”, a agência também poderia agir pelo rompimento do contrato.

“Cabe uma ressalva. O rompimento, por parte da Administração Pública, é uma decisão soberana do ente público que não pode ser impedida pelas agências reguladoras, ainda que elas, cabe reafirmar, tenham total legitimidade para impor sanções.”

Ou seja, a administração pública pode proceder assim quando o interesse público – o bem-estar da coletividade – justificar. Para isso é fundamental que a decisão pelo rompimento do contrato seja acompanhada de fundamentação jurídica.

“Evidentemente, o distrato pode abrir margem para disputas judiciais, com a discussão de eventuais prejuízos sofridos por parte da concessionária. No contexto do Município de São Paulo, um dos mais populosos do mundo, com milhares de consumidores e, portanto, de investimentos atrelados, é altamente provável a judicialização do assunto com a adoção de uma medida nesse sentido”, diz o professor da PUC-SP.

Governador do Rio Grande do Sul também cogitou romper contrato com a concessionária local

Além de São Paulo, a Grande Porto Alegre enfrentou caos no sistema de energia por causa das fortes chuvas que caíram no dia 16 do mês passado. Boa parte da capital gaúcha ficou sem luz por vários dias. Alguns pontos permaneciam com problemas no abastecimento até o início desta semana.

Por causa disso, o governador Eduardo Leite (PSDB) também chegou a ameaçar pelo fim do contrato de concessão. “O Grupo CEEE Equatorial precisa melhorar sua relação com as autoridades e com a sociedade, então estamos demandando uma uma série de ações deles nessa direção”, disse Leite no mês passado, ao Correio do Povo. “Nós temos a expectativa de que a empresa mude a sua postura, e se não fizer isso ao longo do tempo, ela pode enfrentar um processo de retirada da sua concessão.”

A CEEE Equatorial alegou, em nota enviada ao Estadão, que vem realizando um conjunto de obras e investimentos estruturantes no sistema elétrico do Rio Grande do Sul, desde que assumiu o controle da concessionária, há pouco mais de dois anos. A concessionária alegou que, na ocasião, se deparou com mais de 70% das subestações em situação de sobrecarga e mais de 570 mil postes de madeira em final de vida útil.

“A despeito disso, é importante destacar que a concessão sofreu forte impacto de eventos climáticos extremos e sucessivos, com registros de fortes chuvas e ventos de mais de 120 km/h por quatro ocasiões em um curto intervalo de tempo. Tal situação coloca intensa pressão sobre a rede de distribuição, apesar de todo o empenho em alocação de recursos, aplicação de planos de contingência e reforço de equipes - inclusive de outras localidades do País”, diz a CEEE Equatorial.

A empresa também alega que “os investimentos realizados pela distribuidora, desde a sua chegada, possibilitaram a mitigação de riscos ao sistema elétrico local e o avanço em diversos indicadores regulatórios de qualidade definidos e fiscalizados pelo ente regulador”.

Uma semana no escuro

Em São Paulo, enquanto o poder público não se decide se irá ou não romper o contrato com a Enel, os problemas se acumulam. Síndica de um edifício residencial na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, Gisele Frey passou uma semana sem luz enquanto se desesperava com as sucessivas visitas de equipes da Enel que não conseguiam reestabelecer o fornecimento de energia elétrica.

A via-crúcis das 18 famílias que moram no prédio de dez andares começou durante a chuva do dia 8 deste mês quando a queda de um galho rompeu a ligação entre o poste e o edifício. “Chamamos a Enel que disse que não podia fazer nada enquanto a prefeitura não removesse os galhos. Quando o último galho foi removido pegou fogo na fiação”, afirma a síndica.

Alagamento na Freguesia do Ó, zona norte de São Paulo, após fortes chuvas no dia 10 de janeiro Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

No dia seguinte, uma nova equipe da Enel foi ao local e constatou que seria necessária a troca da fiação na parte interna do prédio. A síndica, então, correu para contratar um eletricista para fazer o serviço. “A cada equipe que vinha aqui, começava tudo de novo. Eles chegavam sem saber de nada e nós explicávamos tudo de novo”, afirma Gisele.

De segunda-feira, dia 8, até sexta-feira, dia 12, diferentes equipes foram ao local e o problema não era resolvido. A situação piorou na quinta-feira quando a bomba de água do prédio parou de funcionar e os moradores ficaram sem água. “Imagine o que é ficar sem luz durante uma semana e aí acabar a água?”, diz a síndica. “Temos moradores idosos que não conseguem se locomover.”

A saída foi alugar um gerador de energia elétrica para reestabelecer pelo menos o serviço da bomba de água. “Uma coisa que não entendo é que cada vez que uma equipe vai embora sem resolver o problema, eles encerram a chamada. E a cada nova equipe que vem não sabe nada do que está acontecendo”, diz Gisele.

A situação só foi resolvida na segunda-feira, dia 15, uma semana após o fornecimento de energia ser interrompido. “Não desejo isso a ninguém”, reclama a síndica.

Enel diz que colocou 800 equipes em campo

No mês passado, a Enel não comentou as afirmações do prefeito de São Paulo e as ameaças de rompimento de contrato. Sobre os problemas enfrentados durante uma semana pelos moradores do edifício na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, a empresa afirmou que “a equipe em campo precisou fazer reparos no poste danificado e a substituição do transformador queimado. No momento do restabelecimento do serviço, foi identificado um defeito na fiação interna do imóvel, o que impossibilitou a energização e o cliente foi informado que esse reparo era de sua responsabilidade.”

A Enel afirmou também que “as fortes chuvas que atingiram a área de concessão da companhia em São Paulo, foram acompanhadas por rajadas de ventos de mais de 90km/h associados a quedas de árvores e galhos destruindo diversos trechos da rede elétrica”.

A empresa ressaltou que os bairros mais atingidos pelo temporal foram Jardim Paulista, Vila Nova Conceição, Moema, Planalto Paulista, Jabaquara, Vila Mariana, Pedreira, Pirituba, Centro e Itaquera.

