Uma série de vídeos com gravações de episódios de violência policial em São Paulo criou uma crise o governo estadual e reforçou a necessidade de investigar abusos cometidos pelas tropas. Mas, na Justiça, o caminho para que esses agentes sejam condenados não costuma ser simples.
De cada 19 inquéritos abertos pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) contra PMs este ano, apenas um resultou em denúncia. Esses inquéritos não incluem só violência física, mas outros tipos de conduta pelos PMs. Pesquisas mostram ainda baixa condenação em casos de violência policial - uma delas revela taxa de 2%.
Especialistas apontam entre as causas a má qualidade das investigações, muitas vezes com provas coletadas só pela própria PM, a dificuldade de obter evidências e testemunhas, e o controle insuficiente do MP sobre a atividade policial.
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirma que todas as ocorrências de letalidade policial são rigorosamente apuradas pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das corregedorias, promotoria e Judiciário. Também diz não tolerar desvios dos agentes.
Já o MP diz exercer controle externo sobre a atividade policial para enfrentar a letalidade das tropas. Acrescenta que na Operação Escudo, realizada pela PM em 2023 no Guarujá, foram abertos procedimentos de investigação em todas mortes. O Tribunal de Justiça do Estado disse que os julgamentos nos plenários do Tribunal do Júri são públicos, conforme prevê a Constituição, para dar transparência e acesso à Justiça. Já a Corte de Justiça Militar informou apenas o número de inquéritos de homicídios envolvendo militares.
Até o último dia 10, o MP abriu 2.308 inquéritos e ofereceu 120 denúncias contra policiais militares. Cabe ao MP fazer o controle externo da atividade policial e, nesses casos, abrir apurações iniciais, instruir inquéritos e oferecer denúncias à Justiça Militar, que decide se os policiais serão processados criminalmente.
Primeiro julgamento da Operação Escudo teve absolvição
No dia 6, a Justiça absolveu dois policiais da Rota que mataram Fábio Ferreira em julho de 2023, na Operação Escudo. O capitão Marcos Verardino e o cabo Ivan Pereira foram denunciados por homicídio doloso qualificado.
O juiz Edmilson Rosas, da 3ª Vara Criminal do Guarujá, entendeu que os PMs agiram em legítima defesa. Segundo o magistrado, a vítima portava arma de fogo, “o que tornou necessária a reação dos denunciados, visando a repelir a injusta iminente agressão contra si e contra seus colegas de farda”.
A defesa citou que o morto era do Primeiro Comando da Capital (PCC), com antecedentes criminais. O juiz afirmou que os depoimentos dos réus e demais envolvidos foram uníssonos em apontar legítima defesa para evitar “injusta agressão” por parte da vítima.
O MP recorreu, alegando elementos suficientes para haver análise pelo tribunal do júri. Os promotores afirmam que, apesar de a vítima estar rendida, o capitão Verardino, que coordenava a operação, deu três tiros de fuzil no homem. O cabo Silva fez mais dois disparos de pistola quando a vítima já estava caída.
Procuradas pela reportagem, as defesas dos agentes não deram retorno. Os policiais voltarão ao serviço.
Segundo a acusação, os PMs não usavam câmeras nas fardas e teriam apagado imagens de câmeras de segurança da casa na frente do local da abordagem. No recurso, a Promotoria diz que os dois confessaram, em depoimento anterior, envolvimento em 25 mortes ao longo das carreiras. Foi o primeiro julgamento de policiais envolvidos em mortes na Operação Escudo.
De 2018 a 2023, intervenções da PM causaram 3.823 mortes no Estado. Destas, 269 resultaram em denúncias contra policiais militares por homicídio (7%), segundo o Centro de Apoio Criminal do MP-SP.
A alta da letalidade policial e a repercussão de abusos no último mês fez o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) admitir a necessidade de rever protocolos e treinamento nas tropas. Ele descartou, porém, tirar Guilherme Derrite, ex-agente da Rota, do comando da Segurança Pública.
Como é o júri nas mortes por PMs?
Antes julgados pela Justiça Militar, desde 1996 crimes dolosos contra a vida (com intenção de matar) praticados por PMs vão a júri popular. Crimes culposos (sem intenção) contra a vida e outros delitos de PMs previstos no Código Penal Militar, exceto crimes contra a vida, são de competência da Justiça Militar.
Nas mortes de civis que envolvem policiais, o inquérito deve ser aberto pela Polícia Civil, que o submete ao MP e ao juiz da Justiça Comum. Se a apuração indicar que se trata de homicídio culposo (sem intenção), é encaminhado à Justiça Militar.
Em seu mestrado na Universidade de São Paulo (USP), a advogada Debora Nachmanowicz avaliou julgamentos de policiais e apurou que, de 1.224 casos de mortes investigadas de 2015 a 2021 na capital, houve 20 condenações - em apenas quatro os policiais estavam em serviço. As demais envolvem brigas em bares, festas, eventos ou atuação similar à milícia.
