A Prefeitura de São Paulo apresentou uma terceira versão da proposta de revisão da Lei de Zoneamento na sexta-feira, 5, com alterações menos expressivas do que a anterior e a retirada dos trechos que liberavam espigões nos miolos dos bairros. O novo texto mira em aspectos mais pontuais, com dois trechos que podem impactar em um tipo de construção cada vez mais raro na cidade: as vilas.
A mudança também mantém o entorno de estações de metrô e outros eixos de transporte em massa como os mais atraentes para o mercado imobiliário. Como o Estadão mostrou, essas quadras têm concentrado a maior parte dos lançamentos residenciais, com uma verticalização intensa em bairros como Brooklin, na zona sul, e Butantã e Pinheiros, na zona oeste.
Especialistas ouvidos pela reportagem avaliam que a proposta da gestão Ricardo Nunes (MDB) facilita a extinção de parte das vilas, enquanto o Município argumenta que aquelas que são representativas para a história da cidade estão protegidas por tombamentos e não podem ser demolidas. Na prática, contudo, uma minoria desses conjuntos são considerados patrimônio cultural, majoritariamente no centro, como a Vila Maria Zélia, no Belém, a Vila Economizadora, na Luz, e a Vila Itororó, no Bixiga.
A Lei de Zoneamento limita que a maioria das construções mais próximas de vilas (a 20 metros ou menos) tenha uma altura de até 15 metros. Com a mudança, esse máximo será quase dobrado, chegando a 28 metros nos “centrinhos de bairros” (onde há amplo comércio local) e nas áreas de interesse social (onde vive população vulnerável, como cortiços).
A altura de até 28 metros atualmente é permitida apenas nos vizinhos de vilas perto de estações de metrô, acessos de trem e corredores de ônibus. Na avaliação de parte dos especialistas ouvidos pelo Estadão, essa mudança pode “sufocar” o entorno desses conjuntos a depender das características do local.
Outra alteração na lei que facilita o avanço na verticalização junto às vilas é a liberação para que terrenos vizinhos sejam anexados ao que antes era a vila se for totalmente demolida. Hoje, é proibido unir terrenos aos dos vizinhos.
Com a mudança, esses locais se tornam mais atraentes para empreendimentos de maior porte, ainda mais porque a altura máxima passará a ser a vigente na vizinhança como um todo. Ou seja, se a vila for extinta, as casas e sobrados poderão ser substituídas por espigões. Já a Prefeitura diz que essa regra já passou a ser aplicada no processo de licenciamento, com o entendimento de que “se não houver impedimento da legislação de preservação para demolição das edificações da vila, ela deixa de existir com a demolição das edificações que a compõem, não cabendo a aplicação das restrições.”
A mudança não incidirá em todas as vilas da cidade. Isso porque parte dos conjuntos de moradias com características visuais de vila não é oficialmente considerada como tal e, portanto, não tem uma restrição para que parte das casas sejam substituídas por prédios.
Esse foi o caso, por exemplo, da vila operária João Migliari, parcialmente demolida no Tatuapé em 2019, em que parte do terreno está em obras para um prédio de 45 andares. Outra parte vai dar lugar a um supermercado de alto padrão, enquanto apenas cinco dos 60 sobrados seguem de pé.
O mercado imobiliário defende a liberação de construções mais altas nos bairros, diante da supervalorização dos terrenos nos “eixos de transporte”, onde há uma série de incentivos públicos e uma alta verticalização nos últimos anos.
A alteração proposta pela Prefeitura descongelaria parte dos vizinhos das vilas, dobrando a altura máxima nos “centrinhos de bairro”, área valorizada no setor pela proximidade de comércios e serviços. Para parte dos especialistas ouvidos pelo Estadão, seria uma forma de atender parcialmente às demandas do mercado, já que a Prefeitura recuou em aumentar o gabarito máximo nesses locais, de 48 para 60 metros.
Professor da USP e relator do Plano Diretor na Câmara em 2016, o urbanista Nabil Bonduki defende que a poder público precisa fazer um inventário de todas as vilas da cidade e empregar regramentos mais específicos para esses locais. Ele vê esses conjuntos como possíveis respiros em meio à verticalização, além de serem um testemunho de um jeito de morar em raridade.