“Na ocasião, o pico de clientes interrompidos foi cerca de 300 mil, o que representa 4% do total de clientes da distribuidora em São Paulo. De imediato, a companhia reforçou seu plano de ação com mais de 800 equipes em campo e manobras remotas via sistema de telecomando para minimizar o impacto aos clientes. Durante cinco dias consecutivos, toda área de concessão da distribuidora foi impactada e técnicos da companhia atuaram, inclusive durante a madrugada, para reconstruir os trechos da rede de energia que foram danificados. O trabalho de restabelecimento de energia e reparos na rede, muitas vezes, é complexo, pois envolve a substituição de cabos e postes, entre outros equipamentos”.

Nesta quinta-feira, 1 de fevereiro, a empresa declarou que desde as fortes chuvas de novembro do ano passado implantou um plano de contingência especial. “Em casos mais severos, o aumento do contingente operacional pode ser até três vezes superior aos da operação em período normal”, o que se aplica também aos canais de atendimento, segundo a Enel.

“A companhia também tem intensificado as ações de manutenção preventiva e vai seguir investindo na automação e fortalecimento da rede elétrica (novas subestações, reforma de subestações existentes, novos circuitos elétricos, substituição de cabos elétricos convencionais por cabos compactos, dentre outras importantes ações). Os equipamentos de automação permitem reduzir o número de clientes afetados em caso de interrupção de energia e restabelecer a energia mais rapidamente por meio de manobras remotas na rede.”

A decisão do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), de pedir ao Tribunal de Contas da União (TCU) que fiscalize o contrato com a Enel, concessionária de energia elétrica, e avalie a rescisão do contrato com a empresa pode ter desdobramentos complexos e com efeitos a longo prazo.

A decisão que parece incerta, no entanto, é prevista pela lei que regula as concessões de serviços públicos. ”Os contratos de concessão de serviços públicos podem ser rompidos de forma unilateral pela administração pública. Esta prerrogativa é prevista pelo Direito”, diz Augusto Dal Pozzo, professor de Direito Administrativo da PUC-SP.

Esquina das ruas Gaivota e Rouxinol, no bairro de Moema, zona sul da cidade, onde moradores passaram dias sem luz Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Mas, no caso de energia elétrica, a questão é um pouco mais complexa. “As concessões de geração, distribuição e transmissão de energia elétrica são todas de natureza federal, por força do artigo 21 da Constituição. A União é o poder concedente por meio do Ministério (de Minas e Energia), e ela é também o poder regulador por meio da agência reguladora, a Aneel”, explica Felipe Fonte, professor de Direito da FGV-Rio.

“Os Estados têm competência concorrente para legislar sobre meio ambiente, sobre consumidor, e muitas vezes têm tentado impor certos padrões de qualidade às concessionárias por intermédio de legislação, com a alegação de que caberia nesse guarda-chuva, proteção do consumidor. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido muito refratário a essas ideias, porque tem entendido que elas muitas vezes são contra a regulação federal proveniente da Aneel e, em alguns casos, também impactam no equilíbrio econômico-financeiro da concessão”, pondera Fonte. Assim, caberia ao governo federal decidir pela possível quebra da concessão.

Embora não seja frequente, o rompimento pode ocorrer em diferentes setores da economia com serviços concedidos. Dal Pozzo reforça, no entanto, que é uma decisão que precisa ser cercada de cuidados para que a população e a administração pública não sejam ainda mais onerados. “Trata-se de um juízo que requer amparo em estudos técnicos preliminares para que possa ser bem conduzido, do contrário, ele pode ensejar prejuízos não calculados inicialmente”, afirma.

Em suas reclamações públicas do serviço prestado pela Enel e ameaças de rompimento do contrato, Nunes e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) constantemente se referem à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), responsável pela regulação do setor no País. Mas essa ação tem poder limitado, esclarece Felipe Fonte.

“Governadores e prefeitos nada podem fazer. Não podem romper o contrato e não podem fazer nada do ponto de vista regulatório, salvo reclamar politicamente e eventualmente apresentar algum tipo de reclamação na Aneel. Eles não têm poderes de aplicação de sanção ou para romper o contrato.”

Em nota, a Aneel afirma que tem atuado para aprimorar a resposta do segmento de distribuição a eventos climáticos de elevada severidade. “No curto prazo, a agência realizou uma série de reuniões com prefeitos, governo estadual e distribuidoras para articular ações a serem tomadas por cada parte dentro de suas atribuições e instaurou processos de fiscalização a respeito. No caso específico de São Paulo, cabe ressaltar que a agência já encaminhou à Enel São Paulo o Relatório de Fiscalização e atualmente analisa a manifestação da distribuidora para a aplicação das sanções cabíveis”, diz.

Agência também afirma que convocou as distribuidoras para cobrar ações imediatas e estruturar uma agenda de médio prazo. “A fiscalização da Aneel tem discutido e cobrado aprimoramentos nos planos de contingência das distribuidoras; e a agência incluiu em sua agenda regulatória a rediscussão da resiliência de redes frente a eventos climáticos de elevada severidade.”

Na quarta-feira, 31 de janeiro, Nunes enviou ao Tribunal de Contas da União (TCU) um pedido para que a corte fiscalize o contrato e a execução dos serviços praticados pela Enel. No requerimento, o Município cita até mesmo a possibilidade de rompimento do contrato. Ao Estadão, a Enel informou que não irá se manifestar sobre o tema.

Como são extintos os contratos de concessão?

Segundo o professor Felipe Fonte, da FGV-Rio, os contratos de concessão podem ser extintos por diferentes razões. “A maneira natural é pelo advento do tempo; acabou o prazo, a concessionária devolve o serviço ao titular e acabou”, diz .

“Entre outras hipóteses de rompimento está a chamada encampação, que é a retomada do serviço por razão de interesse público. O requisito para que se possa fazer encampação é pagar pelos bens que não estão revertidos (ao poder público) e indenizar a concessionária pela extinção antecipada do contrato. De modo geral, seria uma espécie de desapropriação do direito à exploração do serviço, e desapropriação pressupõe a indenização prévia.”

