Os homens da Rota chegaram à Rua Itapeti, no Tatuapé, zona leste de São Paulo, com um mandado de busca e apreensão e outro de prisão para ser cumprido. Estavam em um dos 52 lugares revistados pela Operação Fim da Linha, feita contra a captura do transporte público de São Paulo pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).
Os policiais que receberam às 5h30 um envelope lacrado no quartel não sabiam que o papel os conduziria naquele dia 9 de abril a um dos endereços icônicos da cidade, o Edifício Figueira Altos do Tatuapé.
Com seus 50 andares e 168 metros de altura, ele é desde 2021 o prédio residencial mais alto da cidade. Pois foi ali, em um dos apartamentos, que eles apreenderam dois fuzis, uma submetralhadora, cinco pistolas e um revólver.
A ação no prédio mostra o grau de infiltração da facção na mais rica área da zona leste de São Paulo: a região do Tatuapé. O imóvel estava registrado em nome da empresa AHS Empreendimentos e Participações, mas seria usado pelo traficante de drogas Silvio Luiz Ferreira, o Cebola.
Integrante da Sintonia Final da Rua, a cúpula do PCC que cuida dos negócios fora dos presídios, Cebola é acusado de ser o “responsável pela administração da engenharia financeira necessária à lavagem de bens e capitais provenientes do tráfico”. A defesa de Cebola nega envolvimento com o tráfico ou com lavagem de dinheiro (leia mais abaixo).
As letras do nome da empresa proprietária levaram os policiais a outro importante personagem dessa história. É que elas são as iniciais do advogado Ahmed Hassan Saleh, o Mude, apontado pelas investigações como peça-chave no esquema de lavagem de dinheiro que permitiu à facção controlar a empresa de ônibus UPBus e à compra de casas e apartamentos milionários em prédios da região. O Estadão não localizou a defesa de Mude.
Unidades desses empreendimentos, como o Figueira Altos do Tatuapé, entraram na mira da Receita Federal e do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). São apartamentos de R$ 2 milhões a R$ 20 milhões no Tatuapé, no Jardim Anália Franco e na Vila Regente Feijó.
Há prédios que tiveram até seis apartamentos revistados desde 2018 por quatro operações policiais distintas. Muitos imóveis estavam registrados em nome de empresas de fachada e de laranjas a fim de ocultar os verdadeiros donos: membros da facção, entre eles pessoas ligadas a Marcola (Marco Willians Herbas Camacho).
Ao Estadão, a defesa de Marcola disse que a acusação de lavagem de dinheiro pelo Ministério Público contra seu cliente era “absurda” e destacou a absolvição pela 1ª instância na Justiça (leia mais abaixo).
Muitos deles foram vendidos por Antonio Vinicius Lopes Gritzbach, ex-diretor da Porte Engenharia. A construtora informou que Gritzbach deixou os quadros da empresa em 2018 e disse desconhecer que entre os clientes do ex-funcionário estivessem pessoas ligadas ao crime organizado.
Consultada pelo Estadão, a empresa disse ter construído três dos cinco principais prédios onde estão apartamentos listados em investigações policiais sob a suspeita de serem de bandidos da facção.
“Ele (Gritzbach) era um corretor de imóveis de uma grande construtora do Tatuapé, a Porte. Era jovem e chegava a ganhar R$ 1 milhão de comissão por mês. Ficou rico. Mas vendeu imóveis de luxo a pessoas erradas. E foi ouvindo coisas a respeito dessas pessoas”, disse o advogado Ivelson Salotto, que defende Gritzbach.
Ao todo, a reportagem encontrou 41 endereços de apartamentos na região em 12 das 20 principais investigações abertas pela Polícia Federal, Polícia Civil, Receita e Gaeco nos últimos cinco anos. O mesmo esquema funcionaria com lojas de carros importados da área. Centenas de operações de vendas de Lamborghini, Porsche, Ferrari, Mercedes e BMW foram feitas com contratos de gaveta no processo de lavagem de dinheiro do crime organizado.
O dinheiro da droga e de outros crimes também circula em fintechs da região. Uma delas, a Cash Back Turismo e Serviços Empresariais, teve R$ 200 milhões bloqueados pela Justiça sob a suspeita de ser um “verdadeiro Banco do Crime”.
A empresa está em nome de Lucas de Souza Teixeira, morador de um barraco em Heliópolis, maior favela de São Paulo, zona sul paulistana. Ela movimentou R$ 10 bilhões em pouco mais de dois anos, lavando dinheiro, segundo a Polícia Civil, de vários esquemas fraudulentos, bem como do PCC. O Estadão tentou contato com a defesa da empresa, mas não obteve retorno.
Acertos de contas
Foi no Tatuapé, a partir de 2018, que se encenaram alguns dos mais sangrentos acertos de contas feitos pela facção ligados ao tráfico transnacional de drogas: assassinatos como os dos traficantes Cabelo Duro, Galo, Magrelo, Sem Sangue, Django e o “suicídio” do Japonês do PCC (a policia investiga a hipótese de indução ao suicídio no caso) aconteceram na região.
É lá que mora uma das testemunhas fundamentais dessa trama: o ex-diretor da Porte Antonio Vinicius Lopes Gritzbach.
Com sentença de morte decretada pela facção, Gritzbach foi acusado de mandar matar um traficante do PCC e de se apropriar de R$ 100 milhões em criptomoedas - a defesa afirmou que ele é inocente.
Ele escapou de um atentado na véspera de Natal de 2023: um atirador disparou um tiro de fuzil na janela de seu apartamento, no Tatuapé.
