Cracolândia: ‘Operações parecem ignorar que usuários não têm para onde ir’, diz pesquisadora


Cenas de saques a comércios e depredação de carros têm se repetido nos últimos meses. Na última semana, um ônibus e um caminhão de lixo foram depredados

Por Ítalo Lo Re
Atualização:
Foto: Nanda Gondim
Entrevista comDeborah Frommdoutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

Cenas de saques a comércios e depredação de carros têm se repetido nos últimos meses na Cracolândia, no centro de São Paulo. Na última semana, integrantes do fluxo, como são chamados os dependentes químicos em cenas de uso, atacaram um ônibus de transporte público e um caminhão de lixo da Prefeitura. Ao menos duas pessoas se feriram.

O caso recente se junta a uma série de outros ocorridos desde que a Cracolândia passou a ser itinerante, no começo do ano passado. O fluxo até chegou a ocupar por um tempo a Praça Princesa Isabel (hoje gradeada e transformada em parque), mas depois passou a se movimentar continuamente pela região central, principalmente pelas ruas de Santa Ifigênia.

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Para Deborah Fromm, doutora em Antropologia Social pela Unicamp e pesquisadora do Cebrap, a nova formatação dificulta o tratamento de dependentes químicos. “A partir do momento em que a polícia chega, joga bombas e faz eles migrarem para algum lugar, isso gera uma incerteza para as políticas sociais”, diz. “Fica mais difícil de os trabalhadores sociais criarem vínculos para acompanhar determinada pessoa.”

A questão também afeta diretamente moradores e frequentadores do centro, que têm de conviver com mais imprevisibilidade. “Não é bom para ninguém. Tem muita gente passando pelo centro o tempo inteiro, e de repente a pessoa está em uma cena de guerra”, acrescenta Deborah, que acompanha o tema de perto há cerca de 10 anos e fez mestrado sobre a Cracolândia.

Agentes da Polícia Militar chegaram a fazer cordão no último fim de semana para conter fluxo por um tempo Foto: Ítalo Lo Re
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Como tem mostrado o Estadão, a sensação de insegurança aumentou na região, com moradores e comerciantes tensos. Como medida de segurança, alguns deles compartilham diariamente a localização do fluxo com colegas no WhatsApp. O objetivo é evitar estar próximo caso uma nova confusão ocorra na Cracolândia. Veja abaixo os principais trechos da entrevista com a pesquisadora:

Como avalia o momento da Cracolândia, com episódios de saques e confusões com motoristas e comerciantes?

Tem novidades, mas há muita repetição do que a ação pública tem produzido. Desde 2005 pelo menos, com a ‘Operação Limpa’ (ofensiva policial com realização de blitzes constantes, na gestão José Serra), há tentativas de dar soluções milagrosas para a Cracolândia, de governadores e prefeitos que prometem solucionar o problema, sobretudo por meio de operações policiais. Hoje, o que se vê é um aperto das forças policiais no sentido de focar exclusivamente na estratégia de dispersão. De fazer operação atrás de operação para tentar não manter a aglomeração. Mas é uma estratégia extremamente complicada e ineficaz, porque a Cracolândia sempre volta.

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Operações parecem desconsiderar que as pessoas não têm para onde ir. Geram conflitos e acumulação da tensão social

Deborah Fromm, pesquisadora

As operações parecem desconsiderar que as pessoas não têm para onde ir. Geram conflitos e acumulação da tensão social, porque os frequentadores ficam extremamente estressados e começam a reagir. Quando se tem ação do poder público violenta e estressante, há instabilidade. Quando se dispersa, gera problemas para outras regiões da cidade, para comerciantes, moradores que não estão acostumados a lidar com a situação. Ao mesmo tempo, a população de rua, especialmente da Cracolândia, fica estressada, mais violenta, reage também contra carros, transporte público e tudo mais.

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Ao menos desde 2016, há desmonte sistemático da assistência social na cidade e também em torno da situação da Cracolândia. Não é algo de agora. Isso é previsível: a partir do momento em que fecha abrigos, hotéis que acolhiam essa situação e para de dar a assistência necessária, a situação tende a se agravar, combinado também com o aumento da população de rua na cidade como um todo (segundo censo mais recente da Prefeitura, a cidade tem mais de 31 mil pessoas vivendo nas ruas).

Pode dar um exemplo do que chama de “desmonte sistemático da assistência social” na cidade?

O fim do programa De Braços Abertos (estratégia de redução de danos, conduzida na gestão Fernando Haddad, de 2013 a 2016) foi um “turning point” na região. Na época que o programa esteve vigente, a Cracolândia não acabou, mas ficou muito mais, para usar uma palavra um pouco forte, civilizada. Os conflitos na região eram muito menores, o que gerava menos problemas para a vizinhança, para os comerciantes e tudo mais.

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Na passagem de uma gestão para outra, houve troca de programa, mas programa não é uma política de Estado. Com a falta de política de longo prazo, que as pessoas possam confiar na ação estatal, essas pessoas perderam um plano de futuro. Em paralelo, houve fechamento de abrigos e de ONGs, com políticas que vêm sendo pautadas na diminuição da assistência social.

A dinâmica de o fluxo sair em determinados horários do dia para equipes da Prefeitura realizarem limpezas é antiga. Mas essa maior itinerância por mais pontos do centro passou a ocorrer com mais frequência a partir de 2022. Isso foi negativo?

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Essa itinerância coletiva, de a Cracolândia estar em um quarteirão e depois em outro, tem muito a ver com a ação da polícia. A partir do momento em que a polícia chega, joga bombas e faz eles migrarem para algum lugar. Isso gera uma incerteza para as políticas sociais, porque fica mais difícil de os trabalhadores sociais criarem vínculos para acompanhar determinada pessoa ou família. Fica mais difícil se cada hora está em uma rua diferente. Gera uma circulação que prejudica a própria ação estatal e o acompanhamento dos casos.

A Cracolândia não é território fixo, é móvel, porque é feita da aglomeração das pessoas. É sempre pelo centro, porque há dinâmicas urbanas que levam os fluxos marginais para lá. Não dá para isolar a Cracolândia do restante da cidade, do que o poder público está fazendo nas periferias, do que o crime está fazendo nas periferias. Todos esses regimes de regulação, de conflito, têm a ver com a formação da Cracolândia. É o centro da maior cidade da América Latina. Ações muito localizadas não funcionam se não se olha a complexidade. No debate público, fica parecendo que é tudo culpa do uso do crack, mas há muitas outras dimensões que produzem a Cracolândia.

Quando a dispersão ocorreu no ano passado, a Prefeitura, sob a gestão Ricardo Nunes, justificou que isso facilitaria o tratamento, com os usuários descolados do fluxo. Essa mesma tática deu certo em outros países?

O que o pessoal da assistência social sempre diz, e que faz mais sentido, é que manter todo mundo ali no mesmo lugar faz algum sentido porque é uma permanência. Cria rotina, os trabalhadores sociais conseguem acessar aquela pessoa várias vezes, acompanhar o caso. Se essa pessoa circula e está em territórios diferentes da cidade, é difícil encontrar. O Estado perde o rastro. Isso dificulta a ação estatal na política social. Em termos do que tem dado certo fora, passa pela discussão do “housing first” (conceito de habitação primeiro, em que se prioriza resolver o problema da moradia, que também tem sido adotado pela Prefeitura) e a questão da redução de danos, sobretudo como política massiva.

Usuário caminha por rua em Santa Ifigênia enquanto equipes da Prefeitura de São Paulo realizam limpeza Foto: Andre Penner/AP - 18/05/23

A internação funciona, é importante em diversos casos, mas no Brasil a própria regulação das comunidades terapêuticas, das clínicas, é complicada. São laboratórios de tentar formas de abstinência, formas espirituais etc. Ao mesmo tempo, há pouquíssimo financiamento público para ações que de fato pensem essas questões mais amplas, de como a pessoa consegue lidar com a questão do consumo na realidade dela, que pense a questão do trabalho, da moradia, das desigualdades sociais . É uma simplificação achar que é só sobre o consumo de crack. E o trabalho? E a escolarização? E a profissionalização? E a casa? O que tem dado certo são as formas de tentar lidar com o consumo de drogas de maneira mais complexa.

