Em três anos, a implementação de um parque no Jockey Club de São Paulo passou de uma proposta descartada pela Prefeitura para um dos novos espaços de lazer com implantação preferencial pelo Município. A intenção de transformação em parque foi reiterada pela gestão Ricardo Nunes (MDB) na quinta-feira, 27, um dia após os vereadores aprovarem a proibição de corridas de animais sujeitas a apostas.
Sancionada pelo prefeito, a lei entrou em vigor após a publicação no Diário Oficial desta segunda-feira, 1º. Há um prazo de 180 dias para o encerramento de atividades do tipo, o que pode impactar diretamente na permanência do Hipódromo de Cidade Jardim, localizado em área nobre da zona sul desde 1941.
A situação chama a atenção em meio à controversa mudança no zoneamento do entorno do Jockey, que passou a permitir prédios em áreas antes restritivas a casas, como revelou o Estadão.
A diretoria do Jockey lamentou a decisão. Em nota, alega que a votação teria sido baseada em um “total desconhecimento sobre o esporte”, que sinalizaria um “claro interesse em tentar desconstruir a história” e, ainda, abriria espaço para o que chama de uma “absurda tentativa desapropriar o terreno”, “para possível especulação imobiliária”. Também disse que tomará as “medidas legais cabíveis para garantir seus direitos e das milhares de famílias que dependem das atividades turfísticas”.
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Na semana passada, a gestão Nunes comunicou o entendimento de que o espaço passaria ao Município com o fim das atividades, pois a posse do hipódromo estaria atrelada à permanência do turfe, “conforme cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade previstas no registro do imóvel”, segundo apontou em comunicado.
A área foi incluída no quadro de parques com implantação preferencial da nova lei do Plano Diretor, que entrou em vigor no ano passado. Nessa lei, está com o nome de João Carlos Di Genio, empresário fundador do grupo educacional Unip/Objetivo, que morreu em 2022.
A intenção municipal de transformação em parque é distinta do entendimento que tinha ao menos até 2021. À época, dizia ser “inviável”, “por restrições funcionais, de tombamento, altos custos de implantação e manutenção de um parque em área alagadiça”.
O entendimento anterior da Prefeitura está ligado ao Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Jockey Club, sugerido por representantes do hipódromo em meados de 2017. A partir da manifestação de interesse privado, a gestão municipal desenvolveu estudos e avaliações de diferentes secretarias.
Procurada pelo Estadão, a Prefeitura não informou detalhes sobre a transição das atividades do Jockey ou de implantação do parque, mas respondeu que “tão logo a área seja oficialmente da Prefeitura, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA) dará início aos estudos para implantação”.
Em agenda pública sobre outro tema nesta segunda-feira, 1º, Nunes destacou a dívida que o clube tem com o Município. Também defendeu a autonomia dos vereadores para propor novas leis.
“Não é uma decisão monocrática, é uma decisão coletiva, que foi votada e aprovada. E, portanto, está dentro do processo normal, natural, da democracia”, disse. Também comparou a nova lei à proibição de outros tipos de eventos com animais, como rodeios. “Como a gente, por exemplo, tem a proibição de rodeio. Tem cidade que não tem (proibição), aqui tem”, completou.
Um dos aspectos mais citados por aqueles que defendem a transformação em parque municipal é a dívida de IPTU do Jockey Club com a cidade.
- Segundo a plataforma de Dívida Ativa da Prefeitura, o montante é de ao menos R$ 532,6 milhões, acumulados há mais de uma década.
- O comunicado da sanção da gestão Nunes aponta um valor ainda maior, de R$ 856 milhões. Já o Jockey contesta a cobrança desse imposto e o cálculo feito pelo Município.
Por que a Prefeitura era contra um parque no Jockey até poucos anos atrás? Veja motivos
O PIU Jockey Club está congelado e sem previsão de retomada. Em 2020, foi apresentada uma proposta preliminar, na qual já se descartava a implantação de um parque no interior da pista. Após esse momento, um dos últimos registros de discussão do tema é de uma reunião de maio de 2021, já durante a atual gestão de Bruno Covas (PSDB) e Nunes.
Na reunião, com associações de bairro, representantes da São Paulo Urbanismo (SPUrbanismo, empresa municipal responsável pelo projeto) destacaram a “inviabilidade” de transformação da área em parque. Como justificativa, citaram as “limitações de arborização e implantação de equipamentos” e a existência do Parque Alfredo Volpi nas proximidades, a cerca de um quilômetro.
A resposta ocorreu em meio às dúvidas dos moradores sobre a criação do parque, que era um dos pontos centrais do PIU inicialmente. Em 2017, a proposta do Jockey envolvia um parque em um desnível no centro da pista, para que não prejudicasse as corridas, com a entrada por uma passagem subterrânea. Essa ideia foi descartada ao longo da tramitação do PIU, contudo.