Logo após as fortes chuvas do mês passado, Ricardo Nunes chamou o presidente da Enel paulista, Max Xavier Lins, de “mentiroso”, e a empresa de “irresponsável”. Na ocasião, também disse que iria solicitar à Aneel que retire a empresa da cidade.

De acordo com o prefeito, a Enel vem descumprindo determinação judicial no que diz respeito ao plano de contingência para o caso de falta de luz na cidade — o plano havia sido demandado pela Prefeitura em uma ação na Justiça contra a concessionária em novembro. Nunes também demonstrou não estar mais disposto a manter diálogo com a companhia.

É nesse contexto que aparece uma terceira hipótese para rompimento de contrato: pela caducidade. “A caducidade é aplicada quando a prestação do serviço é ruim, quando não está em boa qualidade. Nesse caso, tem-se um acumulado de faltas da concessionária relativas à qualidade do serviço e o poder público vai lá e declara a caducidade dele. Nesse particular, a Aneel tem particular importância, porque é ela que vai aferir a qualidade”, destaca Fonte.

“A agência reguladora desempenha um papel decisivo no sentido de fornecer informações sobre o modo com que a concessionária vem atuando, ou, ainda, deixando de atuar”, ressalta Augusto Dal Pozzo, da PUC-SP. “Pode impor sanções às concessionárias de serviço público, entre elas, a Enel, como multas administrativas, por exemplo”. O professor da PUC considera que, “em situações extremas”, a agência também poderia agir pelo rompimento do contrato.

“Cabe uma ressalva. O rompimento, por parte da Administração Pública, é uma decisão soberana do ente público que não pode ser impedida pelas agências reguladoras, ainda que elas, cabe reafirmar, tenham total legitimidade para impor sanções.”

Ou seja, a administração pública pode proceder assim quando o interesse público – o bem-estar da coletividade – justificar. Para isso é fundamental que a decisão pelo rompimento do contrato seja acompanhada de fundamentação jurídica.

“Evidentemente, o distrato pode abrir margem para disputas judiciais, com a discussão de eventuais prejuízos sofridos por parte da concessionária. No contexto do Município de São Paulo, um dos mais populosos do mundo, com milhares de consumidores e, portanto, de investimentos atrelados, é altamente provável a judicialização do assunto com a adoção de uma medida nesse sentido”, diz o professor da PUC-SP.

Governador do Rio Grande do Sul também cogitou romper contrato com a concessionária local

Além de São Paulo, a Grande Porto Alegre enfrentou caos no sistema de energia por causa das fortes chuvas que caíram no dia 16 do mês passado. Boa parte da capital gaúcha ficou sem luz por vários dias. Alguns pontos permaneciam com problemas no abastecimento até o início desta semana.

Por causa disso, o governador Eduardo Leite (PSDB) também chegou a ameaçar pelo fim do contrato de concessão. “O Grupo CEEE Equatorial precisa melhorar sua relação com as autoridades e com a sociedade, então estamos demandando uma uma série de ações deles nessa direção”, disse Leite no mês passado, ao Correio do Povo. “Nós temos a expectativa de que a empresa mude a sua postura, e se não fizer isso ao longo do tempo, ela pode enfrentar um processo de retirada da sua concessão.”

A CEEE Equatorial alegou, em nota enviada ao Estadão, que vem realizando um conjunto de obras e investimentos estruturantes no sistema elétrico do Rio Grande do Sul, desde que assumiu o controle da concessionária, há pouco mais de dois anos. A concessionária alegou que, na ocasião, se deparou com mais de 70% das subestações em situação de sobrecarga e mais de 570 mil postes de madeira em final de vida útil.

“A despeito disso, é importante destacar que a concessão sofreu forte impacto de eventos climáticos extremos e sucessivos, com registros de fortes chuvas e ventos de mais de 120 km/h por quatro ocasiões em um curto intervalo de tempo. Tal situação coloca intensa pressão sobre a rede de distribuição, apesar de todo o empenho em alocação de recursos, aplicação de planos de contingência e reforço de equipes - inclusive de outras localidades do País”, diz a CEEE Equatorial.

A empresa também alega que “os investimentos realizados pela distribuidora, desde a sua chegada, possibilitaram a mitigação de riscos ao sistema elétrico local e o avanço em diversos indicadores regulatórios de qualidade definidos e fiscalizados pelo ente regulador”.

Uma semana no escuro

Em São Paulo, enquanto o poder público não se decide se irá ou não romper o contrato com a Enel, os problemas se acumulam. Síndica de um edifício residencial na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, Gisele Frey passou uma semana sem luz enquanto se desesperava com as sucessivas visitas de equipes da Enel que não conseguiam reestabelecer o fornecimento de energia elétrica.

A via-crúcis das 18 famílias que moram no prédio de dez andares começou durante a chuva do dia 8 deste mês quando a queda de um galho rompeu a ligação entre o poste e o edifício. “Chamamos a Enel que disse que não podia fazer nada enquanto a prefeitura não removesse os galhos. Quando o último galho foi removido pegou fogo na fiação”, afirma a síndica.

Alagamento na Freguesia do Ó, zona norte de São Paulo, após fortes chuvas no dia 10 de janeiro Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

No dia seguinte, uma nova equipe da Enel foi ao local e constatou que seria necessária a troca da fiação na parte interna do prédio. A síndica, então, correu para contratar um eletricista para fazer o serviço. “A cada equipe que vinha aqui, começava tudo de novo. Eles chegavam sem saber de nada e nós explicávamos tudo de novo”, afirma Gisele.

De segunda-feira, dia 8, até sexta-feira, dia 12, diferentes equipes foram ao local e o problema não era resolvido. A situação piorou na quinta-feira quando a bomba de água do prédio parou de funcionar e os moradores ficaram sem água. “Imagine o que é ficar sem luz durante uma semana e aí acabar a água?”, diz a síndica. “Temos moradores idosos que não conseguem se locomover.”

