Racismo estrutural tem reflexo nas mortes pela polícia, diz chefe do Ministério Público de SP


Procurador-geral do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), órgão responsável pelo controle externo das polícias, também afirma não ver risco de as tropas paulistas aderirem a possível golpe institucional

Por Felipe Resk
Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo Foto: Marcelo Chello/Estadão

Chefe do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), órgão responsável por fazer o controle externo das polícias, Mário Luiz Sarrubbo acredita que o Estado está na contramão do Brasil e, após bater recorde no ano passado, vive agora um cenário de queda sustentada da violência policial: “Com as câmeras corporais, deve melhorar ainda mais”.

Em entrevista exclusiva ao Estadão, o procurador-geral de Justiça afirma que políticas de controle devem levar em conta quem são as vítimas e que o racismo estrutural precisa ser enfrentado no País. “Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo”, analisa. “Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.”

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Sarrubbo também critica o armamento da população e atribui a maior circulação de armas a mais confrontos. Para o procurador-geral, a falta de policiais prejudica a qualidade das investigações e complexidades do sistema de Justiça contribuem para a sensação de impunidade no Brasil. No caso de Paraisópolis, em que recentemente a promotoria ofereceu denúncia contra 12 PMs por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar), ele avalia que seria mais fácil conseguir condenação com um juiz togado - e não por júri popular.

Com a escalada de discursos autoritários e de ataques ao sistema eleitoral pelo governo Jair Bolsonaro, o representante do MP diz não ver risco de as tropas de São Paulo aderirem a um possível golpe. “Esse envolvimento de corporações, tenho certeza, não acontecerá”, afirma. “Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá.”

São Paulo bateu recorde de mortes decorrentes de ações policiais no 1º semestre do ano passado. Já neste ano, a letalidade caiu 33%. A gente está falando de queda sustentada ou de um comportamento estatístico constatado porque o patamar anterior era muito alto?

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Embora o contexto nacional seja outro, de incentivo à violência, a PM de São Paulo está fazendo uma série de trabalhos internos para conter a letalidade. É a maior instituição policial do Brasil, com cerca de 80 mil homens, então veja a dificuldade de construir isso. O Ministério Público também faz trabalho envolvendo redes de proteção, identifica focos de violência, leva casos para a polícia e designa promotores para acompanhar eventuais abusos. Tudo isso, em algum momento, tem de refletir nos números. A nossa perspectiva é que seja uma queda sustentada. Com as câmeras corporais agora, deve melhorar ainda mais.

Se é resultado de um trabalho contínuo, o que aconteceu no ano passado? Vale lembrar que era o início da pandemia, quando comércios fecharam, as pessoas ficaram mais em casa e houve queda no registro de roubos, o motivo mais alegado para justificar os confrontos. 

É muito difícil fazer um diagnóstico. Há um contexto: o Brasil vinha de um momento em que as armas de fogo eram recolhidas da população e, com o governo Bolsonaro, passaram a ser devolvidas. A polícia evidentemente teve mais confronto porque há mais armas circulando. Podem dizer: “Mas já não havia arma por causa do tráfico?”.  Hoje tem mais ainda. Qualquer cidadão tem acesso e, por certo, essa arma vai cair em mãos inadequadas. Isso é muito ruim, porque nos leva ao aumento de confrontos e consequentemente de mortes. É só isso? Não, é um contexto genérico que pode ser um indutor do aumento.

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A instalação de câmeras corporais que gravam policiais em atividade é uma das principais ações citadas pelo governador de São Paulo, João Doria. Conhecida por confrontos, a Rota registrou letalidade zero em maio. Quais outras iniciativas devem ser implementadas?

O Ministério Público vem trabalhando o tema da letalidade há muito tempo, trazendo a PM para o debate e conhecendo programas da corporação para diminuir os índices. Não é só a bodycam. Há grandes mitos de que a PM é treinada para matar, isso não existe. Os policiais têm programas de profissionalização e de direitos humanos. Se há resultado melhor hoje, com certeza é em função do trabalho de alguns anos, méritos da própria instituição e da sociedade.

