O pastor evangélico Valdemiro Santiago lançou um desafio aos fiéis da Igreja Mundial do Poder de Deus no início do ano. “Preciso que 100 mil pessoas façam o investimento mínimo, simbólico, de R$ 100”. O objetivo era alcançar R$ 10 milhões para quitar dívidas, entre elas pendências trabalhistas, que motivaram uma greve de 52 dias de funcionários da TV Mundial, canal da igreja.
Embora seja comum nas igrejas neopentecostais para a coleta de dízimo, a passagem da maquininha de débito e crédito nos cultos para as doações está cada vez mais frequente entre as cadeiras azuis do templo do Brás, região central de São Paulo. Após a ascensão entre 2010 e 2015, a Mundial, como é conhecida entre os evangélicos, precisa de fato de um milagre para sair de uma grave crise financeira. Por trás do aperto nas contas, há problemas de gestão e conflitos familiares.
Representantes da igreja, por sua vez, afirmam que as dívidas decorreram do fechamento dos templos durante a pandemia e que os dízimos, única fonte de renda da igreja, são voluntários e seguem a liberalidade dos fiéis.
Os boletos formam pilhas. O Tribunal de Justiça de São Paulo registra cerca de 1,1 mil ações judiciais contra a igreja, a maioria por cobrança de dívidas. Os débitos com a União (dívida ativa) são de R$ 13,4 milhões. O montante é “bastante elevado” na comparação com outras organizações do mesmo porte, diz o advogado Daniel Moreti, juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo.
No último dia 9, a Justiça determinou a penhora de um templo em Santo Amaro, zona sul. O imóvel já estava desocupado e havia sido colocado à leilão em outros processos, mas a igreja conseguiu suspendê-los a partir de acordos com os credores.
Com capacidade para 20 mil pessoas e 46,9 mil m², o templo é um dos maiores do País. Segundo a Justiça, vale R$ 33,4 milhões – a Mundial argumenta que deve valer R$ 259 milhões.
A decisão foi tomada pelo juiz Diogo Volpe Gonçalves Soares em processo de R$ 881 mil em aluguéis não pagos de outro templo, em Ubatuba, no litoral paulista. O magistrado já havia determinado a penhora de dízimos dessa igreja, mas a decisão foi revogada após o advogado afirmar que a igreja estava com baixa arrecadação. A Mundial não pode mais recorrer; só questionar a correção da dívida.
Em outra ação, a Prefeitura de Ilhabela, no litoral norte, formalizou acordo em que a igreja se compromete a quitar R$ 2,4 milhões em atraso de IPTU de uma mansão com três piscinas e heliponto na Praia do Veloso. São 60 parcelas de R$ 48 mil.
Em abril, a Justiça determinou ainda a penhora de uma aeronave em processo movido pelo Nacional Bank para cobrar uma dívida de R$ 21,4 milhões desde 2018. A devedora é a empresa Intertevê Serviços Ltda, pertencente à família de Valdemiro.
No processo, a que o Estadão teve acesso, o banco argumenta que Filipe Pires Iannie, então genro de Valdemiro e representante da empresa, assinou termo de confissão de dívida no qual a aeronave era garantia ao pagamento. Os advogados de Valdemiro argumentam que o “procurador não poderia assumir ou contrair dívidas”. O avião é um Pilatus, modelo PC 12/47E, fabricado em 2009 e que estaria estacionado no aeroporto regional de Bonito (MS). Neste processo, o pastor pode recorrer.
As cobranças são feitas também por funcionários. Cerca de 50 empregados da TV Mundial entraram em greve em janeiro por atrasos nos salários. Foi a segunda paralisação em três anos. “Eles fizeram pressão psicológica dizendo que não pode ter greve em uma obra de Deus, mas meu aluguel estava atrasado e comprava comida no cartão de crédito”, diz uma funcionária, que prefere não se identificar.
Sergio Ipoldo, diretor do Sindicato dos Radialistas, afirma que todos os débitos já foram quitados neste mês. No total, foram 52 dias de paralisação.
Os questionamentos colocam um ponto de interrogação na trajetória de um dos líderes evangélicos mais influentes do Brasil. O pastor de 59 anos – que prefere ser nomeado como apóstolo - foi um dos rostos da “terceira onda” do neopentecostalismo, segmento que mais cresce no Brasil.
Também pertencem à corrente o bispo R.R. Soares, Edir Macedo, Silas Malafaia, cada um com sua própria corrente. “A Igreja Mundial do Poder de Deus foi instrumento de um movimento de fé sobrenatural entre 2010 e 2015″, avalia Ronaldo Didini, , consultor e ex-pastor da Universal, sem vínculos com uma denominação.
