Neste domingo, 11, a 27ª Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo espera receber um público de 4 milhões de pessoas espalhadas pela Avenida Paulista. O evento, que já entrou para o Guinness como o maior do mundo nesse segmento, nem sempre teve toda essa adesão popular. “Não conseguimos lotar nem uma pista inteira da faixa de veículos”, relembra Beto de Jesus, presidente da 1ª edição, em entrevista ao Estadão.
“De 1997 a 1999, tínhamos problemas que, hoje, são risíveis. Não havia dinheiro nem para alugar um carro de som”, conta Beto, que hoje, aos 60 anos, deixou a presidência da Parada e é diretor da AHF Brasil, organização voltada à saúde e ao tratamento de pessoas vivendo com HIV.
O público da primeira edição em 1997 não passava de 2 mil pessoas, 0,05% do estimado para a deste ano. Naquela época, o evento não tinha verba no caixa e os panfletos de arco-íris eram impressos em preto-e-branco para depois serem pintados à mão com tinta e canetinha pelos organizadores; os trios elétricos sequer existiam e as palavras de ordem eram gritadas por kombis e carros de som emprestados pelos sindicatos das costureiras ou dos metalúrgicos.
“Eu não tinha certeza de quantas pessoas iriam aparecer. Já participei de atos com 30 ou 50 pessoas. Se não viesse muita gente, íamos caminhando pela calçada mesmo”, lembra o tradutor Lula Ramires. Hoje com 63 anos, ele tinha 37 quando ajudou a organizar a primeira edição do evento através do grupo CORSA (Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor) e se desesperou quando, faltando menos de duas horas para o início da marcha, as únicas pessoas presentes em frente à escadaria da Gazeta às 12h20 eram três rapazes perguntando: “Não vai ter, não?”.
Aos poucos, as pessoas foram chegando e formando o público da 1ª Parada do Orgulho GLT (gays, lésbicas e travestis“, que eram os três sujeitos políticos da época”, segundo Lula). Ainda assim, o contingente de pessoas não era suficiente para impedir que o trânsito passasse, e os policiais, segundo Beto, “faziam corpo mole”. Foi então que a drag queen Kaká di Polly tomou a situação em suas mãos e teve uma ideia para fazer o grupo andar.
“Ela se deitou no chão com outras drag queens e impediu os ônibus de passarem na nossa frente. Só aí que entramos”, lembra Beto, que ajudava a carregar uma versão de 50 metros da bandeira do arco-íris à medida que ônibus de Campinas, Santos e outras cidades da região chegavam com o público que faltava. “Não dava para ‘meia dúzia de gato pingado’ fechar a Paulista”, aponta Lula.
Aos 70 anos, a editora de livros Laura Bacellar tinha 36 naquela época e lembra da reação que o grupo causou nas pessoas: “Não chegamos a parar o trânsito. Era pouquinha gente e as pessoas passavam olhando com cara de ‘quem eram esses malucos’”, ri. “Mas a galera de lá estava muito animada e querendo fazer acontecer.”
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Kaká di Polly morreu em janeiro deste ano, em São Paulo. Seu legado para a Parada do Orgulho será relembrado em um ato histórico no próximo domingo, quando um grupo de drag queens e artistas vai se deitar no chão em frente ao trio de abertura do evento.
A ‘virada’ dos anos 2000
A ideia para a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo nasceu dois anos antes da sua primeira edição. Em 1995, após o 17º congresso da ILGA (International Lesbian and Gays Association) no Rio de Janeiro, o público saiu do evento caminhando em plena luz do dia pela Avenida Atlântica, na zona sul carioca.
“Já havíamos ido às ruas para reivindicar direitos, mas aquela foi a primeira vez que saímos para celebrar o orgulho de dia, e não de noite, com pessoas de vários lugares do mundo comemorando o fato de ser LGBT+”, lembra Beto.
No ano seguinte, uma outra caminhada também tomou de forma tímida a Praça Roosevelt, em São Paulo, com cerca de 300 pessoas. Foi quando enfim veio a ideia definitiva de importar para o Brasil o formato de Parada que se popularizava nos Estados Unidos desde 28 de junho de 1969, quando o Dia do Orgulho LGBT+ passou a ser comemorado mundialmente.