A saída foi alugar um gerador de energia elétrica para reestabelecer pelo menos o serviço da bomba de água. “Uma coisa que não entendo é que cada vez que uma equipe vai embora sem resolver o problema, eles encerram a chamada. E a cada nova equipe que vem não sabe nada do que está acontecendo”, diz Gisele.

A situação só foi resolvida na segunda-feira, dia 15, uma semana após o fornecimento de energia ser interrompido. “Não desejo isso a ninguém”, reclama a síndica.

Enel diz que colocou 800 equipes em campo

No mês passado, a Enel não comentou as afirmações do prefeito de São Paulo e as ameaças de rompimento de contrato. Sobre os problemas enfrentados durante uma semana pelos moradores do edifício na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, a empresa afirmou que “a equipe em campo precisou fazer reparos no poste danificado e a substituição do transformador queimado. No momento do restabelecimento do serviço, foi identificado um defeito na fiação interna do imóvel, o que impossibilitou a energização e o cliente foi informado que esse reparo era de sua responsabilidade.”

A Enel afirmou também que “as fortes chuvas que atingiram a área de concessão da companhia em São Paulo, foram acompanhadas por rajadas de ventos de mais de 90km/h associados a quedas de árvores e galhos destruindo diversos trechos da rede elétrica”.

A empresa ressaltou que os bairros mais atingidos pelo temporal foram Jardim Paulista, Vila Nova Conceição, Moema, Planalto Paulista, Jabaquara, Vila Mariana, Pedreira, Pirituba, Centro e Itaquera.

“Na ocasião, o pico de clientes interrompidos foi cerca de 300 mil, o que representa 4% do total de clientes da distribuidora em São Paulo. De imediato, a companhia reforçou seu plano de ação com mais de 800 equipes em campo e manobras remotas via sistema de telecomando para minimizar o impacto aos clientes. Durante cinco dias consecutivos, toda área de concessão da distribuidora foi impactada e técnicos da companhia atuaram, inclusive durante a madrugada, para reconstruir os trechos da rede de energia que foram danificados. O trabalho de restabelecimento de energia e reparos na rede, muitas vezes, é complexo, pois envolve a substituição de cabos e postes, entre outros equipamentos”.

Nesta quinta-feira, 1 de fevereiro, a empresa declarou que desde as fortes chuvas de novembro do ano passado implantou um plano de contingência especial. “Em casos mais severos, o aumento do contingente operacional pode ser até três vezes superior aos da operação em período normal”, o que se aplica também aos canais de atendimento, segundo a Enel.

“A companhia também tem intensificado as ações de manutenção preventiva e vai seguir investindo na automação e fortalecimento da rede elétrica (novas subestações, reforma de subestações existentes, novos circuitos elétricos, substituição de cabos elétricos convencionais por cabos compactos, dentre outras importantes ações). Os equipamentos de automação permitem reduzir o número de clientes afetados em caso de interrupção de energia e restabelecer a energia mais rapidamente por meio de manobras remotas na rede.”

A decisão do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), de pedir ao Tribunal de Contas da União (TCU) que fiscalize o contrato com a Enel, concessionária de energia elétrica, e avalie a rescisão do contrato com a empresa pode ter desdobramentos complexos e com efeitos a longo prazo.

A decisão que parece incerta, no entanto, é prevista pela lei que regula as concessões de serviços públicos. ”Os contratos de concessão de serviços públicos podem ser rompidos de forma unilateral pela administração pública. Esta prerrogativa é prevista pelo Direito”, diz Augusto Dal Pozzo, professor de Direito Administrativo da PUC-SP.

Esquina das ruas Gaivota e Rouxinol, no bairro de Moema, zona sul da cidade, onde moradores passaram dias sem luz Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Mas, no caso de energia elétrica, a questão é um pouco mais complexa. “As concessões de geração, distribuição e transmissão de energia elétrica são todas de natureza federal, por força do artigo 21 da Constituição. A União é o poder concedente por meio do Ministério (de Minas e Energia), e ela é também o poder regulador por meio da agência reguladora, a Aneel”, explica Felipe Fonte, professor de Direito da FGV-Rio.

“Os Estados têm competência concorrente para legislar sobre meio ambiente, sobre consumidor, e muitas vezes têm tentado impor certos padrões de qualidade às concessionárias por intermédio de legislação, com a alegação de que caberia nesse guarda-chuva, proteção do consumidor. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido muito refratário a essas ideias, porque tem entendido que elas muitas vezes são contra a regulação federal proveniente da Aneel e, em alguns casos, também impactam no equilíbrio econômico-financeiro da concessão”, pondera Fonte. Assim, caberia ao governo federal decidir pela possível quebra da concessão.

Embora não seja frequente, o rompimento pode ocorrer em diferentes setores da economia com serviços concedidos. Dal Pozzo reforça, no entanto, que é uma decisão que precisa ser cercada de cuidados para que a população e a administração pública não sejam ainda mais onerados. “Trata-se de um juízo que requer amparo em estudos técnicos preliminares para que possa ser bem conduzido, do contrário, ele pode ensejar prejuízos não calculados inicialmente”, afirma.

Em suas reclamações públicas do serviço prestado pela Enel e ameaças de rompimento do contrato, Nunes e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) constantemente se referem à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), responsável pela regulação do setor no País. Mas essa ação tem poder limitado, esclarece Felipe Fonte.

“Governadores e prefeitos nada podem fazer. Não podem romper o contrato e não podem fazer nada do ponto de vista regulatório, salvo reclamar politicamente e eventualmente apresentar algum tipo de reclamação na Aneel. Eles não têm poderes de aplicação de sanção ou para romper o contrato.”

Em nota, a Aneel afirma que tem atuado para aprimorar a resposta do segmento de distribuição a eventos climáticos de elevada severidade. “No curto prazo, a agência realizou uma série de reuniões com prefeitos, governo estadual e distribuidoras para articular ações a serem tomadas por cada parte dentro de suas atribuições e instaurou processos de fiscalização a respeito. No caso específico de São Paulo, cabe ressaltar que a agência já encaminhou à Enel São Paulo o Relatório de Fiscalização e atualmente analisa a manifestação da distribuidora para a aplicação das sanções cabíveis”, diz.