Segundo ela, tanto jurados quanto o sistema de justiça tendem a pressupor a legitimidade das ações policiais. De 39 casos em que os PMs acusados alegaram revidar a uma suposta ameaça do suspeito, 14 tiveram absolvições sumárias – o juiz entende que o réu agiu em legítima defesa -, e 14 absolvições pelo júri. Em outro onze, houve condenação.
“Mesmo quando há imagens que não são de câmeras corporais, isso permite ao advogado do policial manejá-las a favor da legítima defesa”, afirma Debora.
Ela cita o exemplo do caso que pesquisou de um motoqueiro baleado nas costas. “´Parou a moto e tirou a mão do guidão, o que levou o policial a supor que ele pegaria uma arma. Por mais que a imagem sugerisse que o rapaz se entregava, a argumentação da defesa e a palavra do policial de que seria situação de perigo tiveram relevância grande para os jurados.”
Excludente de ilicitude e legítima defesa motivam absolvições
Em muitos casos, a promotoria não oferece denúncia contra PMs que mataram em confronto por entender que houve o chamado excludente de ilicitude. “O artigo 23 do Código Penal diz que não há crime se o agente pratica o ato em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito”, diz o criminalista Eugênio Malavasi.
“A forma como os jurados observam um policial julgado é diferente de como veem um traficante. Porém, se absolvem é porque entendem que a ação do policial não foi contra a lei”, afirma o advogado, com atuação em júris há mais de 30 anos, o que inclui PMs entre os clientes. E o fato de ter conhecimento sobre lei, segundo Malavasi, favorece o PM quando ele fala no julgamento.
“A presença de muitos policiais na plateia, à paisana, de pé ou perto dos jurados, causa constrangimento nos jurados e o medo de retaliação em caso de condenação. Isso porque os nomes dos jurados são abertos”, diz Debora. Na maioria dos casos de mortes de óbito em confronto com a PM, a família do morto não vai ao julgamento.
Sobre a presença de policiais militares nos julgamentos de colegas pelo tribunal do júri e a possível intimidação dos jurados, o TJ paulista informou que, como regra, esses julgamentos são públicos, ou seja, qualquer um pode acompanhá-los, conforme estabelece a Constituição.
Há exceções legalmente previstas, como processos em segredo de Justiça e, nesses casos, se restringe o ingresso.
Promotor relata dificuldades para reunir provas
O promotor aposentado Arthur Migliari Junior exemplifica também desafios da investigação. “Tem 80 testemunhas, mas quando você tenta abordar alguma, todas desaparecem. É óbvio que têm medo de apontar o policial envolvido no caso.”
A má condução dos inquéritos também pesa, segundo ele. “Faltam laudos da perícia e exames balísticos para dar certeza de quem fez o disparo. O promotor tenta resolver, mas muitos casos vão para o arquivo ou chegam ao juiz com erros. Se vai para o júri, a incerteza leva à absolvição”, afirma.
“A própria PM adota quase sempre procedimentos que dificultam investigação mais técnica dos casos, como desfazimento de local de crime, socorro a pessoas que já estão falecidas e recolhimento de cápsulas”, diz Luís Felipe Zilli, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ele acrescenta que a comunicação da PM com a Polícia Civil, a quem cabe investigar, geralmente demora. A SSP não comentou essas críticas.
Zilli destaca também o papel das bodycams. “Quando as câmeras corporais foram implementadas em São Paulo, o que se viu no primeiro ano da experiência foi redução de 80% da letalidade. É claramente a polícia dizendo que a prática violenta pode ser controlada com medidas administrativas.”
Governo diz que 414 policiais foram presos desde 2023; MP afirma apurar mortes
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública ressaltou compromisso com a legalidade, transparência e respeito aos direitos humanos fundamentais e disse que não compactua com excessos ou desvios de conduta dos policiais, punindo exemplarmente aqueles que infringem a lei e desobedecem os protocolos estabelecidos pela pasta.
Nos últimos 30 dias, segundo a pasta, 45 policiais foram afastados de atividades operacionais e dois tiveram a prisão decretada. “Os números refletem o rigor das investigações conduzidas pelas corregedorias das polícias, que atuam de forma estruturada e independente para garantir que nenhuma irregularidade fique impune. Somado a isso, desde o início do ano passado, mais de 280 policiais foram demitidos e expulsos, enquanto um total de 414 agentes foram presos.”
Já o MP-SP disse que, cumprindo a sua atribuição constitucional, exerce criteriosamente o controle externo da atividade policial. “A atuação da instituição é sempre regida pela técnica e dá-se desde a fase da investigação, seja por intermédio do acompanhamento do inquérito policial ou por meio da instauração de Procedimentos Investigatórios Criminais (PICs).”
Na Operação Escudo, o MP-SP instaurou um PIC para cada morte resultantes de intervenção policial - foram 28 no total. Ressalta ainda que o sistema de Justiça conta com diversos atores. “Cabe ao Ministério Público, pelo sistema acusatório vigente no Brasil, oferecer denúncia criminal nos casos de homicídio consumado ou tentado, mas compete ao Conselho de Sentença, formado pelos jurados, condenar ou absolver os réus.”