Base de luxo
Todas essas circunstâncias levaram as polícias e o Ministério Público a concluir que o bairro se transformara na primeira base de luxo para criminosos que deixaram favelas de São Paulo e enriqueceram com o tráfico transatlântico por meio do qual a facção e seus parceiros da Máfia dos Bálcãs e da ‘Ndrangheta abastecem com cocaína os bilionários mercados da Europa, da África e da Ásia.
“É a nossa Little Italy, a nossa Sicília”, disse o promotor Fábio Bechara, do Gaeco, referindo-se ao bairro de Nova York e à região da Itália dominados pela máfia.
Os caminhos que levam as investigações ao Tatuapé são diversos, assim como os crimes investigados. Mas quase todos eles passam pela lavagem de dinheiro do crime organizado. Essa é a opinião de Bechara e também do delegado Marcos Galli Casseb, do 30.º Distrito Policial, a delegacia do bairro.
“Eles aproveitaram a pandemia para ampliar seus tentáculos no bairro”, afirmou Casseb, que se especializou no combate à lavagem de dinheiro. Foi justamente no começo dela que a PF desfechou a Operação Rei do Crime para investigar a lavagem de dinheiro da cúpula da facção. Nela surgiram pela primeira vez os endereços e negócios relacionados a Marcola na região.
São apartamentos, postos de gasolina e outros itens que faziam parte da lista de R$ 730 milhões em bens, que incluem ainda helicópteros e iates, bloqueados pela Justiça Federal. “Esses dados apareceram nos autos das Operações Rei do Crime e Tempestade”, contou o delegado Alexandre Custódio Neto, coordenador em São Paulo da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (FICCO), da PF.
As duas operações seriam anuladas pela Justiça Federal em 2023, em razão da morte da principal testemunha do caso: o piloto de helicóptero Felipe Ramos Morais, que assinara acordo de colaboração premiada e delatara o esquema de lavagem de dinheiro de Marcola. Morais foi morto por PMs de Goiás, que alegaram que ele resistira à prisão.
Um dos imóveis citados na Rei do Crime, na Rua Americana, no Tatuapé, reapareceu em outra investigação, feita pelo Gaeco, dois anos depois. Ele estava então em nome de Rodrigo Augusto Lima, que, segundo investigação dos promotores, era uma das identidades falsas usadas pelo traficante Cebola, o mesmo suspeito do apartamento da Rua Itapeti.
Estilo de vida
Além dos chefes da facção, seus familiares e gerentes saíram das comunidades pobres da zona leste e migraram para imóveis do Tatuapé, frequentando bares, restaurantes e festas nos condomínios do bairro. Investigadores apontam o que seria uma identificação do criminoso da periferia da zona leste com a área mais rica da região. Daí a escolha.
“Eles querem mostrar que a favela venceu. É todo um estilo de vida que passa por restaurantes elitizados, bares da moda e muita ostentação. Eles querem ser reconhecidos como pessoas da alta sociedade”, afirmou o delegado Maurício Luyten, do Departamento de Polícia de Proteção à Cidadania (DPPC), que investiga um esquema de lavagem de dinheiro por meio da compra e venda de carros de luxo na cidade.
“Eles estacionam carros de luxo em frente aos bares, consomem narguilé e movimentam as baladas do bairro às quartas e quintas-feiras”, afirmou a delegada Patrícia Escorcio, também do DPPC. Lounges, tabacarias e charutarias proliferam no Tatuapé, bem como bares onde o consumo de uísque blue label se transformou em símbolo de status procurado pelos integrantes do PCC.
Recentemente, policiais do 30.º DP tentaram prender Cebola em um desses bares, mas ele conseguiu escapar em um Porsche.
Tudo será esclarecido, diz advogado de Cebola
O advogado de Cebola, o criminalista Anderson Minichillo, afirmou que seu cliente nunca teve nenhum imóvel no Tatuapé nem morou na região. Minichillo negou que o cliente tenha envolvimento com o tráfico de drogas ou com o PCC e disse que, desde que a prisão dele foi decretada, Ferreira vive uma “vida de cigano”. Ainda segundo o criminalista, não houve lavagem de dinheiro do tráfico no aumento do capital social da UPBus.
“Foi um terreno e a integralização dos ônibus dos cooperados que formou o capital da empresa. Não existe dinheiro do tráfico. A empresa vai apresentar uma perícia contábil para demonstrar a legalidade e origem do dinheiro.”
Por fim, Minichillo afirmou que os bens do advogado Mude estão declarados no Imposto de Renda, bem como as armas apreendidas no apartamento da Rua Itapeti. “Tudo será esclarecido”, afirmou.
Defesa de Marcola destaca absolvição em 1ª instância
Bruno Ferullo, advogado de Marcola, destacou, em nota, a absolvição de seu cliente no processo que tramitou na 1ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital do Estado de São Paulo por lavagem de dinheiro.
Segundo o defensor, “a acusação não trouxe o mínimo de elemento para estabelecer liame [vínculo] ou nexo causal entre o crime antecedente e a suposta lavagem de dinheiro, sendo certo ainda que não houve qualquer conclusão no sentido de que os investigados desenvolviam com habitualidade a prática ilícita”.
Acrescentou ainda que, na fase de instrução do processo, não houve produção de “qualquer prova que pudesse respaldar a acusação do Ministério Público”, pois, “entre os eventos narrados pelo órgão acusatório, constam só informações genéricas, abstratas e superficiais, que tentam corroborar, sem êxito, e estabelecer ligação entre Marco, os familiares dele e uma absurda acusação de lavagem de dinheiro”.