Após adiamentos e mudanças na proposta, a Prefeitura de São Paulo espera definir até agosto o nome da concessionária que será responsável pela implementação e gestão do futuro Parque Campo de Marte por 35 anos. A proposta abrange cerca de 20% da área, em Santana, na zona norte, enquanto a maior parte segue da União. A operação do aeroporto não seria afetada.
O edital da concessão pública tem algumas mudanças em relação ao que foi ventilado até meados da gestão Ricardo Nunes (MDB), com a desistência da criação do museu aeroespacial — o que chegou a ser anunciado em conjunto com o governo federal, em 2017.
Em vez disso, a proposta sugere a construção de um “empreendimento associado”, uma espécie de centro comercial com a instalação sugerida de academia, coworking, lojas, lanchonetes e afins, o que inclui um “rooftop” com vista para o parque.
A licitação prevê uma obra em duas fases, com a entrega integral em até quatro anos. A Mata Atlântica nativa presente em parte do terreno deverá ser recuperada e preservada, enquanto também está prevista a instalação de equipamentos em áreas mais urbanizadas, como pista de skate e um centro poliesportivo.
Além disso, com a mobilização popular, o edital passou a garantir a manutenção do futebol de várzea, com histórico de décadas no local. Segundo o edital, a concessionária será responsável pela realocação, manutenção e reforma dos campos e demais instalações, em parceria com a associação de clubes amadores que atua no espaço.
Diferentes prefeitos discutiram a transformação do Campo de Marte em parque ao menos desde os anos 1990, com modelos distintos, mas geralmente ligados à desativação do aeroporto. Em 2004, chegou-se a falar até em um parque aquático, assim como discutiu-se uma expansão conjunta com o Complexo do Anhembi, em 2008, por exemplo, com outras propostas posteriores.
Mais recentemente, em 2017, a gestão João Doria (então no PSDB) e o então presidente Michel Temer (MDB) chegaram a anunciar um acordo, com um desenho de proposta semelhante à atual, mas com o museu aeroespacial.
O termo de conciliação que colocou fim a uma disputa entre Prefeitura e União por 90 anos somente ocorreu, contudo, em 2022, com a assinatura pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o então presidente Jair Bolsonaro (PL).
No entorno, já há corretores que anunciam imóveis destacando a vizinhança ao futuro parque. Além disso, a recente “minirrevisão do zoneamento” liberou predinhos de maior porte em diversas quadras da Avenida Braz Leme, nas proximidades.
Segundo a licitação, a concessionária selecionada será a que fizer a maior oferta de pagamento inicial à Prefeitura, com o mínimo estabelecido de R$ 305,6 milhões. A estimativa é de R$ 614,4 milhões de investimentos ao longo dos 35 anos de concessão. A abertura dos envelopes com as propostas de empresas e consórcios interessados estava marcada para 23 de julho, mas foi adiada para 16 de agosto.
O edital abrange um área de 385,8 mil m², o que representaria um dos maiores parques urbanos da cidade. Esse montante equivale a quase o triplo da área do Parque do Povo e, ainda, cerca de um terço do tamanho do Ibirapuera, por exemplo. Na licitação, é exigido o funcionamento por ao menos 12 horas ao dia, com a possibilidade de expansão.
Especialistas ouvidos pelo Estadão observaram pontos positivos e negativos da proposta. Ambos reconheceram que o modelo de concessão que abrange tanto a implementação quanto a gestão de parque urbano é incomum no País.
Como seria o futuro Parque Campo de Marte?
Além da chamada outorga inicial (de ao menos R$ 305,6 milhões, pagos antes da assinatura do contrato), a concessionária também deverá repassar à Prefeitura de 1% a 5% da receita bruta anualmente, segundo o edital. A receita estimada é de R$ 56,6 milhões por ano.
A proposta abrange três núcleos: o de preservação (que representa a maior área, com 266,7 mil m²), o de lazer, cultura e esporte (94 mil m²) e o da antiga esplanada (espaço utilizado para estacionamento de carros alegóricos no carnaval, de 25 mil m²). A obra inclui pequenas pontes e passarelas sobre os dois córregos que passam dentro do parque.
Com entrega em um ano e meio, a 1ª fase inclui as obras na área dos campos de futebol e a reforma do espaço utilizado por escolas de samba no período do carnaval, que passará a ter piso permeável. Nesse local, de forma facultativa, a concessão permite instalações temporárias para uso público nos demais períodos do ano, como bancos e mesas.
Não é exigido que sejam os mesmos campos de futebol de hoje, mas é obrigatória a manutenção e que continuem totalizando cinco, assim como obras de vestiários e outras instalações etc. Dentre as intervenções, a fase um exige:
- cinco campos de futebol;
- uma cancha de bocha;
- uma pista de treinamento de corrida;
- uma pista de skate.
Já a 2ª fase contempla a construção do equipamento poliesportivo e das demais instalações do parque. Isso inclui, dentre outras intervenções:
- Recuperação total da mata nativa da área de preservação;
- Criação de caminhos e trilhas;
- Implementação de equipamentos de ginástica, quiosques e playgrounds;
- Obras de drenagem.
Por estar em uma área do curso original do Rio Tietê antes da retificação e ter dois córregos (Tenente Rocha e Baruel), o espaço precisará passar por intervenções de drenagem obrigatória. O Estadão tem um mapa interativo que mostra essas áreas mais suscetíveis a inundações e afundamentos em toda a cidade.
A concessão envolve tanto obrigações quanto intervenções permitidas e sugeridas, cuja implementação não é exigida. Nesse caso, o “empreendimento associado” é tratado como a possível maior fonte de renda da concessão, além de cobrar estacionamento e explorar quiosques, por exemplo.