Os motivos foram apresentados diversas vezes, como em uma reunião com integrantes de conselhos municipais em 2020. “A tese de implantação de parque público foi considerada inviável por restrições funcionais, de tombamento, altos custos de implantação e manutenção de um parque em área alagadiça”, destacaram representantes da SPUrbanismo à época.
Na mesma reunião, destacou-se que a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente “reconhece o interesse público na preservação da área verde privada do hipódromo, mas não em transformá-lo em equipamento municipal, considerando os parques já existentes na região e a própria qualidade ambiental do bairro Cidade Jardim”.
Além disso, na proposta municipal inicial para o PIU, é destacado o entendimento da então Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbanismo (atual de Urbanismo e Licenciamento) de que “a implantação e gestão de um parque público no local seria inviável, considerando as condições geológicas da área e as restrições das resoluções de tombamento, que restringem o plantio de vegetação arbórea e a construção de edificações no Pião do Prado (setor onde o Jockey propôs o parque, na parte interna da pista)”.
Segundo a análise ambiental feita por técnicos da Prefeitura, uma parte do terreno do Jockey é de solo compressível (”solo mole”) e outros típicos de várzeas, assim como abrange também uma área de escoamento difuso de dois córregos. Trata-se, portanto, de um local mais propenso a inundações periódicas, como igualmente mostra a nova carta geotécnica da cidade (cujo mapa interativo pode ser conferido aqui).
O que diz a nova lei que pode impactar na permanência do Jockey? E se não for cumprida?
A nova lei declara a proibição de “atividades desportivas que utilizem animais, como corridas, disputas ou qualquer outra prova, com a respectiva emissão de pouleis (bilhetes) de apostas, ainda que por meio digital ou virtual”.
Há a determinação de um período de transição, com o prazo de 180 dias para o encerramento de atividades desse tipo na cidade — a contar desta segunda, “independentemente de regulamentação”, conforme destaca a publicação.
Segundo o texto, no caso de descumprimento, o espaço deverá ser advertido, com 30 dias para a regularização. Já a reincidência prevê uma multa de R$ 100 a serem multiplicados pela capacidade de frequentadores (estima-se que, no Jockey Club, seja de 20 mil pessoas). Por fim, no caso de permanência do descumprimento 30 dias após a última autuação, determina-se a suspensão do alvará de funcionamento.
O projeto de lei é de autoria do vereador Xexéu Tripoli (União Brasil), datado de 2022. Após a aprovação, na semana passada, a agenda do Jockey se manteve, com corridas em dois dias. O calendário desta semana prevê páreos exclusivamente na tarde de sábado, 6.
Nova Lei de Zoneamento permite prédios em área perto do Jockey antes restrita a casas
Em meio aos vetos à “revisão” da Lei de Zoneamento derrubados pela Câmara em abril, estava a alteração na classificação de quadras da Cidade Jardim antes consideradas como Zona Exclusivamente Residencial (ZER) — onde praticamente apenas são permitidas casas — e Zona Corredor (ZCOR), que são corredores de comércios e serviços em imóveis horizontais. Essa alteração havia sido negada pelo prefeito após pareceres técnicos contrários.
A mudança no zoneamento libera a construção de prédios de até 28 metros e atividades de comércios e de serviços variados na Rua Doutor José Augusto de Queiroz, na Rua Severo Dumont, na Rua Doutor Alberto da Silveira, na Rua Fonseca Teixeira e em outras vias. Está em vigor após ser promulgada pelo presidente da Câmara, Milton Leite, em abril.
Parte das antigas ZERs e das Zonas Corredor (ZCor) da Cidade Jardim passaram a ser Zona Eixo de Estruturação da Transformação Metropolitana (ZEM). Além disso, por meio de um Plano de Intervenção Urbana (PIU), como o recentemente aprovado na Vila Leopoldina, uma ZEM pode passar a ter parâmetros ainda mais flexíveis, de “eixo de verticalização”.
A mudança surpreendeu parte dos moradores da região. A Sociedade Amigos Cidade Jardim (SACJ) discute uma estratégia de contestação, enquanto a Associação Vizinhos do Jockey se manifestou favoravelmente durante uma audiência pública da “minirrevisão” do zoneamento na segunda-feira, 1º.
A população do entorno tem relatado imóveis da área vendidos recentemente ao Grupo RZK (também grafado como Rezek) — o mesmo do Reserva Raposo. Ao Estadão, em abril, o grupo confirmou ter terrenos na vizinhança, para os quais desenvolvia projetos de condomínios residenciais horizontais. Com o novo enquadramento como ZEM, afirmou que o perfil do empreendimento seria revisto diante dos novos parâmetros permitidos.
A alteração foi possível por meio da determinação de uma nova descrição para esse tipo de zona, promulgada na Lei de Zoneamento revisada, pois antes essa classificação não era permitida para áreas com urbanização estabelecida. O Estadão identificou que essa mudança foi proposta em emenda do vereador Sidney Cruz (MDB).
