Após sustentar uma capela tombada a 31 metros de altura, o megacomplexo de luxo Cidade Matarazzo volta a chamar a atenção por uma obra de engenharia. Os trabalhos desta vez são nos blocos do antigo Hospital Umberto I, em que pilares a metros de profundidade e outros reforços têm permitido o restauro das fachadas e do telhado simultaneamente às escavações de subsolos e à demolição da estrutura interna. O destaque da nova fase será o teatro subterrâneo, com 17 metros de altura.
Os planos são de concluir todo o megaempreendimento bilionário até o fim de 2023, com dois hotéis, escritórios, capela, gastronomia variada, dezenas de lojas de luxo, spa e um centro de artes e criatividade. Tudo a duas quadras da Avenida Paulista, em conjunto com um boulevard – cuja permissão de uso por 30 anos acabou de ser autorizada pela Prefeitura – e os Parques Trianon e Mário Covas e a Praça Alexandre de Gusmão, que seguem públicos, mas com gestão privada por 25 anos.
A meta é atrair 20 milhões de pessoas por ano, somando os espaços, o que significa uma média de quase 55 mil por dia. “Não tem qualquer equipamento turístico que conheço no Brasil que tenha a capacidade de fazer um número tão grande”, compara o idealizador do complexo, o empresário francês, Alexandre Allard. Para ele, a procura pelos já em funcionamento demonstra que estava certo em investir no que alguns chamavam de “o lado errado da Paulista (o da Bela Vista)”. “Todo mundo falava do maluco francês, apostava no momento que eu fosse desistir. E eu não desisti”, recorda-se.
Ao todo, a obra custa cerca de R$ 3 bilhões, dos quais 35% são referências à fase atual, que engloba os cinco blocos do antigo hospital. “Existe uma complexidade talvez nunca feita no Brasil”, diz o engenheiro George Sallum, diretor técnico do complexo.
Além de aproveitar a estrutura existente, o projeto também envolve expansões. Como a maior parte do complexo envolve construções tombadas, a alternativa encontrada foi crescer abaixo do nível do solo. E não somente para estacionamento, mas também para centro de convenções, cinema, lojas, restaurantes, depósito, área técnica e até uma “dark kitchen” (cozinha exclusiva para delivery) de alta gastronomia.
No caso do bloco E do antigo hospital, o do teatro, a avaliação da equipe técnica da Cidade Matarazzo é que não há intervenção de engenharia no País comparável ao trabalho que se faz nesse espaço. Nem mesmo a da capela. Na prática, são duas obras dentro de uma, com o desafio de manter o esqueleto original de pé.
“Vai escavando e contendo as paredes, para segurar a envoltória (fachada)”, diz o diretor técnico do complexo. Há ainda a preocupação que seja uma estrutura capaz de suportar obras de arte de grandes dimensões, que em geral, costumam ficar em áreas externas pelo peso excessivo.
Sallum explica que não se trata de uma demolição normal, pela necessidade de manter as fachadas intactas. “Não pode usar equipamentos pesados por causa da vibração. Precisa entender tudo antes de fazer a execução.”
A obra no pavilhão começou pelas fundações e os pilares de sustentação, a partir de tubos metálicos inseridos no solo. Na sequência, começaram as escavações, por trechos de cerca de três metros, que seguirão até atingir próximo de 20 metros de profundidade.
Em paralelo, estão previstos trabalhos de restauro das fachadas e dos telhados, com o tratamento de patologias variadas, como colônias de insetos e quedas de revestimento. O imóvel esteve sem uso praticamente pelas últimas três décadas. Uma parte da expansão, principalmente da fase anterior, inclui a construção de novas edificações, o que foi possível após uma mudança no tombamento, em 2013.
De 1918, o bloco E foi originalmente o ambulatório e a residência das freiras que trabalhavam no complexo hospitalar. Agora, a transformação é em Casa da Criatividade, em parceria com o Bradesco, que realizará exposições – a primeira será do artista indo-britânico Anish Kapoor –, apresentações artísticas quase ininterruptas (22 horas diariamente, no teatro) e palestras, além de um laboratório que pretende unir artes, design, ciência e tecnologia, um clube da criatividade e um espaço criativo infantil.
São cerca de 7 mil metros quadrados de área coberta apenas nos cinco blocos do antigo hospital, aberto em 1904 e cujos pavilhões datam de momentos distintos. Ao todo, serão 40 mil metros cúbicos de terra advinda das escavações e 6,2 mil metros cúbicos de concreto nesta fase da obra, com um total que chegará a 500 trabalhadores.
Os espaços já em funcionamento e o que está nos planos da Cidade Matarazzo
A maior parte dos espaços da primeira fase da obra foram entregues no fim de 2021, como a Capela Santa Luzia (de 1922) e o hotel Rosewood São Paulo, de seis estrelas, que engloba a antiga Maternidade Condessa Filomena Matarazzo (de 1943) e uma nova construção, a Torre Mata Atlântica – projetada pelo renomado arquiteto francês Jean Nouvel e que reúne árvores em tamanho natural nas sacadas.
Parte dos quartos e apartamentos ainda estão em processo de finalização, que somarão mais de 200 unidades. “Hoje temos 90 quartos em operação, e apartamentos também. Já temos proprietários que moram na torre”, conta o diretor geral do hotel, Edouard Grosmangin.