Agência também afirma que convocou as distribuidoras para cobrar ações imediatas e estruturar uma agenda de médio prazo. “A fiscalização da Aneel tem discutido e cobrado aprimoramentos nos planos de contingência das distribuidoras; e a agência incluiu em sua agenda regulatória a rediscussão da resiliência de redes frente a eventos climáticos de elevada severidade.”

Na quarta-feira, 31 de janeiro, Nunes enviou ao Tribunal de Contas da União (TCU) um pedido para que a corte fiscalize o contrato e a execução dos serviços praticados pela Enel. No requerimento, o Município cita até mesmo a possibilidade de rompimento do contrato. Ao Estadão, a Enel informou que não irá se manifestar sobre o tema.

Como são extintos os contratos de concessão?

Segundo o professor Felipe Fonte, da FGV-Rio, os contratos de concessão podem ser extintos por diferentes razões. “A maneira natural é pelo advento do tempo; acabou o prazo, a concessionária devolve o serviço ao titular e acabou”, diz .

“Entre outras hipóteses de rompimento está a chamada encampação, que é a retomada do serviço por razão de interesse público. O requisito para que se possa fazer encampação é pagar pelos bens que não estão revertidos (ao poder público) e indenizar a concessionária pela extinção antecipada do contrato. De modo geral, seria uma espécie de desapropriação do direito à exploração do serviço, e desapropriação pressupõe a indenização prévia.”

Logo após as fortes chuvas do mês passado, Ricardo Nunes chamou o presidente da Enel paulista, Max Xavier Lins, de “mentiroso”, e a empresa de “irresponsável”. Na ocasião, também disse que iria solicitar à Aneel que retire a empresa da cidade.

De acordo com o prefeito, a Enel vem descumprindo determinação judicial no que diz respeito ao plano de contingência para o caso de falta de luz na cidade — o plano havia sido demandado pela Prefeitura em uma ação na Justiça contra a concessionária em novembro. Nunes também demonstrou não estar mais disposto a manter diálogo com a companhia.

É nesse contexto que aparece uma terceira hipótese para rompimento de contrato: pela caducidade. “A caducidade é aplicada quando a prestação do serviço é ruim, quando não está em boa qualidade. Nesse caso, tem-se um acumulado de faltas da concessionária relativas à qualidade do serviço e o poder público vai lá e declara a caducidade dele. Nesse particular, a Aneel tem particular importância, porque é ela que vai aferir a qualidade”, destaca Fonte.

“A agência reguladora desempenha um papel decisivo no sentido de fornecer informações sobre o modo com que a concessionária vem atuando, ou, ainda, deixando de atuar”, ressalta Augusto Dal Pozzo, da PUC-SP. “Pode impor sanções às concessionárias de serviço público, entre elas, a Enel, como multas administrativas, por exemplo”. O professor da PUC considera que, “em situações extremas”, a agência também poderia agir pelo rompimento do contrato.

“Cabe uma ressalva. O rompimento, por parte da Administração Pública, é uma decisão soberana do ente público que não pode ser impedida pelas agências reguladoras, ainda que elas, cabe reafirmar, tenham total legitimidade para impor sanções.”

Ou seja, a administração pública pode proceder assim quando o interesse público – o bem-estar da coletividade – justificar. Para isso é fundamental que a decisão pelo rompimento do contrato seja acompanhada de fundamentação jurídica.

“Evidentemente, o distrato pode abrir margem para disputas judiciais, com a discussão de eventuais prejuízos sofridos por parte da concessionária. No contexto do Município de São Paulo, um dos mais populosos do mundo, com milhares de consumidores e, portanto, de investimentos atrelados, é altamente provável a judicialização do assunto com a adoção de uma medida nesse sentido”, diz o professor da PUC-SP.

Governador do Rio Grande do Sul também cogitou romper contrato com a concessionária local

Além de São Paulo, a Grande Porto Alegre enfrentou caos no sistema de energia por causa das fortes chuvas que caíram no dia 16 do mês passado. Boa parte da capital gaúcha ficou sem luz por vários dias. Alguns pontos permaneciam com problemas no abastecimento até o início desta semana.

Por causa disso, o governador Eduardo Leite (PSDB) também chegou a ameaçar pelo fim do contrato de concessão. “O Grupo CEEE Equatorial precisa melhorar sua relação com as autoridades e com a sociedade, então estamos demandando uma uma série de ações deles nessa direção”, disse Leite no mês passado, ao Correio do Povo. “Nós temos a expectativa de que a empresa mude a sua postura, e se não fizer isso ao longo do tempo, ela pode enfrentar um processo de retirada da sua concessão.”

A CEEE Equatorial alegou, em nota enviada ao Estadão, que vem realizando um conjunto de obras e investimentos estruturantes no sistema elétrico do Rio Grande do Sul, desde que assumiu o controle da concessionária, há pouco mais de dois anos. A concessionária alegou que, na ocasião, se deparou com mais de 70% das subestações em situação de sobrecarga e mais de 570 mil postes de madeira em final de vida útil.

“A despeito disso, é importante destacar que a concessão sofreu forte impacto de eventos climáticos extremos e sucessivos, com registros de fortes chuvas e ventos de mais de 120 km/h por quatro ocasiões em um curto intervalo de tempo. Tal situação coloca intensa pressão sobre a rede de distribuição, apesar de todo o empenho em alocação de recursos, aplicação de planos de contingência e reforço de equipes - inclusive de outras localidades do País”, diz a CEEE Equatorial.

A empresa também alega que “os investimentos realizados pela distribuidora, desde a sua chegada, possibilitaram a mitigação de riscos ao sistema elétrico local e o avanço em diversos indicadores regulatórios de qualidade definidos e fiscalizados pelo ente regulador”.

