"Maende na mafanburo!", celebrou o quilombola Marcos Jovenil, de 61 anos, numa língua conhecida como cupópia, após receber a primeira dose da vacina contra a covid-19, no final da manhã de sexta-feira (22), no quilombo do Cafundó, em Salto de Pirapora. Jovenil é um dos poucos que ainda falam a língua de resistência que tornou o Cafundó conhecido. Ele disse: "Vacina na doença!". Depois acrescentou: "Anguso do Jandi cuendô o maende no godemo do vimbundo (A força de Deus pôs a vacina no braço do homem preto)"
O "maende", ou seja, a Coronavac enviada pelo governo do estado, só foi suficiente para 18 dos 120 moradores do quilombo, incluindo crianças. Foram escolhidos os moradores com mais de 60 anos. A prefeitura informou ter recebido 520 doses e o restante foi destinado a outros grupos prioritários, como servidores da saúde e idosos em asilo. A líder da comunidade, Regina Aparecida Pereira, disse que a chegada da vacina foi providencial.
Apesar do isolamento em que vive, o Cafundó registrou há duas semanas o primeiro caso de covid-19. "Um morador nosso teve sintomas graves e ainda está internado em hospital público de Sorocaba, mas felizmente já saiu do oxigênio". Ela espera que os demais quilombolas sejam vacinados logo. "Somos sempre os últimos para tudo, mas para a vacina a gente espera que não esqueçam da gente. Queremos que todos sejam tratados de forma igual."
O Cafundó foi a primeira comunidade quilombola de São Paulo a receber doses de vacina. No dia seguinte, o governo estadual lançou oficialmente a vacinação dos quilombolas paulistas no Quilombo Ivaporunduva, em Eldorado, no Vale do Ribeira, mas a prefeitura de Salto de Pirapora já tinha se antecipado. Segundo o município, a comunidade negra estava no cronograma de vacinação municipal, após ter apresentado o primeiro caso grave da doença. A cidade de 45 mil habitantes registra quase 2 mil casos e 19 mortes pela doença.
RESISTÊNCIA - A história do Cafundó (lugar distante, de difícil acesso, segundo os dicionários), começou em 1866, quando o fazendeiro Joaquim Manoel de Oliveira libertou quinze escravos e os tornou, por escritura pública, donos de 218 alqueires de terra. A pequena aldeia que se formou no local atraiu outras famílias de escravos libertos, mas as terras passaram a ser alvo de grilagem. Os negros acabaram confinados em 7,8 alqueires e, para se comunicarem entre si, desenvolveram uma linguagem própria, incompreensível para os estranhos. Assim nasceu a cupópia, só 'descoberta' no final da década de 1970.
Pesquisadores como Carlos Vogt, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apontaram a cupópia como uma linguagem de resistência dos descendentes de escravos, formada com vocábulos do quimbundo e outras línguas faladas na Angola, adicionados ao português caipira típico do interior paulista. O quilombo foi reconhecido pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) em 1999. O bairro sofreu muitas transformações após a chegada da luz elétrica e do asfalto próximo, mas mantém algumas casas de pau-a-pique cobertas com sapé, as rodas de samba e capoeira, e o sincretismo religioso, entre ritos católicos e do candomblé.
Com o tempo, a cupópia também sofreu a influência de gírias e palavras do inglês e chegou a correr o risco de desaparecer. Os mais antigos esforçam-se para mantê-la viva. Além de Jovenil, outros seis moradores mais velhos usam a cupópia nas conversas entre si. Solteiro, Jovenil ensina a linguagem para outras crianças da vila. "Tatava vimbundo nada de cucuero (Homem preto esperto não casa)", brincou o quilombola.