Tem algum país que seja referência nisso, principalmente algum que tenha uma realidade mais parecida com o Brasil?

Tem o caso da heroína e do crack, que foram fortes nos Estados Unidos. Por lá, houve políticas de redução de danos que foram colocadas em prática e foram bem sucedidas. E há também o caso de Portugal, que começou a pensar em salas de consumo. Agora, há um momento em que o crack está se expandindo para países europeus, como na França, mas o problema não é lidado dessa maneira como é no Brasil. São políticas mais baseadas em direitos humanos, em pensar em dar as condições para a pessoa sair dessa. Essa questão das ações policiais gera muito conflito com as próprias pessoas do fluxo, mas também com os moradores em volta e com os comerciantes. Não é bom para ninguém. Tem muita gente passando pelo centro de São Paulo o tempo inteiro, e de repente a pessoa está em uma cena de guerra.

Em post nas redes sociais, você destacou pontos para se refletir nas políticas públicas para a Cracolândia, entre eles o fato de que a presença do Estado, da forma como ocorre hoje, é fator determinante para o comportamento do fluxo. Como avalia?

Acompanhei a trajetória de algumas pessoas do fluxo durante pesquisas e ficava interessada em saber como elas foram parar lá, qual era a história de vida, o antes, o durante e o depois. E tiveram muitos casos em que vi que a situação anterior era muito pior. Muitas vezes as pessoas vêm de situações de mais opressão, de violência doméstica e de situações familiares complicadas.

Policiais militares acomapanham ação de limpeza em região ocupada pela Cracolândia Foto: Andre Penner/AP - 11/05/23

Por exemplo: um dos usuários que acompanhei morava na periferia de São Paulo e desde criança fez pequenos furtos. Depois, com 12 anos, se envolveu com o tráfico de drogas e chegou a ter status no mundo do crime local. Quando ele começou a usar crack de uma maneira intensa, foi colocado de lado. Não pôde mais vender na “boca” (ponto de venda) e também foi proibido de usar por lá, porque na periferia tem a questão da regulação do uso.

A própria questão de conseguir tomar banho, comida, é mais complicada na periferia, na comparação com os recursos circulam no centro. Ele começou a arrumar muita confusão no bairro dele, até que o pessoal do crime o expulsou. Ele vai para o centro, inclusive para buscar tratamento, porque há concentração da rede assistencial e de tratamento lá.

Chegando na Cracolândia, ele falou que foi o paraíso, porque podia fumar livremente, não precisava se esconder, voltou a trabalhar no tráfico dentro do fluxo e retomou um pouco do status. Ou seja, na periferia ele estava em uma situação pior do que quando se inseriu na Cracolândia. É um pouco paradoxal, porque olhamos para a Cracolândia pensando que todos estão no fundo do poço, mas não necessariamente. Quando você olha para as histórias de vida, faz sentido a ida e a permanência ali. A questão da proteção, por estarem todos juntos, a liberdade para consumo, a facilidade de obter. Isso não é para romantizar a realidade local, mas é de fato para complexificar essa questão. É preciso pensar as políticas públicas em contexto, há uma sociabilidade dentro do fluxo, muitos dizem que a Cracolândia é uma família. Tem regras, ordens, uma hierarquia, valores que são compartilhados. Ignorar tudo isso e propor uma política que venha de fora não vai funcionar.

Pensando a partir da forma como a Cracolândia está configurada hoje, quais políticas públicas poderiam funcionar no curto e médio prazos?

Essa ideia de que a solução para a questão é acabar, de que as pessoas têm de sair dali, de que o espaço público tem que ser liberado, é complicada. Quando se pensa a Cracolândia como um produto das estruturas de desigualdade, do nosso estilo de vida como produto de vida das políticas urbanas colocadas em todo o resto da cidade, mas também do País, há políticas mais efetivas que melhoram a qualidade de vida das pessoas e que as integram com a vizinhança. Isso evita conflitos como os que têm ocorrido, arrastões. As políticas públicas que estão sendo feitas, policiais e repressivas, de ficar incentivando (conflitos), de estressar, de dispersar, radicalizam o conflito.

Políticas públicas que estão sendo feitas, policiais e repressivas, de ficar incentivando (conflitos), de estressar, de dispersar, radicalizam o conflito

Deborah Fromm, pesquisadora

Há políticas com assistência social e com agentes de saúde em que se consegue criar rotina, previsão, projetos de vida, produzir algumas inserções sociais. Sem mudanças estruturais, a Cracolândia não vai sumir. Se não mexer em questões estruturais, em termos de desigualdade econômica, moradia e mercado de trabalho, não tem como sumir. A busca incessante por solução rápida não tem funcionado. Talvez um caminho seja repensar o que consideramos como solução, o que é priorizado nas falsas soluções que são apresentadas pelo poder público e que não têm gerado o fim da Cracolândia.

Cenas de saques a comércios e depredação de carros têm se repetido nos últimos meses na Cracolândia, no centro de São Paulo. Na última semana, integrantes do fluxo, como são chamados os dependentes químicos em cenas de uso, atacaram um ônibus de transporte público e um caminhão de lixo da Prefeitura. Ao menos duas pessoas se feriram.

O caso recente se junta a uma série de outros ocorridos desde que a Cracolândia passou a ser itinerante, no começo do ano passado. O fluxo até chegou a ocupar por um tempo a Praça Princesa Isabel (hoje gradeada e transformada em parque), mas depois passou a se movimentar continuamente pela região central, principalmente pelas ruas de Santa Ifigênia.

Para Deborah Fromm, doutora em Antropologia Social pela Unicamp e pesquisadora do Cebrap, a nova formatação dificulta o tratamento de dependentes químicos. “A partir do momento em que a polícia chega, joga bombas e faz eles migrarem para algum lugar, isso gera uma incerteza para as políticas sociais”, diz. “Fica mais difícil de os trabalhadores sociais criarem vínculos para acompanhar determinada pessoa.”

A questão também afeta diretamente moradores e frequentadores do centro, que têm de conviver com mais imprevisibilidade. “Não é bom para ninguém. Tem muita gente passando pelo centro o tempo inteiro, e de repente a pessoa está em uma cena de guerra”, acrescenta Deborah, que acompanha o tema de perto há cerca de 10 anos e fez mestrado sobre a Cracolândia.

Agentes da Polícia Militar chegaram a fazer cordão no último fim de semana para conter fluxo por um tempo Foto: Ítalo Lo Re

Como tem mostrado o Estadão, a sensação de insegurança aumentou na região, com moradores e comerciantes tensos. Como medida de segurança, alguns deles compartilham diariamente a localização do fluxo com colegas no WhatsApp. O objetivo é evitar estar próximo caso uma nova confusão ocorra na Cracolândia. Veja abaixo os principais trechos da entrevista com a pesquisadora:

Como avalia o momento da Cracolândia, com episódios de saques e confusões com motoristas e comerciantes?

Tem novidades, mas há muita repetição do que a ação pública tem produzido. Desde 2005 pelo menos, com a ‘Operação Limpa’ (ofensiva policial com realização de blitzes constantes, na gestão José Serra), há tentativas de dar soluções milagrosas para a Cracolândia, de governadores e prefeitos que prometem solucionar o problema, sobretudo por meio de operações policiais. Hoje, o que se vê é um aperto das forças policiais no sentido de focar exclusivamente na estratégia de dispersão. De fazer operação atrás de operação para tentar não manter a aglomeração. Mas é uma estratégia extremamente complicada e ineficaz, porque a Cracolândia sempre volta.