As câmeras são muito positivas para o combate à criminalidade e para o próprio PM. À medida que as imagens podem ser usadas como prova dos processos, a verdade sempre vai aparecer. Isso também protege o policial: se ele alega que um sujeito estava com droga ou agredindo alguém, a bodycam vai servir para confirmar a tese.

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Policiais militares do Estado de São Paulo Foto: Hélvio Romero/Estadão

No ano passado, o STF proibiu que a polícia do Rio realizasse operações em favelas durante a pandemia. Desde então, houve um recuo considerável de casos de mortes de civis. Como o sr. enxerga a atuação de outras instituições no sistema de controle da violência?

O desejável é sempre uma letalidade muito baixa. A Justiça procura atuar dentro do sistema de freios e contrapesos. O Supremo exerceu seu papel de consagrar a Constituição, a dignidade humana e deu um parâmetro. Isso baixou o número de mortes, então talvez pode ser uma diretriz que indique um caminho. Mas essa análise é muito complexa na medida em que o crime acontece em todos os segmentos da sociedade, não só na favela. No Rio, acontece também na Vieira Souto ou na Barra da Tijuca. Precisamos achar um ponto de equilíbrio para alcançar não só o criminoso de baixa renda, mas também o de colarinho branco.

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Em se tratando de letalidade policial, diferentes dados e pesquisas realizadas no Brasil apontam que há um padrão de mortos: homens, jovens e negros. Nesse caso, não é importante focar no perfil da vítima?

Sem dúvida. Na verdade, o Brasil ainda vive um racismo estrutural muito grande. É injusto imputar isso só à polícia ou ao sistema de Justiça. Temos de olhar para a sociedade como um todo. O que vou falar é chover no molhado: o racismo estrutural é grave, remonta à escravidão, à população negra que foi simplesmente jogada, sem direito a nada. Até hoje nenhum governo - de esquerda, direita ou centro - conseguiu superar o problema. Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.

O racismo estrutural reflete na atividade policial?

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O racismo estrutural impacta em tudo, mas no final acaba refletindo nesse índice de mortes. Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Até porque boa parte das corporações é formada por negros. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo. Quantos negros temos no Congresso Nacional? Quantos negros temos no STJ (Superior Tribunal de Justiça)? E no Supremo? É sempre a minoria. Isso tudo acaba refletindo no número de mortes.

Imagens de câmera corporal de policial mostram atuação durante ocorrência no mês de junho Foto: PM-SP

Em 2018, o Brasil elegeu um presidente que defende ampliar excludentes de ilicitude e apoia publicamente operações que resultam em morte. Além disso, foram eleitos governadores com discurso de que “a polícia vai atirar na cabecinha” ou que prometiam “contratar os melhores advogados” para policiais. Em 2020, a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, impulsionou um debate mundial sobre a violência das polícias. No Brasil, houve uma série de manifestações após casos recentes. Qual é o ambiente atual para discutir controle policial?

A gente vive um movimento pendular no mundo. Em alguns países, há muita polarização. Daí, a importância de instituições independentes, como o Ministério Público e o Judiciário, para fazer o contraponto e trazer equilíbrio para a vida em sociedade. Não podemos nos desencumbir do papel de controle externo. Particularmente, sou contra o armamento da população e não vejo necessidade alguma de se criar excludente de ilicitude, porque os problemas da violência no Brasil são outros. A gente precisa buscar uma polícia cada vez mais republicana e cidadã, além de um Estado que consiga oferecer segurança pública.

O comportamento de políticos e gestores públicos tem impacto na postura da polícia na rua?

Eu prefiro ficar sempre com a Constituição. Forças policiais e o Estado têm de cumprir seu papel: a manutenção da vida de quem quer que seja. Principalmente da vítima, mas também do criminoso. Intervenção policial que termina em morte não é motivo para comemoração.