Segundo o edital, esse empreendimento poderá ter 27,1 mil m² de espaço construído. Outras fontes de renda indicadas (e não obrigatórias) são aluguel de bicicletas e implementação de espaço de tirolesa e arvorismo.
O núcleo de preservação deverá conter áreas de mata fechada, sem acesso ao público em geral, assim como espaços com bancos, lixeiras, bebedouros, sinalização educativa e equipamentos de ginástica, dentre outros. Além disso, precisará estar na rota dos 2,2 quilômetros de ciclovia e pista de corrida interna e de 2,5 quilômetros de trilha de caminhada.
A área está entre os espaços com a implementação preferencial de parque desde a revisão do Plano Diretor do ano passado. Por isso, passou a ser uma Zona Especial de Proteção Ambiental (Zepam), o que restringe o que pode ser construído no local. A criação do parque também foi instituída em um decreto de abril deste ano.
O que dizem especialistas sobre a proposta de concessão?
O Estadão procurou dois especialistas nas áreas de concessão pública e parques. Ambos afirmam que o modelo de concessão que abrange tanto a implementação quanto a gestão de parque urbano é incomum no País.
Também concordam que há potencial para atrair número significativo de frequentadores (no passado, havia quem chamasse de “Ibirapuera da zona norte”). Por outro lado, eles têm posições distintas sobre aspectos positivos e negativos da proposta.
Consultor em parcerias público-privadas e com passagem pela Prefeitura, Fernando Pieroni destaca que, embora a implementação venha a ser feita pela concessionária, grande parte do desenho do parque está orientado no edital.
“Esse modelo de concessão pode ser melhor do que se fosse gasto um dinheiro grande para implantar e, depois, ficasse sem meios para manter, como se vê em muitos parques”, avalia.
Também analisa que a decisão de desistir do museu e de propor um “empreendimento associado” de cunho comercial pode ter sido uma alternativa para atrair mais interessados na licitação. “Museu normalmente é um tipo de equipamento que não é um grande gerador de receita, por vezes, até é deficitário. Se retira isso e se coloca algo mais livre”, explica.
Ex-coordenador de projetos de parques na Secretaria do Verde e Meio Ambiente, o arquiteto e urbanista Matheus Casimiro aponta que o setor privado não tem conhecimento acumulado de décadas na concepção desses espaços, como a Prefeitura. Também considera que o edital não deixa claro se o poder público terá interlocução mais próxima na fase de elaboração de como será o espaço.
“A concessionária vai cuidar de toda a cadeia. Há a possibilidade de pensar cada uma das etapas pensando exclusivamente no seu próprio benefício”, diz ele, professor da Universidade Mackenzie. “É um modelo de desenvolvimento que tende a fragilizar a instância de controle pelo poder público.”
Para ele, a vizinhança com o aeroporto não prejudicará o parque. “É claro que o trânsito das aeronaves pode influenciar nesse espaço, mas não necessariamente é algo que impede a ocupação de um parque público por si. (O aeroporto de) Congonhas tem praças no entorno”, exemplifica.
O que os clubes de várzea acharam da concessão do Parque Campo de Marte?
A própria origem do termo “futebol de várzea” está ligada aos jogos perto do Rio Tietê. Há registros de atividades naquele entorno ao menos desde os anos 1960, com a celebração de contratos de uso e ocupação com a União a partir da década seguinte.
Após mudanças na proposta, a Associação dos Clubes Mantenedores do Complexo Esportivo Cultural e Cidadania do Campo de Marte se tornou favorável à concessão. “Vai melhorar a qualidade de vida da zona norte”, diz Otacilio Ribeiro, presidente da associação. “Foi uma luta enorme da comunidade pela preservação de um dos últimos redutos do futebol de várzea de São Paulo.”
Na avaliação de Ribeiro, a área dos campos de várzea do Campo de Marte já tem uso de parque, com alguns milhares de atletas amadores e espectadores aos fins de semana. Segundo ele, são realizados cerca de 150 jogos por fim de semana, o que inclui times com homens e mulheres, crianças e adultos (até da chamada “sub-100″, de idosos).
Campo de Marte tem vegetação nativa e espécies pouco comuns
Em parte formada por bosque, mata de várzea e ambientes aquáticos e brejosos, a área da concessão tem registros de plantas e animais nativos de São Paulo, alguns ameaçados de extinção. Há, também, a espécies de árvores e plantas invasoras, que precisarão ser retiradas para não prejudicar a recuperação da vegetação nativa.
Na fauna, foram registradas ao menos 112 espécies silvestres, a maioria aves. Dentre elas, estão duas ameaçadas de extinção (maracanã-pequena e gavião-asa-de-telha) e nove endêmicas de Mata Atlântica (teiú, saracura-do-mato, arredio-pálido, periquito-rico, tiê-sangue e outras), segundo dados da Prefeitura.
Na flora, há a identificação de ao menos 129 espécies, incluindo quatro nativas, como o cipó-de-mico. Levantamento municipal destacou a ocorrências de algumas raridades na cidade, como a canela (registrada em apenas outros seis pontos do município) e a potentilla (popularmente chamada de “falso morango”, que não é nativa e cujo último e único registro anterior na cidade seria de 1958).
Como fica o aeroporto do Campo de Marte? Ainda terá escola militar?
O aeroporto foi concedido à iniciativa privada em 2022, por 30 anos. Portanto, o espaço seguirá com pousos e decolagens de pequenas aeronaves e helicópteros mesmo após a eventual criação do parque ao lado.
Além disso, as Forças Armadas seguem com a obra de um colégio militar em parte da área. Em nota, o Comando Militar do Sudeste disse ao Estadão que está “seguindo um cronograma preestabelecido”, mas não informou estimativa para concluir os trabalhos.