Operações parecem desconsiderar que as pessoas não têm para onde ir. Geram conflitos e acumulação da tensão social

Deborah Fromm, pesquisadora

As operações parecem desconsiderar que as pessoas não têm para onde ir. Geram conflitos e acumulação da tensão social, porque os frequentadores ficam extremamente estressados e começam a reagir. Quando se tem ação do poder público violenta e estressante, há instabilidade. Quando se dispersa, gera problemas para outras regiões da cidade, para comerciantes, moradores que não estão acostumados a lidar com a situação. Ao mesmo tempo, a população de rua, especialmente da Cracolândia, fica estressada, mais violenta, reage também contra carros, transporte público e tudo mais.

Ao menos desde 2016, há desmonte sistemático da assistência social na cidade e também em torno da situação da Cracolândia. Não é algo de agora. Isso é previsível: a partir do momento em que fecha abrigos, hotéis que acolhiam essa situação e para de dar a assistência necessária, a situação tende a se agravar, combinado também com o aumento da população de rua na cidade como um todo (segundo censo mais recente da Prefeitura, a cidade tem mais de 31 mil pessoas vivendo nas ruas).

Pode dar um exemplo do que chama de “desmonte sistemático da assistência social” na cidade?

O fim do programa De Braços Abertos (estratégia de redução de danos, conduzida na gestão Fernando Haddad, de 2013 a 2016) foi um “turning point” na região. Na época que o programa esteve vigente, a Cracolândia não acabou, mas ficou muito mais, para usar uma palavra um pouco forte, civilizada. Os conflitos na região eram muito menores, o que gerava menos problemas para a vizinhança, para os comerciantes e tudo mais.

Na passagem de uma gestão para outra, houve troca de programa, mas programa não é uma política de Estado. Com a falta de política de longo prazo, que as pessoas possam confiar na ação estatal, essas pessoas perderam um plano de futuro. Em paralelo, houve fechamento de abrigos e de ONGs, com políticas que vêm sendo pautadas na diminuição da assistência social.

A dinâmica de o fluxo sair em determinados horários do dia para equipes da Prefeitura realizarem limpezas é antiga. Mas essa maior itinerância por mais pontos do centro passou a ocorrer com mais frequência a partir de 2022. Isso foi negativo?

Essa itinerância coletiva, de a Cracolândia estar em um quarteirão e depois em outro, tem muito a ver com a ação da polícia. A partir do momento em que a polícia chega, joga bombas e faz eles migrarem para algum lugar. Isso gera uma incerteza para as políticas sociais, porque fica mais difícil de os trabalhadores sociais criarem vínculos para acompanhar determinada pessoa ou família. Fica mais difícil se cada hora está em uma rua diferente. Gera uma circulação que prejudica a própria ação estatal e o acompanhamento dos casos.

A Cracolândia não é território fixo, é móvel, porque é feita da aglomeração das pessoas. É sempre pelo centro, porque há dinâmicas urbanas que levam os fluxos marginais para lá. Não dá para isolar a Cracolândia do restante da cidade, do que o poder público está fazendo nas periferias, do que o crime está fazendo nas periferias. Todos esses regimes de regulação, de conflito, têm a ver com a formação da Cracolândia. É o centro da maior cidade da América Latina. Ações muito localizadas não funcionam se não se olha a complexidade. No debate público, fica parecendo que é tudo culpa do uso do crack, mas há muitas outras dimensões que produzem a Cracolândia.

Quando a dispersão ocorreu no ano passado, a Prefeitura, sob a gestão Ricardo Nunes, justificou que isso facilitaria o tratamento, com os usuários descolados do fluxo. Essa mesma tática deu certo em outros países?

O que o pessoal da assistência social sempre diz, e que faz mais sentido, é que manter todo mundo ali no mesmo lugar faz algum sentido porque é uma permanência. Cria rotina, os trabalhadores sociais conseguem acessar aquela pessoa várias vezes, acompanhar o caso. Se essa pessoa circula e está em territórios diferentes da cidade, é difícil encontrar. O Estado perde o rastro. Isso dificulta a ação estatal na política social. Em termos do que tem dado certo fora, passa pela discussão do “housing first” (conceito de habitação primeiro, em que se prioriza resolver o problema da moradia, que também tem sido adotado pela Prefeitura) e a questão da redução de danos, sobretudo como política massiva.

Usuário caminha por rua em Santa Ifigênia enquanto equipes da Prefeitura de São Paulo realizam limpeza Foto: Andre Penner/AP - 18/05/23

A internação funciona, é importante em diversos casos, mas no Brasil a própria regulação das comunidades terapêuticas, das clínicas, é complicada. São laboratórios de tentar formas de abstinência, formas espirituais etc. Ao mesmo tempo, há pouquíssimo financiamento público para ações que de fato pensem essas questões mais amplas, de como a pessoa consegue lidar com a questão do consumo na realidade dela, que pense a questão do trabalho, da moradia, das desigualdades sociais . É uma simplificação achar que é só sobre o consumo de crack. E o trabalho? E a escolarização? E a profissionalização? E a casa? O que tem dado certo são as formas de tentar lidar com o consumo de drogas de maneira mais complexa.

Tem algum país que seja referência nisso, principalmente algum que tenha uma realidade mais parecida com o Brasil?

Tem o caso da heroína e do crack, que foram fortes nos Estados Unidos. Por lá, houve políticas de redução de danos que foram colocadas em prática e foram bem sucedidas. E há também o caso de Portugal, que começou a pensar em salas de consumo. Agora, há um momento em que o crack está se expandindo para países europeus, como na França, mas o problema não é lidado dessa maneira como é no Brasil. São políticas mais baseadas em direitos humanos, em pensar em dar as condições para a pessoa sair dessa. Essa questão das ações policiais gera muito conflito com as próprias pessoas do fluxo, mas também com os moradores em volta e com os comerciantes. Não é bom para ninguém. Tem muita gente passando pelo centro de São Paulo o tempo inteiro, e de repente a pessoa está em uma cena de guerra.

Em post nas redes sociais, você destacou pontos para se refletir nas políticas públicas para a Cracolândia, entre eles o fato de que a presença do Estado, da forma como ocorre hoje, é fator determinante para o comportamento do fluxo. Como avalia?

Acompanhei a trajetória de algumas pessoas do fluxo durante pesquisas e ficava interessada em saber como elas foram parar lá, qual era a história de vida, o antes, o durante e o depois. E tiveram muitos casos em que vi que a situação anterior era muito pior. Muitas vezes as pessoas vêm de situações de mais opressão, de violência doméstica e de situações familiares complicadas.

Policiais militares acomapanham ação de limpeza em região ocupada pela Cracolândia Foto: Andre Penner/AP - 11/05/23

Por exemplo: um dos usuários que acompanhei morava na periferia de São Paulo e desde criança fez pequenos furtos. Depois, com 12 anos, se envolveu com o tráfico de drogas e chegou a ter status no mundo do crime local. Quando ele começou a usar crack de uma maneira intensa, foi colocado de lado. Não pôde mais vender na “boca” (ponto de venda) e também foi proibido de usar por lá, porque na periferia tem a questão da regulação do uso.

A própria questão de conseguir tomar banho, comida, é mais complicada na periferia, na comparação com os recursos circulam no centro. Ele começou a arrumar muita confusão no bairro dele, até que o pessoal do crime o expulsou. Ele vai para o centro, inclusive para buscar tratamento, porque há concentração da rede assistencial e de tratamento lá.

Chegando na Cracolândia, ele falou que foi o paraíso, porque podia fumar livremente, não precisava se esconder, voltou a trabalhar no tráfico dentro do fluxo e retomou um pouco do status. Ou seja, na periferia ele estava em uma situação pior do que quando se inseriu na Cracolândia. É um pouco paradoxal, porque olhamos para a Cracolândia pensando que todos estão no fundo do poço, mas não necessariamente. Quando você olha para as histórias de vida, faz sentido a ida e a permanência ali. A questão da proteção, por estarem todos juntos, a liberdade para consumo, a facilidade de obter. Isso não é para romantizar a realidade local, mas é de fato para complexificar essa questão. É preciso pensar as políticas públicas em contexto, há uma sociabilidade dentro do fluxo, muitos dizem que a Cracolândia é uma família. Tem regras, ordens, uma hierarquia, valores que são compartilhados. Ignorar tudo isso e propor uma política que venha de fora não vai funcionar.