“A minuta estimula o remembramento (união com lotes vizinhos) e a venda das casas para empreendimentos”, afirma. “A vila é uma importante tipologia a ser preservada.”
As vilas paulistanas apresentam diversidade arquitetônica, histórica e social, conforme destaca o urbanista Lucas Chiconi, diretor adjunto de Ação Regional do Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo (IAB SP). Ele aponta que essa diferença envolve os tipos de construção (geralmente casa térrea ou sobrado), de morador original (operários ou trabalhadores de superior poder aquisitivo), de uso atual (parte foi convertida em comércios e serviços) e até de estilo arquitetônico.
Essa diversidade envolve, ainda, diferenças sociais, em que as casas de vila são disputadas em bairros nobres, enquanto atendem a uma população de baixa renda em áreas menos valorizadas, às vezes funcionam quase como cortiços. Chiconi destaca que há vilas em diversos bairros, especialmente aqueles com passado industrial, como Água Rasa, Ipiranga, Penha e Santana.
Para ele, vilas com significativo valor histórico e cultural não estão tombadas, principalmente nos bairros fora do centro expandido e, portanto, estariam vulneráveis à demolição e substituição por prédios altos. “Grande parte foi construída no período de industrialização da cidade, na primeira metade século 20, até meados dos anos 1950.”
É o caso, por exemplo, de uma vila de nove sobrados da Rua Marcos Arruda, no distrito Belém, que está apenas temporariamente protegida, enquanto um estudo de tombamento tramita há quatro anos na Prefeitura. A última votação foi adiada há cerca de um ano. Como fica em área de interesse social, poderá ser cercada por imóveis quase 30 metros caso a minuta da Prefeitura seja aprovada.
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Atualmente, a Lei de Zoneamento limita que a maioria das construções tenha uma altura de até 15 metros
Outra vila com valor cultural reconhecido por diversos arquitetos é a vila modernista projetada pelo artista de vanguarda Flávio de Carvalho, situada nos Jardins e datada dos anos 1930. Movimento liderado por professores universitários e entidades defendeu o tombamento cinco anos atrás, mas a proposta não foi aprovada pelo conselho municipal do setor em um período em que diversas votações tiveram a lisura questionada. À época, o órgão municipal responsável disse que a vila estava descaracterizada.
Chiconi explica que esses tipos de conjuntos também chamam a atenção de incorporadoras porque, por vezes, pertencem a um único dono, que os mantêm como imóveis de aluguel. Assim, a venda é mais fácil e os ocupantes são despejados, como foi na Vila João Migliari, do Tatuapé, da qual o urbanista foi o autor do pedido de estudo de tombamento, que inclui a vila da Rua Marcos Arruda e outra igualmente no Belém.
Nunes recua em verticalização proposta por Doria e Covas
A 1ª versão da minuta de revisão da Lei de Zoneamento (oficialmente Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo) começou a ser desenvolvida já no ano seguinte à aprovação da lei, em 2016, na gestão Fernando Haddad (PT). A equipe de João Doria (então no PSDB) apresentou a proposta de alterações em janeiro de 2018, com a liberação de construções sem limite de altura em mais partes da cidade, o que hoje é restrito ao entorno de estações de metrô, acessos de trem e corredores de ônibus.
A proposta de Doria não avançou e o então prefeito Bruno Covas (PSDB) apresentou uma 2ª versão da minuta em 2019, com menos alterações na lei, mas ainda com significativa mudança nos limites de altura dos centrinhos (de 48 metros para 60 metros) e nos miolos de bairro (de 28 metros para 48 metros), hoje majoritariamente residenciais e com pequenos comércios locais.
A argumentação do secretário municipal de Desenvolvimento Urbano à época (hoje secretário executivo de Planejamento e Prioridades), Fernando Chucre, era de que a mudança seria necessária diante da “elitização” dos eixos de transporte. “O mercado correu para o corredor e houve explosão no preço”, disse ao Estadão em 2019. O texto foi criticado e teve a tramitação congelada na Justiça até junho do ano passado após ação ajuizada por movimentos de bairro e entidades conseguirem uma liminar.
Hoje, a justificativa da gestão Nunes é de que a alteração de parâmetro demandaria estudos “mais aprofundados sobre a incidência e impacto”. Isso porque os centrinhos e os miolos de bairro, por vezes, abrangem vias de menor porte ou infraestrutura, segundo justificou em nota.