Procurado à época, o vereador Sidney Cruz justificou que as emendas foram propostas após a identificação de que algumas áreas na cidade “estavam deterioradas e necessitavam de adequações urbanísticas”. Também alegou que a mudança envolve uma “localização estratégica para o desenvolvimento urbano do município” e que teve o objetivo de promoção de novas atividades, “revitalização urbana” e “maior dinamismo” na vizinhança.
À época, o O Estadão também procurou o relator da revisão do zoneamento, Rodrigo Goulart (PSD), e a presidência da Câmara sobre as alterações. Em nota conjunta, defenderam que a discussão e aprovação da lei ocorreram de “forma democrática, legal e com ampla aprovação do plenário”, após o recebimento de “sugestões acolhidas durante todo o processo de revisão”.
“Sobre o ponto específico questionado pela reportagem, o objetivo é garantir um desenvolvimento urbano equilibrado, considerando as particularidades locais, como informa o parecer aprovado pelas comissões durante o processo legislativo”, acrescentou a nota.
A alteração havia sido negada por Nunes após indicação em pareceres técnicos municipais. Nas razões de veto, justificou-se que “o incremento de adensamento não condiz com o entorno predominantemente residencial, pois acabaria descaracterizando-o”, ressalta a justificativa. A maior parte da ZER da Cidade Jardim foi mantida mesmo com a revisão.
Especialistas ouvidos pelo Estadão também apontam discordâncias dessa mudança em relação aos textos da Lei de Zoneamento e do Plano Diretor. Para eles, há margem para contestações judiciais. Também há estranhamento sobre as justificativas apresentadas até o momento, principalmente pela demarcação como ZEM, uma classificação não criada para esse tipo de situação.
Por que o Jockey Club fica na Cidade Jardim?
O atual hipódromo paulistano teve a posse do terreno (de cerca de 600 mil m²) repassada ao Jockey Club por volta de 1928, por iniciativa da Cia. City, que fazia a urbanização da região da atual Cidade Jardim após a retificação do Rio Pinheiros. O objetivo era trazer uma opção de lazer atraente à elite paulistana e valorizar o novo bairro.
O local foi oficialmente inaugurado no aniversário de São Paulo de 1941, liderado por Fábio Prado, prefeito da cidade e presidente do Jockey naquele momento. Dessa forma, o terreno que o clube utilizava anteriormente, na Mooca, na zona leste, foi repassado à Prefeitura.
Por que o hipódromo do Jockey Club é tombado como patrimônio cultural de São Paulo?
O Hipódromo de Cidade Jardim tem parte das instalações tombadas como patrimônio cultural do Estado de São Paulo desde 2010. Independentemente da continuidade das atividades atuais ou transformação em parque, essas construções históricas precisarão ser preservadas pelos responsáveis pelo espaço — a exemplo do que ocorre no Parque do Ibirapuera e no Horto Florestal, por exemplo.
Entre os espaços tombados, estão: as arquibancadas sociais, de proprietários e especiais, as fachadas e a volumetria (características externas) da guarita e do prédio principal, o saguão principal, a biblioteca, o conjunto de baias, a pista e a vila hípica. Esse conjunto inclui a preservação de obras de autoria de Victor Brecheret. Há limitações para novas construções em algumas áreas, mas não em todas. Em 2017, por exemplo, a conseguiu-se o aval para novas torres nas duas pontas do terreno.
No Estado, a resolução de tombamento destaca se tratar de um espaço com “exemplar qualidade e inovação arquitetônicas em meados do século XX, constituindo parte integrante da paisagem da cidade de São Paulo, representativa de uma prática cultural da elite paulista, ligada ao esporte e à sociabilidade”.
A resolução de tombamento também aponta o “papel histórico fundamental da implantação deste conjunto nos novos rumos da urbanização da cidade de São Paulo, coincidente com as demandas do Plano de Avenidas, percursos do bairro Cidade Jardim e da ocupação da região sudoeste da cidade”.
As construções que devem ser preservadas envolvem dois períodos, ligados aos arquitetos brasileiro Elisiário Bahiana (autor dos projetos do Viaduto do Chá e do antigo prédio do Mappin — futura nova sede do Sesc SP) e francês Henri Sajous.
Segundo a resolução de tombamento, o primeiro trazia a “monumentalidade exigida pela ‘capital bandeirante’ pós-revolução de 1932 e em tempos de Estado Novo”. Já o segundo teria adotado um “requinte e sofisticação demandados no pós-guerra, expressão de uma mentalidade e de uma prática cultural relevante na história social do Estado”.
São Paulo tem um caso recente de espaço do Jockey Club transformado em parque. Trata-se do Parque Chácara do Jockey, inaugurado na Vila Sônia, na zona oeste, em 2016. Historicamente, a área era utilizada para treinamentos e outras atividades com cavalos.