Uma semana no escuro

Em São Paulo, enquanto o poder público não se decide se irá ou não romper o contrato com a Enel, os problemas se acumulam. Síndica de um edifício residencial na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, Gisele Frey passou uma semana sem luz enquanto se desesperava com as sucessivas visitas de equipes da Enel que não conseguiam reestabelecer o fornecimento de energia elétrica.

A via-crúcis das 18 famílias que moram no prédio de dez andares começou durante a chuva do dia 8 deste mês quando a queda de um galho rompeu a ligação entre o poste e o edifício. “Chamamos a Enel que disse que não podia fazer nada enquanto a prefeitura não removesse os galhos. Quando o último galho foi removido pegou fogo na fiação”, afirma a síndica.

Alagamento na Freguesia do Ó, zona norte de São Paulo, após fortes chuvas no dia 10 de janeiro Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

No dia seguinte, uma nova equipe da Enel foi ao local e constatou que seria necessária a troca da fiação na parte interna do prédio. A síndica, então, correu para contratar um eletricista para fazer o serviço. “A cada equipe que vinha aqui, começava tudo de novo. Eles chegavam sem saber de nada e nós explicávamos tudo de novo”, afirma Gisele.

De segunda-feira, dia 8, até sexta-feira, dia 12, diferentes equipes foram ao local e o problema não era resolvido. A situação piorou na quinta-feira quando a bomba de água do prédio parou de funcionar e os moradores ficaram sem água. “Imagine o que é ficar sem luz durante uma semana e aí acabar a água?”, diz a síndica. “Temos moradores idosos que não conseguem se locomover.”

A saída foi alugar um gerador de energia elétrica para reestabelecer pelo menos o serviço da bomba de água. “Uma coisa que não entendo é que cada vez que uma equipe vai embora sem resolver o problema, eles encerram a chamada. E a cada nova equipe que vem não sabe nada do que está acontecendo”, diz Gisele.

A situação só foi resolvida na segunda-feira, dia 15, uma semana após o fornecimento de energia ser interrompido. “Não desejo isso a ninguém”, reclama a síndica.

Enel diz que colocou 800 equipes em campo

No mês passado, a Enel não comentou as afirmações do prefeito de São Paulo e as ameaças de rompimento de contrato. Sobre os problemas enfrentados durante uma semana pelos moradores do edifício na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, a empresa afirmou que “a equipe em campo precisou fazer reparos no poste danificado e a substituição do transformador queimado. No momento do restabelecimento do serviço, foi identificado um defeito na fiação interna do imóvel, o que impossibilitou a energização e o cliente foi informado que esse reparo era de sua responsabilidade.”

A Enel afirmou também que “as fortes chuvas que atingiram a área de concessão da companhia em São Paulo, foram acompanhadas por rajadas de ventos de mais de 90km/h associados a quedas de árvores e galhos destruindo diversos trechos da rede elétrica”.

A empresa ressaltou que os bairros mais atingidos pelo temporal foram Jardim Paulista, Vila Nova Conceição, Moema, Planalto Paulista, Jabaquara, Vila Mariana, Pedreira, Pirituba, Centro e Itaquera.

“Na ocasião, o pico de clientes interrompidos foi cerca de 300 mil, o que representa 4% do total de clientes da distribuidora em São Paulo. De imediato, a companhia reforçou seu plano de ação com mais de 800 equipes em campo e manobras remotas via sistema de telecomando para minimizar o impacto aos clientes. Durante cinco dias consecutivos, toda área de concessão da distribuidora foi impactada e técnicos da companhia atuaram, inclusive durante a madrugada, para reconstruir os trechos da rede de energia que foram danificados. O trabalho de restabelecimento de energia e reparos na rede, muitas vezes, é complexo, pois envolve a substituição de cabos e postes, entre outros equipamentos”.

Nesta quinta-feira, 1 de fevereiro, a empresa declarou que desde as fortes chuvas de novembro do ano passado implantou um plano de contingência especial. “Em casos mais severos, o aumento do contingente operacional pode ser até três vezes superior aos da operação em período normal”, o que se aplica também aos canais de atendimento, segundo a Enel.

“A companhia também tem intensificado as ações de manutenção preventiva e vai seguir investindo na automação e fortalecimento da rede elétrica (novas subestações, reforma de subestações existentes, novos circuitos elétricos, substituição de cabos elétricos convencionais por cabos compactos, dentre outras importantes ações). Os equipamentos de automação permitem reduzir o número de clientes afetados em caso de interrupção de energia e restabelecer a energia mais rapidamente por meio de manobras remotas na rede.”

A decisão do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), de pedir ao Tribunal de Contas da União (TCU) que fiscalize o contrato com a Enel, concessionária de energia elétrica, e avalie a rescisão do contrato com a empresa pode ter desdobramentos complexos e com efeitos a longo prazo.

A decisão que parece incerta, no entanto, é prevista pela lei que regula as concessões de serviços públicos. ”Os contratos de concessão de serviços públicos podem ser rompidos de forma unilateral pela administração pública. Esta prerrogativa é prevista pelo Direito”, diz Augusto Dal Pozzo, professor de Direito Administrativo da PUC-SP.

Esquina das ruas Gaivota e Rouxinol, no bairro de Moema, zona sul da cidade, onde moradores passaram dias sem luz Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Mas, no caso de energia elétrica, a questão é um pouco mais complexa. “As concessões de geração, distribuição e transmissão de energia elétrica são todas de natureza federal, por força do artigo 21 da Constituição. A União é o poder concedente por meio do Ministério (de Minas e Energia), e ela é também o poder regulador por meio da agência reguladora, a Aneel”, explica Felipe Fonte, professor de Direito da FGV-Rio.

“Os Estados têm competência concorrente para legislar sobre meio ambiente, sobre consumidor, e muitas vezes têm tentado impor certos padrões de qualidade às concessionárias por intermédio de legislação, com a alegação de que caberia nesse guarda-chuva, proteção do consumidor. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido muito refratário a essas ideias, porque tem entendido que elas muitas vezes são contra a regulação federal proveniente da Aneel e, em alguns casos, também impactam no equilíbrio econômico-financeiro da concessão”, pondera Fonte. Assim, caberia ao governo federal decidir pela possível quebra da concessão.