Em Pernambuco, uma crise na cúpula da segurança foi exposta após manifestações contra o presidente Bolsonaro serem reprimidas pela polícia. O Ceará também testemunhou motim em 2020, que pesquisadores associam a um aumento desenfreado de homicídios. Quais razões existem para acreditar que São Paulo não corre risco de passar por algo semelhante?

Volto a insistir que o trabalho de profissionalização das polícias de São Paulo é de longa data. Não creio que a tropa tenha qualquer viés ideológico, mas sim profissional, de combate ao crime. Essas coisas não podem acontecer. Se houver, vai ser apurado. Agora, é óbvio que a gente está falando de uma instituição com 80 mil pessoas. É muita gente, então você pode ver um caso aqui ou ali. Mas posso assegurar que não há um viés de comando.

Bolsonaro tem subido o tom contra o sistema eleitoral e isso também provoca manifestações sobre riscos de ruptura institucional no Brasil. Em caso de golpe, há chance de as tropas aderirem?

Na segunda-feira, o Ministério Público lançou uma nota ressaltando a importância do sistema democrático e das instituições no Brasil. Eu sou entusiasta das instituições. Creio que elas não faltarão ao País e não haverá ruptura. Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá, não obstante a existência de algumas falas que nós consideramos que não deveriam acontecer. Esse envolvimento de corporações (com rupturas), tenho certeza, não acontecerá.

Por ser o órgão de controle externo das polícias e responsável por oferecer denúncias criminais à Justiça, o MP talvez tenha a imagem muito associada a punições. Em São Paulo, o que tem sido pensado para prevenção da violência e garantia do bom funcionamento das corporações?

Entendemos que não basta falar em combate à criminalidade. Não basta uma ação do Gaeco contra o tráfico em determinado bairro. A gente precisa entrar lá também com a promotoria de Direitos Humanos, de Saúde, de Educação. A prevenção envolve conferir aos cidadãos os direitos que estão previstos na Constituição Federal. É claro que a violência está entre as principais pautas da sociedade, mas não trabalhamos com olhar único. A violência resulta da falta de cidadania, da ausência do Estado, da desigualdade social. Então nosso papel vai muito além de pedir a pena máxima para condenar um réu.

Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo Foto: Marcelo Chello/Estadão

Um habeas corpus coletivo, concedido pela Justiça Militar em julho de 2020, autorizava a PM a recolher materiais em cenas de mortes de civis. Essa decisão foi cassada pelo corregedor do TJ-SP na semana passada. Como o sr. avalia a questão?

A decisão do Tribunal de Justiça está correta. Não se trata de uma questão institucional, mas de legislação. O sistema legal é muito claro. O papel de apreender objetos e armas, fazer o levantamento do local e investigar o crime é da polícia judiciária. Ou seja, da Polícia Civil. Sem prejuízo, claro, de investigações que devem ser feitas pela Polícia Militar, em âmbito interno e disciplinar, uma vez que esses acontecimentos também podem envolver crime militar. Cada um no seu papel.

A decisão da Justiça Militar ficou em vigor por um ano. Isso impactou o trabalho do MP em casos de letalidade policial?

Apesar de ter ficado vigente, o habeas corpus não foi posto em prática no dia a dia e a Polícia Civil acabou intervindo na maioria dos casos. No fundo, nem na própria Polícia Militar havia unanimidade em relação à medida. É bom pontuar que, em caso de morte decorrente de intervenção policial, a apuração da prova é muito complicada. Normalmente, ela se dá sem testemunha e em horários pouco usuais. A gente tem procurado designar promotores para acompanhar os casos desde o início e não conseguimos detectar prejuízo claro em relação aos efeitos do habeas corpus.

No recurso contra a medida, o MP chegou a dizer que liberar apreensão por PMs poderia causar “inegável prejuízo às investigações de casos graves no Estado de São Paulo”.