Gastos com TV e conflitos familiares
Vários fatores explicam o declínio do império. Além do fechamento do templo de Santo Amaro há dois anos, do impacto da pandemia e negócios que não deram certo, como a criação de um canal de TV em Curitiba, os investimentos na comunicação são altos. A TV é um palco caro para as igrejas.
Em disputa aberta com a Universal, a Mundial assinou contratos milionários para a compra de horários anos atrás. Atualmente os cultos ocupam 22 horas na Ideal TV, um canal fechado. Os custos que já foram de R$ 5,5 milhões por mês hoje estão pela metade.
Ex-consultor de mídia da própria Igreja Mundial, Didini aponta que esses custos pesam mais numa estrutura fragilizada como a atual. “Sem uma estrutura eclesiástica, a tomada de decisão recai sobre a liderança. A estratégia (o que fazer) sem a tática (como fazer) resulta em problemas a médio e longo prazos”, diz.
É a mesma visão do jornalista Gilberto Nascimento, autor do livro O Reino - a história de Edir Macedo e uma radiografia da Universal. “O pastor Valdemiro é cria da Universal, adaptou várias práticas, mas a sua igreja não apresenta uma estrutura sólida”, afirma.
Os funcionários da TV Mundial identificam problemas de gestão, concentrada nas mãos da família Santiago, e excesso de gastos com viagens, voos particulares e eventos. Eles citam o Troféu Gerando Salvação para novos talentos da música, que envolve viagens pelo Brasil para audições, em uma espécie de “The Voice” gospel.
Durante a produção da tese Igreja Mundial do Poder de Deus: Rupturas e Continuidades no Campo Religioso Neopentecostal, defendida na PUC-SP, o professor Ricardo Bitun conta que o próprio Valdemiro relatava dificuldades com a gestão. “Ele dizia que havia muita papelada e que tudo estava enrolado. Naquele momento, ela não mostrava tino administrativo”, afirma.
As relações familiares também ajudam a entender a crise da igreja. Quase três anos atrás, a separação entre a pastora Raquel Santiago, filha mais velha do pastor e responsável pela administração de parte dos negócios, e o empresário Felipe Iannie foi marcada por polêmicas.
No divórcio, houve acusações sobre má gestão dos recursos, principalmente pelo uso de voos particulares e compra de imóveis. “Eles (os Santiago) é quem devem milhões às minhas empresas e não pagam”, disse Pires ao portal Metrópoles, em dezembro de 2020. “Não tenho culpa da péssima administração dela (Raquel). Nem mesmo dos gastos abusivos deles”, afirmou ao site.
Procurados pela reportagem, Raquel e e o ex-marido não falaram sobre o processo de separação, que segue em segredo de justiça.
Pedidos são comuns nas neopentencostais; fieis ajudam como podem
Quem frequenta o culto da Igreja Mundial pela primeira vez pode se assustar com os pedidos incisivos por dinheiro. Quando se entra, um obreiro entrega um envelope com a frase “10% Dízimo da Alegria”. Os obreiros circulam entre as cadeiras com máquinas de débito, crédito e as tradicionais sacolinhas. Num dos cultos que o Estadão frequentou, o apóstolo citou cinco vezes a palavra “Reconstrução”, um eufemismo para a contribuição de R$ 100 pedida lá no começo. Existe até um carnê específico.
Essas práticas são comuns nas igrejas neopentecostais como explica o cientista social Vítor Queiroz de Medeiros. “A doação adquire um significado religioso”, diz autor da tese de doutorado Ativismo negro evangélico no Brasil contemporâneo, defendida na Sociologia na USP. Medeiros explica que a oferta se baseia na Teologia da Prosperidade, que valoriza a fruição da vida terrena e define o dízimo e a oferta como caminhos para a prosperidade.
Os pedidos de doações não abalam a confiança dos fieis, mas dividem a plateia. O valor é alto para alguns, como Maria Sebastiana Teixeira, de 66 anos, da Cidade Tiradentes, zona leste. A aposentada teve de escolher entre doar R$ 100 e o botijão de gás. Escolheu o gás. Em maio, ajudou com R$ 50.
Já o motorista de aplicativo Jeremias de Souza, de 38 anos, disse que, se pudesse, doaria mais, mas ainda não havia conseguido R$ 100. Ele diz que só foi possível comprar o carro próprio por causa de uma profecia do pastor. “Estamos com ele desde os tempos da outra igreja (Universal)”, conta.