A Parada de São Paulo, entretanto, continuou atraindo um público “ínfimo” (quando comparado aos das edições atuais), até que veio a grande “virada de chave dos anos 2000″, pensada em colaboração por uma série de pessoas da comunidade que ajudaram a estruturar campanhas de divulgação, planejamento estratégico e financiamento para o evento.
“Foi quando decidimos que a Parada seria sempre no domingo de Corpus Christi, independente de quando ele caísse. Isso fez com que o evento durasse todo o feriado, trazendo gente de outros Estados e São Paulo, com toda a sua efervescência, começou a ter programação para os quatro dias”, explica Beto.
Boates, bares e lojas começaram a se programar para o evento, que naquela virada do milênio ganhou inserções ao vivo no Domingão do Faustão, na Globo, e patrocínio do Ministério da Saúde. Hotéis passaram a oferecer pacotes de hospedagem para casais gays, que até então dormiam apenas em quartos com camas de solteiro separadas. O público então saltou de 35 mil pessoas, em 1999, para 125 mil no ano seguinte, segundo a Polícia Militar.
“Saímos na capa de todos os jornais. A partir daí, tudo isso de pouca visibilidade (da Parada) acabou. As pessoas começaram a participar mais e a edição de São Paulo ganhou um caráter nacional, porque as pessoas não tinham isso em outras cidades”, comemora Beto.
‘Especial como aniversário’
A edição do Estadão publicada no domingo do 25 de junho daquele ano trazia uma matéria falando como a Parada “já se firmou como um acontecimento social da cidade” e que a organização esperava receber 100 mil pessoas de “uma turma diferente” na Avenida Paulista. Mesmo antes de acontecer, a reportagem já indicava que o evento simbolizava “a crescente organização do movimento gay”.
Na última segunda-feira, 5, o vice-presidente atual da Associação da Parada do Orgulho LGBT+ (APOLGBT-SP), Renato Viterbo, afirmou que o evento foi crucial para as conquistas da comunidade: “Sou atrevido em dizer que, se temos direitos LGBT+ no Brasil, é graças à Parada”, disse, citando conquistas como o tratamento para HIV oferecido pelo SUS, o reconhecimento legal da união homoafetiva e a criminalização da homotransfobia.
“Obviamente muita coisa mudou e avançamos com as conquistas. Mas, para mim, o mais importante da Parada até hoje é a magia. As pessoas que vivem sua sexualidade na clandestinidade, em bairros periféricos ou cidades conservadoras, sofrem muito pela saúde mental e a violência constante”, avalia Beto. “Mas quando elas vêm para cá, são energizadas por essa visibilidade”, afirma.
Nas primeiras edições do evento, ele lembra, não era difícil encontrar pessoas LGBT+ usando máscaras para esconder o rosto, com medo de aparecerem em fotos ou na TV e serem “descobertos” pela família, pelos amigos ou colegas de trabalho. “A gente sempre incentivou que o público fosse da maneira que se sentisse mais confortável”, lembra.
Laura, que fundou o grupo de ativismo Umas & Outras e ajudou a organizar as primeiras edições da Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais (a 21ª edição sai às 15h deste sábado, 10, do MASP), afirma que a visibilidade trazida pela Parada do Orgulho LGBT+ foi fundamental para o movimento, mas que esse mote acabou se perdendo nos últimos anos. “Virou uma coisa de carros de som e pessoas dançando na rua. É uma festa, e não exatamente uma parada em prol das minorias”, diz.
“Política não é só discurso, é a semiótica e a liberdade expressada pelos corpos ali presentes, onde as famílias podem estar presentes com seus filhos”, contrapõe Beto. “Quando as pessoas estão lá, estão felizes. Obviamente, a gente não vive a sexualidade só no dia da Parada, mas esse é um dia especial para nós, como se fosse o nosso aniversário. Mostra uma comunidade que se faz presente e fala que estamos em todos os locais de trabalho, escolas, famílias e igrejas.”
Os três veteranos do movimento concordam, entretanto, que o aumento da visibilidade LGBT+ e o avanço de direitos para a comunidade ainda não conseguiram erradicar o preconceito: “A ideia de que não é natural nem ‘de deus’ ainda persiste. Ainda temos crimes e bullying nas escolas”, diz Lula. “O que eu podia fazer era dar visibilidade para essa luta, mas ela não acabou. Quem está com 20 anos precisa pegar esse bastão e passá-lo adiante, porque só assim vamos construir uma sociedade justa para todos.”