Pensando a partir da forma como a Cracolândia está configurada hoje, quais políticas públicas poderiam funcionar no curto e médio prazos?

Essa ideia de que a solução para a questão é acabar, de que as pessoas têm de sair dali, de que o espaço público tem que ser liberado, é complicada. Quando se pensa a Cracolândia como um produto das estruturas de desigualdade, do nosso estilo de vida como produto de vida das políticas urbanas colocadas em todo o resto da cidade, mas também do País, há políticas mais efetivas que melhoram a qualidade de vida das pessoas e que as integram com a vizinhança. Isso evita conflitos como os que têm ocorrido, arrastões. As políticas públicas que estão sendo feitas, policiais e repressivas, de ficar incentivando (conflitos), de estressar, de dispersar, radicalizam o conflito.

Políticas públicas que estão sendo feitas, policiais e repressivas, de ficar incentivando (conflitos), de estressar, de dispersar, radicalizam o conflito

Deborah Fromm, pesquisadora

Há políticas com assistência social e com agentes de saúde em que se consegue criar rotina, previsão, projetos de vida, produzir algumas inserções sociais. Sem mudanças estruturais, a Cracolândia não vai sumir. Se não mexer em questões estruturais, em termos de desigualdade econômica, moradia e mercado de trabalho, não tem como sumir. A busca incessante por solução rápida não tem funcionado. Talvez um caminho seja repensar o que consideramos como solução, o que é priorizado nas falsas soluções que são apresentadas pelo poder público e que não têm gerado o fim da Cracolândia.

Cenas de saques a comércios e depredação de carros têm se repetido nos últimos meses na Cracolândia, no centro de São Paulo. Na última semana, integrantes do fluxo, como são chamados os dependentes químicos em cenas de uso, atacaram um ônibus de transporte público e um caminhão de lixo da Prefeitura. Ao menos duas pessoas se feriram.

O caso recente se junta a uma série de outros ocorridos desde que a Cracolândia passou a ser itinerante, no começo do ano passado. O fluxo até chegou a ocupar por um tempo a Praça Princesa Isabel (hoje gradeada e transformada em parque), mas depois passou a se movimentar continuamente pela região central, principalmente pelas ruas de Santa Ifigênia.

Para Deborah Fromm, doutora em Antropologia Social pela Unicamp e pesquisadora do Cebrap, a nova formatação dificulta o tratamento de dependentes químicos. “A partir do momento em que a polícia chega, joga bombas e faz eles migrarem para algum lugar, isso gera uma incerteza para as políticas sociais”, diz. “Fica mais difícil de os trabalhadores sociais criarem vínculos para acompanhar determinada pessoa.”

A questão também afeta diretamente moradores e frequentadores do centro, que têm de conviver com mais imprevisibilidade. “Não é bom para ninguém. Tem muita gente passando pelo centro o tempo inteiro, e de repente a pessoa está em uma cena de guerra”, acrescenta Deborah, que acompanha o tema de perto há cerca de 10 anos e fez mestrado sobre a Cracolândia.

Agentes da Polícia Militar chegaram a fazer cordão no último fim de semana para conter fluxo por um tempo Foto: Ítalo Lo Re

Como tem mostrado o Estadão, a sensação de insegurança aumentou na região, com moradores e comerciantes tensos. Como medida de segurança, alguns deles compartilham diariamente a localização do fluxo com colegas no WhatsApp. O objetivo é evitar estar próximo caso uma nova confusão ocorra na Cracolândia. Veja abaixo os principais trechos da entrevista com a pesquisadora:

Como avalia o momento da Cracolândia, com episódios de saques e confusões com motoristas e comerciantes?

Tem novidades, mas há muita repetição do que a ação pública tem produzido. Desde 2005 pelo menos, com a ‘Operação Limpa’ (ofensiva policial com realização de blitzes constantes, na gestão José Serra), há tentativas de dar soluções milagrosas para a Cracolândia, de governadores e prefeitos que prometem solucionar o problema, sobretudo por meio de operações policiais. Hoje, o que se vê é um aperto das forças policiais no sentido de focar exclusivamente na estratégia de dispersão. De fazer operação atrás de operação para tentar não manter a aglomeração. Mas é uma estratégia extremamente complicada e ineficaz, porque a Cracolândia sempre volta.

Operações parecem desconsiderar que as pessoas não têm para onde ir. Geram conflitos e acumulação da tensão social

Deborah Fromm, pesquisadora

As operações parecem desconsiderar que as pessoas não têm para onde ir. Geram conflitos e acumulação da tensão social, porque os frequentadores ficam extremamente estressados e começam a reagir. Quando se tem ação do poder público violenta e estressante, há instabilidade. Quando se dispersa, gera problemas para outras regiões da cidade, para comerciantes, moradores que não estão acostumados a lidar com a situação. Ao mesmo tempo, a população de rua, especialmente da Cracolândia, fica estressada, mais violenta, reage também contra carros, transporte público e tudo mais.

Ao menos desde 2016, há desmonte sistemático da assistência social na cidade e também em torno da situação da Cracolândia. Não é algo de agora. Isso é previsível: a partir do momento em que fecha abrigos, hotéis que acolhiam essa situação e para de dar a assistência necessária, a situação tende a se agravar, combinado também com o aumento da população de rua na cidade como um todo (segundo censo mais recente da Prefeitura, a cidade tem mais de 31 mil pessoas vivendo nas ruas).

Pode dar um exemplo do que chama de “desmonte sistemático da assistência social” na cidade?

O fim do programa De Braços Abertos (estratégia de redução de danos, conduzida na gestão Fernando Haddad, de 2013 a 2016) foi um “turning point” na região. Na época que o programa esteve vigente, a Cracolândia não acabou, mas ficou muito mais, para usar uma palavra um pouco forte, civilizada. Os conflitos na região eram muito menores, o que gerava menos problemas para a vizinhança, para os comerciantes e tudo mais.

Na passagem de uma gestão para outra, houve troca de programa, mas programa não é uma política de Estado. Com a falta de política de longo prazo, que as pessoas possam confiar na ação estatal, essas pessoas perderam um plano de futuro. Em paralelo, houve fechamento de abrigos e de ONGs, com políticas que vêm sendo pautadas na diminuição da assistência social.

A dinâmica de o fluxo sair em determinados horários do dia para equipes da Prefeitura realizarem limpezas é antiga. Mas essa maior itinerância por mais pontos do centro passou a ocorrer com mais frequência a partir de 2022. Isso foi negativo?

Essa itinerância coletiva, de a Cracolândia estar em um quarteirão e depois em outro, tem muito a ver com a ação da polícia. A partir do momento em que a polícia chega, joga bombas e faz eles migrarem para algum lugar. Isso gera uma incerteza para as políticas sociais, porque fica mais difícil de os trabalhadores sociais criarem vínculos para acompanhar determinada pessoa ou família. Fica mais difícil se cada hora está em uma rua diferente. Gera uma circulação que prejudica a própria ação estatal e o acompanhamento dos casos.

A Cracolândia não é território fixo, é móvel, porque é feita da aglomeração das pessoas. É sempre pelo centro, porque há dinâmicas urbanas que levam os fluxos marginais para lá. Não dá para isolar a Cracolândia do restante da cidade, do que o poder público está fazendo nas periferias, do que o crime está fazendo nas periferias. Todos esses regimes de regulação, de conflito, têm a ver com a formação da Cracolândia. É o centro da maior cidade da América Latina. Ações muito localizadas não funcionam se não se olha a complexidade. No debate público, fica parecendo que é tudo culpa do uso do crack, mas há muitas outras dimensões que produzem a Cracolândia.