Não vejo por essa perspectiva. A gente não pode fazer juízo de valor e falar: “Se a investigação ficar com PM, vai gerar impunidade”. Sendo muito franco, quando havia crimes cometidos por militares, muitas vezes eu pedia a investigação da Corregedoria da PM para complementar a investigação da Polícia Civil. A gente tem de olhar a questão pelo prisma correto, que é a lei. Pela legislação, a morte decorrente de intervenção policial é um crime da Justiça comum - e não da Militar.

Caso a ação prosperasse, a gente não estaria discutindo, no fim das contas, que os julgamentos desses crimes contra a vida deveriam voltar para a Justiça Militar?

Sem dúvida alguma, mas acontece que a lei determina júri popular. A gente só tem de tomar cuidado para não gerar a interpretação de que, se o julgamento fosse para a Justiça Militar, geraria impunidade. A experiência mostra que nem sempre isso é verdade. Muitas vezes, o júri popular absolve o PM. A gente tem visto isso acontecer com frequência. Depende da prova, do contexto, por isso não faço juízo sob o prisma da corporação. Insisto: é uma questão de lei e não de corporativismo.

Quando o sr. era subprocurador, atuou no caso do Carandiru, que vai completar 30 anos e é um dos mais emblemáticos. Os PMs foram condenados no júri, mas a sentença foi anulada depois, na segunda instância, pelo TJ. Também aconteceu na chacina de Osasco e Barueri, conhecida como “a maior de São Paulo”.

Eu acredito no Tribunal do Júri e no sistema de Justiça. O Brasil envolve variáveis e, muitas vezes, a gente não alcança aquele resultado que a sociedade pretende. Isso envolve todo um sistema de apuração de provas capaz de construir um arcabouço probatório que leve à condenação. Há muita deficiência. Existe um déficit enorme de investigadores e peritos por conta da eterna crise que vivemos. As instituições tentam crescer, mas convivem com índice de miserabilidade muito grande no País e os investimentos não podem ser os desejados. Quando o sistema vai ser eficiente? Quando as instituições puderem se fortalecer. E incluo até o Ministério Público de São Paulo, que hoje tem um déficit de 200 membros. Isso significa cerca de 10% a menos da força de trabalho.

Para o sr., o principal problema está na fase de investigação?

A solução passa por incrementar, aparelhar e melhorar as condições de trabalho daqueles que são incumbidos de apurar os crimes. Não há mão de obra suficiente. E é um problema histórico, não de hoje. O déficit acaba prejudicando os resultados. No sistema de justiça democrático, em que há ampla defesa e direito ao contraditório, isso acaba gerando brechas que permitem absolvições indesejadas.

No Carandiru, o júri popular condenou os réus. A sentença foi anulada porque, depois disso, o TJ rejeitou a tese de que os PMs teriam “concorrido” para que as mortes acontecessem, sem individualizar a conduta de cada policial.

O Carandiru é uma questão de tese. Na verdade, a denúncia do MP adota uma diretriz que não foi acatada no TJ e a gente recorreu ao STJ, que mandou voltar. Ou seja, continuamos fazendo nosso trabalho. É importante pontuar que não há omissão das instituições. Evidentemente, fica a impressão de que o sistema de Justiça não funciona, mas não é verdade. Essas discussões são normais em um País que ainda se adapta a um processo penal democrático, com contraditório, ampla defesa e o velho problema do sistema processual que leva a quatro instâncias: o júri, o TJ, o STJ e o Supremo. Nesse sentido, precisamos de uma reforma corajosa que faça com que a maioria dos casos termine no 2º grau.

Em julho, o MP ofereceu denúncia contra 12 policiais no caso de Paraisópolis, quando nove pessoas morreram pisoteadas durante uma operação. A promotoria vê “homicídio com dolo eventual”, que é uma interpretação mais dura comparada à da Polícia Civil, que havia indiciado os agentes por “homicídio culposo”. Por quê?

O MP tem de trabalhar sempre com os indícios. No momento de condenar, a dúvida deve contar a favor do réu. Mas, na hora de acusar, deve ser pela sociedade. A interpretação dos colegas (promotores) é que havia indícios de dolo eventual, não há outro contexto a não ser a prova dos autos e o que diz o Código de Processo Penal. Com o andamento do processo, vai se chegar a um resultado. A conclusão pode ser o que diz o MP ou pode ser de homicídio culposo.