Embora não seja frequente, o rompimento pode ocorrer em diferentes setores da economia com serviços concedidos. Dal Pozzo reforça, no entanto, que é uma decisão que precisa ser cercada de cuidados para que a população e a administração pública não sejam ainda mais onerados. “Trata-se de um juízo que requer amparo em estudos técnicos preliminares para que possa ser bem conduzido, do contrário, ele pode ensejar prejuízos não calculados inicialmente”, afirma.

Em suas reclamações públicas do serviço prestado pela Enel e ameaças de rompimento do contrato, Nunes e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) constantemente se referem à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), responsável pela regulação do setor no País. Mas essa ação tem poder limitado, esclarece Felipe Fonte.

“Governadores e prefeitos nada podem fazer. Não podem romper o contrato e não podem fazer nada do ponto de vista regulatório, salvo reclamar politicamente e eventualmente apresentar algum tipo de reclamação na Aneel. Eles não têm poderes de aplicação de sanção ou para romper o contrato.”

Em nota, a Aneel afirma que tem atuado para aprimorar a resposta do segmento de distribuição a eventos climáticos de elevada severidade. “No curto prazo, a agência realizou uma série de reuniões com prefeitos, governo estadual e distribuidoras para articular ações a serem tomadas por cada parte dentro de suas atribuições e instaurou processos de fiscalização a respeito. No caso específico de São Paulo, cabe ressaltar que a agência já encaminhou à Enel São Paulo o Relatório de Fiscalização e atualmente analisa a manifestação da distribuidora para a aplicação das sanções cabíveis”, diz.

Agência também afirma que convocou as distribuidoras para cobrar ações imediatas e estruturar uma agenda de médio prazo. “A fiscalização da Aneel tem discutido e cobrado aprimoramentos nos planos de contingência das distribuidoras; e a agência incluiu em sua agenda regulatória a rediscussão da resiliência de redes frente a eventos climáticos de elevada severidade.”

Na quarta-feira, 31 de janeiro, Nunes enviou ao Tribunal de Contas da União (TCU) um pedido para que a corte fiscalize o contrato e a execução dos serviços praticados pela Enel. No requerimento, o Município cita até mesmo a possibilidade de rompimento do contrato. Ao Estadão, a Enel informou que não irá se manifestar sobre o tema.

Como são extintos os contratos de concessão?

Segundo o professor Felipe Fonte, da FGV-Rio, os contratos de concessão podem ser extintos por diferentes razões. “A maneira natural é pelo advento do tempo; acabou o prazo, a concessionária devolve o serviço ao titular e acabou”, diz .

“Entre outras hipóteses de rompimento está a chamada encampação, que é a retomada do serviço por razão de interesse público. O requisito para que se possa fazer encampação é pagar pelos bens que não estão revertidos (ao poder público) e indenizar a concessionária pela extinção antecipada do contrato. De modo geral, seria uma espécie de desapropriação do direito à exploração do serviço, e desapropriação pressupõe a indenização prévia.”

Logo após as fortes chuvas do mês passado, Ricardo Nunes chamou o presidente da Enel paulista, Max Xavier Lins, de “mentiroso”, e a empresa de “irresponsável”. Na ocasião, também disse que iria solicitar à Aneel que retire a empresa da cidade.

De acordo com o prefeito, a Enel vem descumprindo determinação judicial no que diz respeito ao plano de contingência para o caso de falta de luz na cidade — o plano havia sido demandado pela Prefeitura em uma ação na Justiça contra a concessionária em novembro. Nunes também demonstrou não estar mais disposto a manter diálogo com a companhia.

É nesse contexto que aparece uma terceira hipótese para rompimento de contrato: pela caducidade. “A caducidade é aplicada quando a prestação do serviço é ruim, quando não está em boa qualidade. Nesse caso, tem-se um acumulado de faltas da concessionária relativas à qualidade do serviço e o poder público vai lá e declara a caducidade dele. Nesse particular, a Aneel tem particular importância, porque é ela que vai aferir a qualidade”, destaca Fonte.

“A agência reguladora desempenha um papel decisivo no sentido de fornecer informações sobre o modo com que a concessionária vem atuando, ou, ainda, deixando de atuar”, ressalta Augusto Dal Pozzo, da PUC-SP. “Pode impor sanções às concessionárias de serviço público, entre elas, a Enel, como multas administrativas, por exemplo”. O professor da PUC considera que, “em situações extremas”, a agência também poderia agir pelo rompimento do contrato.

“Cabe uma ressalva. O rompimento, por parte da Administração Pública, é uma decisão soberana do ente público que não pode ser impedida pelas agências reguladoras, ainda que elas, cabe reafirmar, tenham total legitimidade para impor sanções.”

Ou seja, a administração pública pode proceder assim quando o interesse público – o bem-estar da coletividade – justificar. Para isso é fundamental que a decisão pelo rompimento do contrato seja acompanhada de fundamentação jurídica.

“Evidentemente, o distrato pode abrir margem para disputas judiciais, com a discussão de eventuais prejuízos sofridos por parte da concessionária. No contexto do Município de São Paulo, um dos mais populosos do mundo, com milhares de consumidores e, portanto, de investimentos atrelados, é altamente provável a judicialização do assunto com a adoção de uma medida nesse sentido”, diz o professor da PUC-SP.

Governador do Rio Grande do Sul também cogitou romper contrato com a concessionária local

Além de São Paulo, a Grande Porto Alegre enfrentou caos no sistema de energia por causa das fortes chuvas que caíram no dia 16 do mês passado. Boa parte da capital gaúcha ficou sem luz por vários dias. Alguns pontos permaneciam com problemas no abastecimento até o início desta semana.