Quando a dispersão ocorreu no ano passado, a Prefeitura, sob a gestão Ricardo Nunes, justificou que isso facilitaria o tratamento, com os usuários descolados do fluxo. Essa mesma tática deu certo em outros países?

O que o pessoal da assistência social sempre diz, e que faz mais sentido, é que manter todo mundo ali no mesmo lugar faz algum sentido porque é uma permanência. Cria rotina, os trabalhadores sociais conseguem acessar aquela pessoa várias vezes, acompanhar o caso. Se essa pessoa circula e está em territórios diferentes da cidade, é difícil encontrar. O Estado perde o rastro. Isso dificulta a ação estatal na política social. Em termos do que tem dado certo fora, passa pela discussão do “housing first” (conceito de habitação primeiro, em que se prioriza resolver o problema da moradia, que também tem sido adotado pela Prefeitura) e a questão da redução de danos, sobretudo como política massiva.

Usuário caminha por rua em Santa Ifigênia enquanto equipes da Prefeitura de São Paulo realizam limpeza Foto: Andre Penner/AP - 18/05/23

A internação funciona, é importante em diversos casos, mas no Brasil a própria regulação das comunidades terapêuticas, das clínicas, é complicada. São laboratórios de tentar formas de abstinência, formas espirituais etc. Ao mesmo tempo, há pouquíssimo financiamento público para ações que de fato pensem essas questões mais amplas, de como a pessoa consegue lidar com a questão do consumo na realidade dela, que pense a questão do trabalho, da moradia, das desigualdades sociais . É uma simplificação achar que é só sobre o consumo de crack. E o trabalho? E a escolarização? E a profissionalização? E a casa? O que tem dado certo são as formas de tentar lidar com o consumo de drogas de maneira mais complexa.

Tem algum país que seja referência nisso, principalmente algum que tenha uma realidade mais parecida com o Brasil?

Tem o caso da heroína e do crack, que foram fortes nos Estados Unidos. Por lá, houve políticas de redução de danos que foram colocadas em prática e foram bem sucedidas. E há também o caso de Portugal, que começou a pensar em salas de consumo. Agora, há um momento em que o crack está se expandindo para países europeus, como na França, mas o problema não é lidado dessa maneira como é no Brasil. São políticas mais baseadas em direitos humanos, em pensar em dar as condições para a pessoa sair dessa. Essa questão das ações policiais gera muito conflito com as próprias pessoas do fluxo, mas também com os moradores em volta e com os comerciantes. Não é bom para ninguém. Tem muita gente passando pelo centro de São Paulo o tempo inteiro, e de repente a pessoa está em uma cena de guerra.

Em post nas redes sociais, você destacou pontos para se refletir nas políticas públicas para a Cracolândia, entre eles o fato de que a presença do Estado, da forma como ocorre hoje, é fator determinante para o comportamento do fluxo. Como avalia?

Acompanhei a trajetória de algumas pessoas do fluxo durante pesquisas e ficava interessada em saber como elas foram parar lá, qual era a história de vida, o antes, o durante e o depois. E tiveram muitos casos em que vi que a situação anterior era muito pior. Muitas vezes as pessoas vêm de situações de mais opressão, de violência doméstica e de situações familiares complicadas.

Policiais militares acomapanham ação de limpeza em região ocupada pela Cracolândia Foto: Andre Penner/AP - 11/05/23

Por exemplo: um dos usuários que acompanhei morava na periferia de São Paulo e desde criança fez pequenos furtos. Depois, com 12 anos, se envolveu com o tráfico de drogas e chegou a ter status no mundo do crime local. Quando ele começou a usar crack de uma maneira intensa, foi colocado de lado. Não pôde mais vender na “boca” (ponto de venda) e também foi proibido de usar por lá, porque na periferia tem a questão da regulação do uso.

A própria questão de conseguir tomar banho, comida, é mais complicada na periferia, na comparação com os recursos circulam no centro. Ele começou a arrumar muita confusão no bairro dele, até que o pessoal do crime o expulsou. Ele vai para o centro, inclusive para buscar tratamento, porque há concentração da rede assistencial e de tratamento lá.

Chegando na Cracolândia, ele falou que foi o paraíso, porque podia fumar livremente, não precisava se esconder, voltou a trabalhar no tráfico dentro do fluxo e retomou um pouco do status. Ou seja, na periferia ele estava em uma situação pior do que quando se inseriu na Cracolândia. É um pouco paradoxal, porque olhamos para a Cracolândia pensando que todos estão no fundo do poço, mas não necessariamente. Quando você olha para as histórias de vida, faz sentido a ida e a permanência ali. A questão da proteção, por estarem todos juntos, a liberdade para consumo, a facilidade de obter. Isso não é para romantizar a realidade local, mas é de fato para complexificar essa questão. É preciso pensar as políticas públicas em contexto, há uma sociabilidade dentro do fluxo, muitos dizem que a Cracolândia é uma família. Tem regras, ordens, uma hierarquia, valores que são compartilhados. Ignorar tudo isso e propor uma política que venha de fora não vai funcionar.

Pensando a partir da forma como a Cracolândia está configurada hoje, quais políticas públicas poderiam funcionar no curto e médio prazos?

Essa ideia de que a solução para a questão é acabar, de que as pessoas têm de sair dali, de que o espaço público tem que ser liberado, é complicada. Quando se pensa a Cracolândia como um produto das estruturas de desigualdade, do nosso estilo de vida como produto de vida das políticas urbanas colocadas em todo o resto da cidade, mas também do País, há políticas mais efetivas que melhoram a qualidade de vida das pessoas e que as integram com a vizinhança. Isso evita conflitos como os que têm ocorrido, arrastões. As políticas públicas que estão sendo feitas, policiais e repressivas, de ficar incentivando (conflitos), de estressar, de dispersar, radicalizam o conflito.

Políticas públicas que estão sendo feitas, policiais e repressivas, de ficar incentivando (conflitos), de estressar, de dispersar, radicalizam o conflito

Deborah Fromm, pesquisadora

Há políticas com assistência social e com agentes de saúde em que se consegue criar rotina, previsão, projetos de vida, produzir algumas inserções sociais. Sem mudanças estruturais, a Cracolândia não vai sumir. Se não mexer em questões estruturais, em termos de desigualdade econômica, moradia e mercado de trabalho, não tem como sumir. A busca incessante por solução rápida não tem funcionado. Talvez um caminho seja repensar o que consideramos como solução, o que é priorizado nas falsas soluções que são apresentadas pelo poder público e que não têm gerado o fim da Cracolândia.

Cenas de saques a comércios e depredação de carros têm se repetido nos últimos meses na Cracolândia, no centro de São Paulo. Na última semana, integrantes do fluxo, como são chamados os dependentes químicos em cenas de uso, atacaram um ônibus de transporte público e um caminhão de lixo da Prefeitura. Ao menos duas pessoas se feriram.

O caso recente se junta a uma série de outros ocorridos desde que a Cracolândia passou a ser itinerante, no começo do ano passado. O fluxo até chegou a ocupar por um tempo a Praça Princesa Isabel (hoje gradeada e transformada em parque), mas depois passou a se movimentar continuamente pela região central, principalmente pelas ruas de Santa Ifigênia.

Para Deborah Fromm, doutora em Antropologia Social pela Unicamp e pesquisadora do Cebrap, a nova formatação dificulta o tratamento de dependentes químicos. “A partir do momento em que a polícia chega, joga bombas e faz eles migrarem para algum lugar, isso gera uma incerteza para as políticas sociais”, diz. “Fica mais difícil de os trabalhadores sociais criarem vínculos para acompanhar determinada pessoa.”

A questão também afeta diretamente moradores e frequentadores do centro, que têm de conviver com mais imprevisibilidade. “Não é bom para ninguém. Tem muita gente passando pelo centro o tempo inteiro, e de repente a pessoa está em uma cena de guerra”, acrescenta Deborah, que acompanha o tema de perto há cerca de 10 anos e fez mestrado sobre a Cracolândia.