A Prefeitura afirma que demorou quase um ano para apresentar a minuta após o arquivamento do processo judicial porque a equipe técnica priorizou a revisão do Plano Diretor, cujo projeto de lei foi enviado aos vereadores em março e está em fase final de audiências públicas.
Na Câmara, a gestão Nunes foi pressionada a apresentar a minuta do zoneamento antes da votação do Plano Diretor. Houve até mesmo a ameaça de congelamento do cronograma de audiências públicas caso o conteúdo não fosse apresentado pela gestão municipal.
A tramitação simultânea de duas das leis que mais impactam no desenvolvimento urbano da cidade foi criticada por urbanistas ouvidos pelo Estadão. Outro ponto que pode até mesmo motivar judicialização é que o processo de participação popular foi quase inteiramente feito entre 2018 e 2019, quando havia bem menos dados e estudos sobre o impacto da Lei de Zoneamento na cidade, aprovado em 2016 e cujos efeitos se tornaram mais evidentes apenas nos últimos anos, após uma transição.
A minuta será tema de audiência pública virtual no dia 18, além de reuniões do Conselho Municipal de Política Urbana e da Câmara Técnica de Legislação Urbanística.
Coordenador do Laboratório de Projetos e Políticas Públicas (LPP) e professor na Mackenzie, o urbanista Valter Caldana diz que a situação pode gerar divergências entre as duas leis, ainda mais porque ambas poderão ser alteradas pelos vereadores diversas vezes até a aprovação da versão final. “Plano diretor é um pacto da sociedade, cuida das diretrizes de médio prazo, diz (qual é) a cidade que queremos ser e indica caminhos de como chegar lá. A lei de zoneamento é um instrumento de aplicação”, explica.
Ele avalia, também, que a minuta apresenta faz mudanças pontuais e não resolve os problemas da lei, que considera praticamente a mesma há mais de 50 anos, sem considerar a complexidade paulistana.
Para Caldana, o mais significativo problema é que o zoneamento mantém uma divisão da cidade baseada no lote, sem pensar suficientemente em capacidade e questões ambientais, por exemplo. “É preciso que seja mais ágil, menos restritivo. Ele engessa a cidade e, por isso, eleva o preço da terra.”
Veja mais mudanças previstas na minuta de revisão da Lei de Zoneamento:
Imóveis tombados: a chamada “transferência de direito de construir” (para serem aplicados em um outro empreendimento) valerá o dobro da área nos imóveis de até 1 mil metros quadrados. Esse fator também foi ampliado em propriedades maiores, mas em menor proporção.
Esse mecanismo divide opiniões entre especialistas, especialmente porque alimenta um mercado de intermediários entre donos e incorporadoras, que encontram nos créditos uma opção mais barata do que a outorga onerosa, paga à Prefeitura para construir acima de um limite básico. Outro ponto criticado, é que essa dinâmica geralmente favorece grandes proprietários.
Zona rural: a minuta dispensa a apresentação de licença de funcionamento para atividades de pesquisa, educação ambiental e manejo sustentável na zona rural. Nos últimos anos, a Prefeitura tem buscado incentivar o turismo no extremo sul paulistano.
Fachada ativa: a minuta aponta que os incentivos para que empreendimentos criem estabelecimentos comerciais e de serviços no térreo não incluem centrais de armazenamento e distribuição de carga, serviços de guarda-móveis, estacionamentos e garagens. “O Município entende que esses espaços devem ser destinados a usos e atividades atraentes ao público e que proporcionem a dinamização dos passeios públicos”, justificou a Prefeitura em nota.
Além disso, o mínimo de área de fachada ativa será calculado pela metragem total, sem exigir um mínimo para cada lateral. Como exemplo, um condomínio de esquina poderá concentrar o comércio voltado para uma das duas vias, deixando o outro lado com menos movimentação de pessoas. Em nota, a Prefeitura diz a mudança proposta “proporciona mais opções para o devido atendimento a esse parâmetro qualificador, podendo o empreendedor aplicar a fachada ativa em uma ou mais testadas da edificação”.
Ruído: a minuta prevê que o barulho emitido por artistas de rua fique sujeito a uma “legislação própria”, como ocorre no carro de veículos automotores, por exemplo.