Por causa disso, o governador Eduardo Leite (PSDB) também chegou a ameaçar pelo fim do contrato de concessão. “O Grupo CEEE Equatorial precisa melhorar sua relação com as autoridades e com a sociedade, então estamos demandando uma uma série de ações deles nessa direção”, disse Leite no mês passado, ao Correio do Povo. “Nós temos a expectativa de que a empresa mude a sua postura, e se não fizer isso ao longo do tempo, ela pode enfrentar um processo de retirada da sua concessão.”

A CEEE Equatorial alegou, em nota enviada ao Estadão, que vem realizando um conjunto de obras e investimentos estruturantes no sistema elétrico do Rio Grande do Sul, desde que assumiu o controle da concessionária, há pouco mais de dois anos. A concessionária alegou que, na ocasião, se deparou com mais de 70% das subestações em situação de sobrecarga e mais de 570 mil postes de madeira em final de vida útil.

“A despeito disso, é importante destacar que a concessão sofreu forte impacto de eventos climáticos extremos e sucessivos, com registros de fortes chuvas e ventos de mais de 120 km/h por quatro ocasiões em um curto intervalo de tempo. Tal situação coloca intensa pressão sobre a rede de distribuição, apesar de todo o empenho em alocação de recursos, aplicação de planos de contingência e reforço de equipes - inclusive de outras localidades do País”, diz a CEEE Equatorial.

A empresa também alega que “os investimentos realizados pela distribuidora, desde a sua chegada, possibilitaram a mitigação de riscos ao sistema elétrico local e o avanço em diversos indicadores regulatórios de qualidade definidos e fiscalizados pelo ente regulador”.

Uma semana no escuro

Em São Paulo, enquanto o poder público não se decide se irá ou não romper o contrato com a Enel, os problemas se acumulam. Síndica de um edifício residencial na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, Gisele Frey passou uma semana sem luz enquanto se desesperava com as sucessivas visitas de equipes da Enel que não conseguiam reestabelecer o fornecimento de energia elétrica.

A via-crúcis das 18 famílias que moram no prédio de dez andares começou durante a chuva do dia 8 deste mês quando a queda de um galho rompeu a ligação entre o poste e o edifício. “Chamamos a Enel que disse que não podia fazer nada enquanto a prefeitura não removesse os galhos. Quando o último galho foi removido pegou fogo na fiação”, afirma a síndica.

Alagamento na Freguesia do Ó, zona norte de São Paulo, após fortes chuvas no dia 10 de janeiro Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

No dia seguinte, uma nova equipe da Enel foi ao local e constatou que seria necessária a troca da fiação na parte interna do prédio. A síndica, então, correu para contratar um eletricista para fazer o serviço. “A cada equipe que vinha aqui, começava tudo de novo. Eles chegavam sem saber de nada e nós explicávamos tudo de novo”, afirma Gisele.

De segunda-feira, dia 8, até sexta-feira, dia 12, diferentes equipes foram ao local e o problema não era resolvido. A situação piorou na quinta-feira quando a bomba de água do prédio parou de funcionar e os moradores ficaram sem água. “Imagine o que é ficar sem luz durante uma semana e aí acabar a água?”, diz a síndica. “Temos moradores idosos que não conseguem se locomover.”

A saída foi alugar um gerador de energia elétrica para reestabelecer pelo menos o serviço da bomba de água. “Uma coisa que não entendo é que cada vez que uma equipe vai embora sem resolver o problema, eles encerram a chamada. E a cada nova equipe que vem não sabe nada do que está acontecendo”, diz Gisele.

A situação só foi resolvida na segunda-feira, dia 15, uma semana após o fornecimento de energia ser interrompido. “Não desejo isso a ninguém”, reclama a síndica.

Enel diz que colocou 800 equipes em campo

No mês passado, a Enel não comentou as afirmações do prefeito de São Paulo e as ameaças de rompimento de contrato. Sobre os problemas enfrentados durante uma semana pelos moradores do edifício na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, zona oeste de São Paulo, a empresa afirmou que “a equipe em campo precisou fazer reparos no poste danificado e a substituição do transformador queimado. No momento do restabelecimento do serviço, foi identificado um defeito na fiação interna do imóvel, o que impossibilitou a energização e o cliente foi informado que esse reparo era de sua responsabilidade.”

A Enel afirmou também que “as fortes chuvas que atingiram a área de concessão da companhia em São Paulo, foram acompanhadas por rajadas de ventos de mais de 90km/h associados a quedas de árvores e galhos destruindo diversos trechos da rede elétrica”.

A empresa ressaltou que os bairros mais atingidos pelo temporal foram Jardim Paulista, Vila Nova Conceição, Moema, Planalto Paulista, Jabaquara, Vila Mariana, Pedreira, Pirituba, Centro e Itaquera.

“Na ocasião, o pico de clientes interrompidos foi cerca de 300 mil, o que representa 4% do total de clientes da distribuidora em São Paulo. De imediato, a companhia reforçou seu plano de ação com mais de 800 equipes em campo e manobras remotas via sistema de telecomando para minimizar o impacto aos clientes. Durante cinco dias consecutivos, toda área de concessão da distribuidora foi impactada e técnicos da companhia atuaram, inclusive durante a madrugada, para reconstruir os trechos da rede de energia que foram danificados. O trabalho de restabelecimento de energia e reparos na rede, muitas vezes, é complexo, pois envolve a substituição de cabos e postes, entre outros equipamentos”.

Nesta quinta-feira, 1 de fevereiro, a empresa declarou que desde as fortes chuvas de novembro do ano passado implantou um plano de contingência especial. “Em casos mais severos, o aumento do contingente operacional pode ser até três vezes superior aos da operação em período normal”, o que se aplica também aos canais de atendimento, segundo a Enel.

“A companhia também tem intensificado as ações de manutenção preventiva e vai seguir investindo na automação e fortalecimento da rede elétrica (novas subestações, reforma de subestações existentes, novos circuitos elétricos, substituição de cabos elétricos convencionais por cabos compactos, dentre outras importantes ações). Os equipamentos de automação permitem reduzir o número de clientes afetados em caso de interrupção de energia e restabelecer a energia mais rapidamente por meio de manobras remotas na rede.”

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