Agentes da Polícia Militar chegaram a fazer cordão no último fim de semana para conter fluxo por um tempo Foto: Ítalo Lo Re

Como tem mostrado o Estadão, a sensação de insegurança aumentou na região, com moradores e comerciantes tensos. Como medida de segurança, alguns deles compartilham diariamente a localização do fluxo com colegas no WhatsApp. O objetivo é evitar estar próximo caso uma nova confusão ocorra na Cracolândia. Veja abaixo os principais trechos da entrevista com a pesquisadora:

Como avalia o momento da Cracolândia, com episódios de saques e confusões com motoristas e comerciantes?

Tem novidades, mas há muita repetição do que a ação pública tem produzido. Desde 2005 pelo menos, com a ‘Operação Limpa’ (ofensiva policial com realização de blitzes constantes, na gestão José Serra), há tentativas de dar soluções milagrosas para a Cracolândia, de governadores e prefeitos que prometem solucionar o problema, sobretudo por meio de operações policiais. Hoje, o que se vê é um aperto das forças policiais no sentido de focar exclusivamente na estratégia de dispersão. De fazer operação atrás de operação para tentar não manter a aglomeração. Mas é uma estratégia extremamente complicada e ineficaz, porque a Cracolândia sempre volta.

Operações parecem desconsiderar que as pessoas não têm para onde ir. Geram conflitos e acumulação da tensão social

Deborah Fromm, pesquisadora

As operações parecem desconsiderar que as pessoas não têm para onde ir. Geram conflitos e acumulação da tensão social, porque os frequentadores ficam extremamente estressados e começam a reagir. Quando se tem ação do poder público violenta e estressante, há instabilidade. Quando se dispersa, gera problemas para outras regiões da cidade, para comerciantes, moradores que não estão acostumados a lidar com a situação. Ao mesmo tempo, a população de rua, especialmente da Cracolândia, fica estressada, mais violenta, reage também contra carros, transporte público e tudo mais.

Ao menos desde 2016, há desmonte sistemático da assistência social na cidade e também em torno da situação da Cracolândia. Não é algo de agora. Isso é previsível: a partir do momento em que fecha abrigos, hotéis que acolhiam essa situação e para de dar a assistência necessária, a situação tende a se agravar, combinado também com o aumento da população de rua na cidade como um todo (segundo censo mais recente da Prefeitura, a cidade tem mais de 31 mil pessoas vivendo nas ruas).

Pode dar um exemplo do que chama de “desmonte sistemático da assistência social” na cidade?

O fim do programa De Braços Abertos (estratégia de redução de danos, conduzida na gestão Fernando Haddad, de 2013 a 2016) foi um “turning point” na região. Na época que o programa esteve vigente, a Cracolândia não acabou, mas ficou muito mais, para usar uma palavra um pouco forte, civilizada. Os conflitos na região eram muito menores, o que gerava menos problemas para a vizinhança, para os comerciantes e tudo mais.

Na passagem de uma gestão para outra, houve troca de programa, mas programa não é uma política de Estado. Com a falta de política de longo prazo, que as pessoas possam confiar na ação estatal, essas pessoas perderam um plano de futuro. Em paralelo, houve fechamento de abrigos e de ONGs, com políticas que vêm sendo pautadas na diminuição da assistência social.

A dinâmica de o fluxo sair em determinados horários do dia para equipes da Prefeitura realizarem limpezas é antiga. Mas essa maior itinerância por mais pontos do centro passou a ocorrer com mais frequência a partir de 2022. Isso foi negativo?

Essa itinerância coletiva, de a Cracolândia estar em um quarteirão e depois em outro, tem muito a ver com a ação da polícia. A partir do momento em que a polícia chega, joga bombas e faz eles migrarem para algum lugar. Isso gera uma incerteza para as políticas sociais, porque fica mais difícil de os trabalhadores sociais criarem vínculos para acompanhar determinada pessoa ou família. Fica mais difícil se cada hora está em uma rua diferente. Gera uma circulação que prejudica a própria ação estatal e o acompanhamento dos casos.

A Cracolândia não é território fixo, é móvel, porque é feita da aglomeração das pessoas. É sempre pelo centro, porque há dinâmicas urbanas que levam os fluxos marginais para lá. Não dá para isolar a Cracolândia do restante da cidade, do que o poder público está fazendo nas periferias, do que o crime está fazendo nas periferias. Todos esses regimes de regulação, de conflito, têm a ver com a formação da Cracolândia. É o centro da maior cidade da América Latina. Ações muito localizadas não funcionam se não se olha a complexidade. No debate público, fica parecendo que é tudo culpa do uso do crack, mas há muitas outras dimensões que produzem a Cracolândia.

Quando a dispersão ocorreu no ano passado, a Prefeitura, sob a gestão Ricardo Nunes, justificou que isso facilitaria o tratamento, com os usuários descolados do fluxo. Essa mesma tática deu certo em outros países?

O que o pessoal da assistência social sempre diz, e que faz mais sentido, é que manter todo mundo ali no mesmo lugar faz algum sentido porque é uma permanência. Cria rotina, os trabalhadores sociais conseguem acessar aquela pessoa várias vezes, acompanhar o caso. Se essa pessoa circula e está em territórios diferentes da cidade, é difícil encontrar. O Estado perde o rastro. Isso dificulta a ação estatal na política social. Em termos do que tem dado certo fora, passa pela discussão do “housing first” (conceito de habitação primeiro, em que se prioriza resolver o problema da moradia, que também tem sido adotado pela Prefeitura) e a questão da redução de danos, sobretudo como política massiva.

Usuário caminha por rua em Santa Ifigênia enquanto equipes da Prefeitura de São Paulo realizam limpeza Foto: Andre Penner/AP - 18/05/23

A internação funciona, é importante em diversos casos, mas no Brasil a própria regulação das comunidades terapêuticas, das clínicas, é complicada. São laboratórios de tentar formas de abstinência, formas espirituais etc. Ao mesmo tempo, há pouquíssimo financiamento público para ações que de fato pensem essas questões mais amplas, de como a pessoa consegue lidar com a questão do consumo na realidade dela, que pense a questão do trabalho, da moradia, das desigualdades sociais . É uma simplificação achar que é só sobre o consumo de crack. E o trabalho? E a escolarização? E a profissionalização? E a casa? O que tem dado certo são as formas de tentar lidar com o consumo de drogas de maneira mais complexa.

Tem algum país que seja referência nisso, principalmente algum que tenha uma realidade mais parecida com o Brasil?

Tem o caso da heroína e do crack, que foram fortes nos Estados Unidos. Por lá, houve políticas de redução de danos que foram colocadas em prática e foram bem sucedidas. E há também o caso de Portugal, que começou a pensar em salas de consumo. Agora, há um momento em que o crack está se expandindo para países europeus, como na França, mas o problema não é lidado dessa maneira como é no Brasil. São políticas mais baseadas em direitos humanos, em pensar em dar as condições para a pessoa sair dessa. Essa questão das ações policiais gera muito conflito com as próprias pessoas do fluxo, mas também com os moradores em volta e com os comerciantes. Não é bom para ninguém. Tem muita gente passando pelo centro de São Paulo o tempo inteiro, e de repente a pessoa está em uma cena de guerra.

Em post nas redes sociais, você destacou pontos para se refletir nas políticas públicas para a Cracolândia, entre eles o fato de que a presença do Estado, da forma como ocorre hoje, é fator determinante para o comportamento do fluxo. Como avalia?

Acompanhei a trajetória de algumas pessoas do fluxo durante pesquisas e ficava interessada em saber como elas foram parar lá, qual era a história de vida, o antes, o durante e o depois. E tiveram muitos casos em que vi que a situação anterior era muito pior. Muitas vezes as pessoas vêm de situações de mais opressão, de violência doméstica e de situações familiares complicadas.