O hotel contempla ainda três restaurantes e um bar abertos ao público, incluindo um espaço do premiado chef Felipe Bronze, o Taraz. Os preços são voltados a um público de classe alta, até atraindo comentários na internet, como sobre uma versão para o petisco bolovo que custa R$ 145.
Já a capela recebe missas semanalmente, realizadas padre Maurício Matarazzo Falcão, tataraneto da Condessa Filomena Matarazzo. Além disso, segundo o Rosewood, também responsável pelo espaço, tem recebido concertos e celebrações privadas, como casamentos.
O complexo contempla ainda o Edifício Aya, de escritórios, que deve abrir em fevereiro. A fachada do espaço é recoberta de cipós de concreto, que começaram a ser revestidos com plantas trepadeiras. O projeto é do escritório franco-brasileiro Triptyque, em parceria com o arquiteto francês Rudy Ricciotti.
A inauguração da primeira unidade do Rosewood na América do Sul foi noticiada até mesmo na The New York Times Magazine, que destacou a localização próxima à “icônica Avenida Paulista” e a arquitetura, de Jean Nouvel e da antiga maternidade, descrita como “um notável exemplar do início do século 20″. Dos corredores aos quartos, são cerca de 400 obras de artistas brasileiros.
Desde a abertura, os espaços têm chamado a atenção dos paulistanos mais abastados e de turistas brasileiros e estrangeiros. Para o idealizador da Cidade Matarazzo, a abertura é um sucesso e mostra uma valorização da “riqueza” brasileira.
E, quando diz riqueza, diz a de valor monetário também. “Ninguém queria comprar ou valorizar, por causa da necessidade de mostrar. E eu mostrei que o caminho da preservação é um caminho gerador de valor.”
Com a expansão do empreendimento, acredita que haverá um maior encontro das elites com outras camadas da população, especialmente de artistas, incluindo de periferias e indígenas. Os valores serão definidos de diferentes formas nas atrações culturais, principalmente por um algoritmo de tarifa dinâmica, a variar conforme a procura.
Os planos para os espaços públicos são distintos. Embora sejam vistos como ligados ao complexo, seguirão públicos e abertos, mas sob responsabilidade e gestão privadas – no caso dos parques e da praça, em consórcio com a a Farah Service, a mesma do Parque Bruno Covas, no Rio Pinheiros.
A ideia é que as mudanças nos parques comecem a ficar em evidência aos poucos partir do início de 2023, com nova programação cultural, com destaque para o aniversário de São Paulo, em 25 de janeiro. Diretor cultural da Cidade Matarazzo, Alê Youssef pode também passar a responder pela agenda. Entre as mudanças, estão mais atividades e tecnologia, como um aplicativo de realidade aumentada.
“Muitas pessoas, infelizmente, pensam que um parque é só um espaço verde. Mas isso é como dizer que um escritório é um cubo branco”, compara Allard. Ele defende que os parques são uma oportunidade de propagar a reconexão das pessoas com a natureza. “E o melhor lugar para falar disso é in situ.”
Cada um dos espaços terá um perfil diferente. O Parque Mário Covas será voltado especialmente à alimentação, com horta e atividades educativas. Já o Trianon será de “comunhão” com a Mata Atlântica, com atividades também à noite.
A Praça Alexandre Gusmão, na Alameda Santos, por sua vez, será voltada ao feminino. Um prêmio ao feminino será entregue mensalmente, além de atividades variadas voltadas ao tema, como debates e exposições.
Já o boulevard foi rebatizado de Sua Rua. A iniciativa engloba uma quadra da Rua São Carlos do Pinhal, uma quadra da Alameda Rio Claro e a chamada Alameda das Flores (que é exclusiva para pedestres e funciona como “calçadão”). O trecho liga o megacomplexo à Avenida Paulista.
O projeto não inclui mais o túnel que acabou gerando críticas e judicialização em 2019 e 2020. Como alternativa, o projeto agora prevê intervenções urbanas para reduzir a velocidade do tráfego de veículos e tornar a via mais amigável para pedestres, conhecidas chamadas de “traffic calming”.
A proposta prevê a criação de um mercado de ôrgânicos, com cerca de 35 quiosques, na Alameda Rio Clara. Entre as mudanças, estão também o plantio de árvores, o enterramento da fiação, a disponibilização de internet sem fio, a realização de atividades socioculturais gratuitas e a instalação de bancos, mesas, cadeiras, quiosques e outros itens de mobiliário urbano, em parte assinados pelos Irmãos Campana.
Cidade Matarazzo tentou tombar novas edificações
Outra frente que o megacomplexo chegou a buscar foi a ampliação do próprio tombamento para as novas edificações, que abrange hoje exclusivamente o antigo hospital. A solicitação foi indeferida em âmbito municipal, em fevereiro, e retirada na esfera estadual, após um parecer técnico contrário. O pedido também incluía a criação de uma área envoltória, o que desagradou empreendimentos da vizinhança.
O principal motivo das negativas foi que os imóveis estavam recém-inaugurados ou sequer prontos. Em geral, na área, defende-se que é necessário tempo para que ocorra uma reconhecimento público antes da decisão pelo tombamento. Além disso, projetos de arquitetos estrangeiros não radicados no País podem enfrentar maior resistência.
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