O culto também é acompanhado com atenção por quem está com a vida financeira mais confortável, como empresários e profissionais liberais. Messias, que fornece só o primeiro nome, foi agradecer por um contrato grande de sua fábrica de tijolos em Ribeirão Preto - não disse quanto doou.
Omeletes com ovos de anu
Valdemiro fez sua carreira na Igreja Universal, a maior instituição neopentecostal do País, e chegou a ser apontado como virtual sucessor do líder Edir Macedo. É um grande feito para o menino pobre nascido em Cisneiro (MG), a 360 km de Belo Horizonte, que perdeu a mãe aos 12 anos e andava oito quilômetros por dia para levar marmita para os familiares na roça, quase sempre feitas com omeletes de ovos de um passarinho chamado anu.
Segundo relata, foi pedreiro e dormiu na rua até que um pastor lhe estendeu a mão. Depois, atuou como obreiro, pastor e um bispo carismático que liderava o ranking de arrecadação de dízimos e ofertas.
O líder religioso ganhou notoriedade por seu talento nas pregações na TV. Ajuda muito sua identificação com as pessoas mais simples – é negro e tem sotaque caipira. Do alto de seu 1,90 metro e 103 quilos (chegou a ter 153, mas emagreceu após cirurgia bariátrica há dez anos), o apóstolo conhecido por usar chapéus de vaqueiro e transformar o altar em um auditório.
É um astro que fala de milagres como causos e ri das próprias dificuldades. Ao comentar uma mascote – um coelho de pelúcia – entregue por uma fiel, ele brincou. “Vão falar: ‘o Valdemiro está com tanta dívida que está ficando zureta”. Na vida pessoal, anda descalço e gosta de comida feita no fogão à lenha, mas não dispensa relógios de ouro. Vive em uma mansão no condomínio Alphaville, em Santana do Parnaíba, Grande São Paulo.
Em uma de suas mais espetaculares histórias, gosta de contar que foi vítima de um naufrágio na baía de Maputo, em Moçambique, em 1996. “Éramos quatro. Dois morreram porque lá tem muito tubarão branco. Nadei o dia inteiro, das 9h30 às 17h e cheguei numa ilha deserta”. Foi em meio a esse naufrágio que recebeu o “chamado de Jesus Cristo”.
Após atritos com a liderança da Universal, nunca bem explicados, Valdemiro foi desligado do quadro de pastores em 1998. Mas já havia decorado a cartilha e fundou a sua própria igreja naquele ano.
Advogados da Igreja reconhecem ‘dívida astronômica’
No processo de penhora do templo de Santo Amaro, os advogados declaram que a Igreja Mundial é organização religiosa sem fins lucrativos que se mantém por meio de dízimos e doações e que o “caixa é volátil por natureza, uma vez que os dízimos e contribuições seguem a liberalidade dos fiéis, sendo de natureza voluntária e esporádica”. Além disso, diz que suas “despesas consomem integralmente sua renda e que, em razão de uma “dívida astronômica” é alvo de mais de 1.000 ações na Justiça”.
Em uma ação de despejo por falta de pagamento de aluguéis de R$ 381 mil em Mogi Guaçu (SP), em 2021, a igreja afirma ter registrado uma queda no recolhimento de dízimos e ofertas por causa da proibição ou redução dos cultos presenciais impostas pela pandeia.
“É publico e notório que a requerida (Mundial) vem enfrentando dificuldades financeiras, principalmente pelo longo período de pandemia, em razão de tratar-se de instituição religiosa sem fins lucrativos, dependente inteiramente da ajuda dos fieis para se manter”, diz um trecho.
No culto acompanhado pelo Estadão, na sede da igreja no Brás, o pastor reclamou de perseguição. “Algumas pessoas que são investidas de autoridade não gostam de nós e impõem certas situações que a gente não pode honrar e tiram bens da igreja e arrumam processos que não têm cabimento”.
Em entrevista ao programa Danilo Gentili, do SBT, Valdemiro afirmou existir preconceito contra pastores. “Dificilmente alguém vai perguntar isso (sobre riqueza) para um jogador de futebol, um cantor, ator. Ninguém pergunta isso para o papa, bispo que tem rede de TV, fazenda”, afirmou.
“Esse preconceito existe contra pastores e o evangelho. Eu não teria problema nenhum (em ser rico). Eu trabalho. É fruto meu. Mas a Igreja tem despesas altíssimas. E tenho provas de que é revertido para a igreja. Nenhuma igreja faz um trabalho de recuperação de drogados como a Igreja Mundial e isso custa dinheiro”, acrescentou o apóstolo.
O Estadão procurou a Igreja Mundial para comentar as dívidas e a crise financeira na instituição, mas não obteve retorno.