Policiais militares acomapanham ação de limpeza em região ocupada pela Cracolândia Foto: Andre Penner/AP - 11/05/23

Por exemplo: um dos usuários que acompanhei morava na periferia de São Paulo e desde criança fez pequenos furtos. Depois, com 12 anos, se envolveu com o tráfico de drogas e chegou a ter status no mundo do crime local. Quando ele começou a usar crack de uma maneira intensa, foi colocado de lado. Não pôde mais vender na “boca” (ponto de venda) e também foi proibido de usar por lá, porque na periferia tem a questão da regulação do uso.

A própria questão de conseguir tomar banho, comida, é mais complicada na periferia, na comparação com os recursos circulam no centro. Ele começou a arrumar muita confusão no bairro dele, até que o pessoal do crime o expulsou. Ele vai para o centro, inclusive para buscar tratamento, porque há concentração da rede assistencial e de tratamento lá.

Chegando na Cracolândia, ele falou que foi o paraíso, porque podia fumar livremente, não precisava se esconder, voltou a trabalhar no tráfico dentro do fluxo e retomou um pouco do status. Ou seja, na periferia ele estava em uma situação pior do que quando se inseriu na Cracolândia. É um pouco paradoxal, porque olhamos para a Cracolândia pensando que todos estão no fundo do poço, mas não necessariamente. Quando você olha para as histórias de vida, faz sentido a ida e a permanência ali. A questão da proteção, por estarem todos juntos, a liberdade para consumo, a facilidade de obter. Isso não é para romantizar a realidade local, mas é de fato para complexificar essa questão. É preciso pensar as políticas públicas em contexto, há uma sociabilidade dentro do fluxo, muitos dizem que a Cracolândia é uma família. Tem regras, ordens, uma hierarquia, valores que são compartilhados. Ignorar tudo isso e propor uma política que venha de fora não vai funcionar.

Pensando a partir da forma como a Cracolândia está configurada hoje, quais políticas públicas poderiam funcionar no curto e médio prazos?

Essa ideia de que a solução para a questão é acabar, de que as pessoas têm de sair dali, de que o espaço público tem que ser liberado, é complicada. Quando se pensa a Cracolândia como um produto das estruturas de desigualdade, do nosso estilo de vida como produto de vida das políticas urbanas colocadas em todo o resto da cidade, mas também do País, há políticas mais efetivas que melhoram a qualidade de vida das pessoas e que as integram com a vizinhança. Isso evita conflitos como os que têm ocorrido, arrastões. As políticas públicas que estão sendo feitas, policiais e repressivas, de ficar incentivando (conflitos), de estressar, de dispersar, radicalizam o conflito.

Políticas públicas que estão sendo feitas, policiais e repressivas, de ficar incentivando (conflitos), de estressar, de dispersar, radicalizam o conflito

Deborah Fromm, pesquisadora

Há políticas com assistência social e com agentes de saúde em que se consegue criar rotina, previsão, projetos de vida, produzir algumas inserções sociais. Sem mudanças estruturais, a Cracolândia não vai sumir. Se não mexer em questões estruturais, em termos de desigualdade econômica, moradia e mercado de trabalho, não tem como sumir. A busca incessante por solução rápida não tem funcionado. Talvez um caminho seja repensar o que consideramos como solução, o que é priorizado nas falsas soluções que são apresentadas pelo poder público e que não têm gerado o fim da Cracolândia.

Cenas de saques a comércios e depredação de carros têm se repetido nos últimos meses na Cracolândia, no centro de São Paulo. Na última semana, integrantes do fluxo, como são chamados os dependentes químicos em cenas de uso, atacaram um ônibus de transporte público e um caminhão de lixo da Prefeitura. Ao menos duas pessoas se feriram.

O caso recente se junta a uma série de outros ocorridos desde que a Cracolândia passou a ser itinerante, no começo do ano passado. O fluxo até chegou a ocupar por um tempo a Praça Princesa Isabel (hoje gradeada e transformada em parque), mas depois passou a se movimentar continuamente pela região central, principalmente pelas ruas de Santa Ifigênia.

Para Deborah Fromm, doutora em Antropologia Social pela Unicamp e pesquisadora do Cebrap, a nova formatação dificulta o tratamento de dependentes químicos. “A partir do momento em que a polícia chega, joga bombas e faz eles migrarem para algum lugar, isso gera uma incerteza para as políticas sociais”, diz. “Fica mais difícil de os trabalhadores sociais criarem vínculos para acompanhar determinada pessoa.”

A questão também afeta diretamente moradores e frequentadores do centro, que têm de conviver com mais imprevisibilidade. “Não é bom para ninguém. Tem muita gente passando pelo centro o tempo inteiro, e de repente a pessoa está em uma cena de guerra”, acrescenta Deborah, que acompanha o tema de perto há cerca de 10 anos e fez mestrado sobre a Cracolândia.

Agentes da Polícia Militar chegaram a fazer cordão no último fim de semana para conter fluxo por um tempo Foto: Ítalo Lo Re

Como tem mostrado o Estadão, a sensação de insegurança aumentou na região, com moradores e comerciantes tensos. Como medida de segurança, alguns deles compartilham diariamente a localização do fluxo com colegas no WhatsApp. O objetivo é evitar estar próximo caso uma nova confusão ocorra na Cracolândia. Veja abaixo os principais trechos da entrevista com a pesquisadora:

Como avalia o momento da Cracolândia, com episódios de saques e confusões com motoristas e comerciantes?

Tem novidades, mas há muita repetição do que a ação pública tem produzido. Desde 2005 pelo menos, com a ‘Operação Limpa’ (ofensiva policial com realização de blitzes constantes, na gestão José Serra), há tentativas de dar soluções milagrosas para a Cracolândia, de governadores e prefeitos que prometem solucionar o problema, sobretudo por meio de operações policiais. Hoje, o que se vê é um aperto das forças policiais no sentido de focar exclusivamente na estratégia de dispersão. De fazer operação atrás de operação para tentar não manter a aglomeração. Mas é uma estratégia extremamente complicada e ineficaz, porque a Cracolândia sempre volta.

Operações parecem desconsiderar que as pessoas não têm para onde ir. Geram conflitos e acumulação da tensão social

Deborah Fromm, pesquisadora

As operações parecem desconsiderar que as pessoas não têm para onde ir. Geram conflitos e acumulação da tensão social, porque os frequentadores ficam extremamente estressados e começam a reagir. Quando se tem ação do poder público violenta e estressante, há instabilidade. Quando se dispersa, gera problemas para outras regiões da cidade, para comerciantes, moradores que não estão acostumados a lidar com a situação. Ao mesmo tempo, a população de rua, especialmente da Cracolândia, fica estressada, mais violenta, reage também contra carros, transporte público e tudo mais.

Ao menos desde 2016, há desmonte sistemático da assistência social na cidade e também em torno da situação da Cracolândia. Não é algo de agora. Isso é previsível: a partir do momento em que fecha abrigos, hotéis que acolhiam essa situação e para de dar a assistência necessária, a situação tende a se agravar, combinado também com o aumento da população de rua na cidade como um todo (segundo censo mais recente da Prefeitura, a cidade tem mais de 31 mil pessoas vivendo nas ruas).

Pode dar um exemplo do que chama de “desmonte sistemático da assistência social” na cidade?

O fim do programa De Braços Abertos (estratégia de redução de danos, conduzida na gestão Fernando Haddad, de 2013 a 2016) foi um “turning point” na região. Na época que o programa esteve vigente, a Cracolândia não acabou, mas ficou muito mais, para usar uma palavra um pouco forte, civilizada. Os conflitos na região eram muito menores, o que gerava menos problemas para a vizinhança, para os comerciantes e tudo mais.

Na passagem de uma gestão para outra, houve troca de programa, mas programa não é uma política de Estado. Com a falta de política de longo prazo, que as pessoas possam confiar na ação estatal, essas pessoas perderam um plano de futuro. Em paralelo, houve fechamento de abrigos e de ONGs, com políticas que vêm sendo pautadas na diminuição da assistência social.

A dinâmica de o fluxo sair em determinados horários do dia para equipes da Prefeitura realizarem limpezas é antiga. Mas essa maior itinerância por mais pontos do centro passou a ocorrer com mais frequência a partir de 2022. Isso foi negativo?

Essa itinerância coletiva, de a Cracolândia estar em um quarteirão e depois em outro, tem muito a ver com a ação da polícia. A partir do momento em que a polícia chega, joga bombas e faz eles migrarem para algum lugar. Isso gera uma incerteza para as políticas sociais, porque fica mais difícil de os trabalhadores sociais criarem vínculos para acompanhar determinada pessoa ou família. Fica mais difícil se cada hora está em uma rua diferente. Gera uma circulação que prejudica a própria ação estatal e o acompanhamento dos casos.

A Cracolândia não é território fixo, é móvel, porque é feita da aglomeração das pessoas. É sempre pelo centro, porque há dinâmicas urbanas que levam os fluxos marginais para lá. Não dá para isolar a Cracolândia do restante da cidade, do que o poder público está fazendo nas periferias, do que o crime está fazendo nas periferias. Todos esses regimes de regulação, de conflito, têm a ver com a formação da Cracolândia. É o centro da maior cidade da América Latina. Ações muito localizadas não funcionam se não se olha a complexidade. No debate público, fica parecendo que é tudo culpa do uso do crack, mas há muitas outras dimensões que produzem a Cracolândia.

Quando a dispersão ocorreu no ano passado, a Prefeitura, sob a gestão Ricardo Nunes, justificou que isso facilitaria o tratamento, com os usuários descolados do fluxo. Essa mesma tática deu certo em outros países?

O que o pessoal da assistência social sempre diz, e que faz mais sentido, é que manter todo mundo ali no mesmo lugar faz algum sentido porque é uma permanência. Cria rotina, os trabalhadores sociais conseguem acessar aquela pessoa várias vezes, acompanhar o caso. Se essa pessoa circula e está em territórios diferentes da cidade, é difícil encontrar. O Estado perde o rastro. Isso dificulta a ação estatal na política social. Em termos do que tem dado certo fora, passa pela discussão do “housing first” (conceito de habitação primeiro, em que se prioriza resolver o problema da moradia, que também tem sido adotado pela Prefeitura) e a questão da redução de danos, sobretudo como política massiva.

Usuário caminha por rua em Santa Ifigênia enquanto equipes da Prefeitura de São Paulo realizam limpeza Foto: Andre Penner/AP - 18/05/23

A internação funciona, é importante em diversos casos, mas no Brasil a própria regulação das comunidades terapêuticas, das clínicas, é complicada. São laboratórios de tentar formas de abstinência, formas espirituais etc. Ao mesmo tempo, há pouquíssimo financiamento público para ações que de fato pensem essas questões mais amplas, de como a pessoa consegue lidar com a questão do consumo na realidade dela, que pense a questão do trabalho, da moradia, das desigualdades sociais . É uma simplificação achar que é só sobre o consumo de crack. E o trabalho? E a escolarização? E a profissionalização? E a casa? O que tem dado certo são as formas de tentar lidar com o consumo de drogas de maneira mais complexa.

Tem algum país que seja referência nisso, principalmente algum que tenha uma realidade mais parecida com o Brasil?

Tem o caso da heroína e do crack, que foram fortes nos Estados Unidos. Por lá, houve políticas de redução de danos que foram colocadas em prática e foram bem sucedidas. E há também o caso de Portugal, que começou a pensar em salas de consumo. Agora, há um momento em que o crack está se expandindo para países europeus, como na França, mas o problema não é lidado dessa maneira como é no Brasil. São políticas mais baseadas em direitos humanos, em pensar em dar as condições para a pessoa sair dessa. Essa questão das ações policiais gera muito conflito com as próprias pessoas do fluxo, mas também com os moradores em volta e com os comerciantes. Não é bom para ninguém. Tem muita gente passando pelo centro de São Paulo o tempo inteiro, e de repente a pessoa está em uma cena de guerra.

Em post nas redes sociais, você destacou pontos para se refletir nas políticas públicas para a Cracolândia, entre eles o fato de que a presença do Estado, da forma como ocorre hoje, é fator determinante para o comportamento do fluxo. Como avalia?

Acompanhei a trajetória de algumas pessoas do fluxo durante pesquisas e ficava interessada em saber como elas foram parar lá, qual era a história de vida, o antes, o durante e o depois. E tiveram muitos casos em que vi que a situação anterior era muito pior. Muitas vezes as pessoas vêm de situações de mais opressão, de violência doméstica e de situações familiares complicadas.

Policiais militares acomapanham ação de limpeza em região ocupada pela Cracolândia Foto: Andre Penner/AP - 11/05/23

Por exemplo: um dos usuários que acompanhei morava na periferia de São Paulo e desde criança fez pequenos furtos. Depois, com 12 anos, se envolveu com o tráfico de drogas e chegou a ter status no mundo do crime local. Quando ele começou a usar crack de uma maneira intensa, foi colocado de lado. Não pôde mais vender na “boca” (ponto de venda) e também foi proibido de usar por lá, porque na periferia tem a questão da regulação do uso.

A própria questão de conseguir tomar banho, comida, é mais complicada na periferia, na comparação com os recursos circulam no centro. Ele começou a arrumar muita confusão no bairro dele, até que o pessoal do crime o expulsou. Ele vai para o centro, inclusive para buscar tratamento, porque há concentração da rede assistencial e de tratamento lá.

Chegando na Cracolândia, ele falou que foi o paraíso, porque podia fumar livremente, não precisava se esconder, voltou a trabalhar no tráfico dentro do fluxo e retomou um pouco do status. Ou seja, na periferia ele estava em uma situação pior do que quando se inseriu na Cracolândia. É um pouco paradoxal, porque olhamos para a Cracolândia pensando que todos estão no fundo do poço, mas não necessariamente. Quando você olha para as histórias de vida, faz sentido a ida e a permanência ali. A questão da proteção, por estarem todos juntos, a liberdade para consumo, a facilidade de obter. Isso não é para romantizar a realidade local, mas é de fato para complexificar essa questão. É preciso pensar as políticas públicas em contexto, há uma sociabilidade dentro do fluxo, muitos dizem que a Cracolândia é uma família. Tem regras, ordens, uma hierarquia, valores que são compartilhados. Ignorar tudo isso e propor uma política que venha de fora não vai funcionar.

Pensando a partir da forma como a Cracolândia está configurada hoje, quais políticas públicas poderiam funcionar no curto e médio prazos?

Essa ideia de que a solução para a questão é acabar, de que as pessoas têm de sair dali, de que o espaço público tem que ser liberado, é complicada. Quando se pensa a Cracolândia como um produto das estruturas de desigualdade, do nosso estilo de vida como produto de vida das políticas urbanas colocadas em todo o resto da cidade, mas também do País, há políticas mais efetivas que melhoram a qualidade de vida das pessoas e que as integram com a vizinhança. Isso evita conflitos como os que têm ocorrido, arrastões. As políticas públicas que estão sendo feitas, policiais e repressivas, de ficar incentivando (conflitos), de estressar, de dispersar, radicalizam o conflito.

Políticas públicas que estão sendo feitas, policiais e repressivas, de ficar incentivando (conflitos), de estressar, de dispersar, radicalizam o conflito

Deborah Fromm, pesquisadora

Há políticas com assistência social e com agentes de saúde em que se consegue criar rotina, previsão, projetos de vida, produzir algumas inserções sociais. Sem mudanças estruturais, a Cracolândia não vai sumir. Se não mexer em questões estruturais, em termos de desigualdade econômica, moradia e mercado de trabalho, não tem como sumir. A busca incessante por solução rápida não tem funcionado. Talvez um caminho seja repensar o que consideramos como solução, o que é priorizado nas falsas soluções que são apresentadas pelo poder público e que não têm gerado o fim da Cracolândia.

Entrevista por Ítalo Lo Re

Repórter da editoria de Metrópole em São Paulo, escreve sobre segurança pública e cidades. É jornalista formado pela UFMG.

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