A diferença entre homicídio culposo ou com dolo eventual é uma nuance jurídica, nem todo mundo entende. Para conseguir a condenação dos réus, é mais fácil trabalhar a tese em um júri popular ou com um juiz togado?

Com juiz togado, mas essa é uma opinião particular. Notadamente em contexto que envolve PMs, pode ser mais difícil levar aos jurados porque a diferença é muito sutil e fica difícil de identificar em caso concreto. O sistema de Justiça é complexo.

Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo Foto: Marcelo Chello/Estadão

Chefe do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), órgão responsável por fazer o controle externo das polícias, Mário Luiz Sarrubbo acredita que o Estado está na contramão do Brasil e, após bater recorde no ano passado, vive agora um cenário de queda sustentada da violência policial: “Com as câmeras corporais, deve melhorar ainda mais”.

Em entrevista exclusiva ao Estadão, o procurador-geral de Justiça afirma que políticas de controle devem levar em conta quem são as vítimas e que o racismo estrutural precisa ser enfrentado no País. “Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo”, analisa. “Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.”

Sarrubbo também critica o armamento da população e atribui a maior circulação de armas a mais confrontos. Para o procurador-geral, a falta de policiais prejudica a qualidade das investigações e complexidades do sistema de Justiça contribuem para a sensação de impunidade no Brasil. No caso de Paraisópolis, em que recentemente a promotoria ofereceu denúncia contra 12 PMs por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar), ele avalia que seria mais fácil conseguir condenação com um juiz togado - e não por júri popular.

Com a escalada de discursos autoritários e de ataques ao sistema eleitoral pelo governo Jair Bolsonaro, o representante do MP diz não ver risco de as tropas de São Paulo aderirem a um possível golpe. “Esse envolvimento de corporações, tenho certeza, não acontecerá”, afirma. “Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá.”

São Paulo bateu recorde de mortes decorrentes de ações policiais no 1º semestre do ano passado. Já neste ano, a letalidade caiu 33%. A gente está falando de queda sustentada ou de um comportamento estatístico constatado porque o patamar anterior era muito alto?

Embora o contexto nacional seja outro, de incentivo à violência, a PM de São Paulo está fazendo uma série de trabalhos internos para conter a letalidade. É a maior instituição policial do Brasil, com cerca de 80 mil homens, então veja a dificuldade de construir isso. O Ministério Público também faz trabalho envolvendo redes de proteção, identifica focos de violência, leva casos para a polícia e designa promotores para acompanhar eventuais abusos. Tudo isso, em algum momento, tem de refletir nos números. A nossa perspectiva é que seja uma queda sustentada. Com as câmeras corporais agora, deve melhorar ainda mais.

Se é resultado de um trabalho contínuo, o que aconteceu no ano passado? Vale lembrar que era o início da pandemia, quando comércios fecharam, as pessoas ficaram mais em casa e houve queda no registro de roubos, o motivo mais alegado para justificar os confrontos. 

É muito difícil fazer um diagnóstico. Há um contexto: o Brasil vinha de um momento em que as armas de fogo eram recolhidas da população e, com o governo Bolsonaro, passaram a ser devolvidas. A polícia evidentemente teve mais confronto porque há mais armas circulando. Podem dizer: “Mas já não havia arma por causa do tráfico?”.  Hoje tem mais ainda. Qualquer cidadão tem acesso e, por certo, essa arma vai cair em mãos inadequadas. Isso é muito ruim, porque nos leva ao aumento de confrontos e consequentemente de mortes. É só isso? Não, é um contexto genérico que pode ser um indutor do aumento.

A instalação de câmeras corporais que gravam policiais em atividade é uma das principais ações citadas pelo governador de São Paulo, João Doria. Conhecida por confrontos, a Rota registrou letalidade zero em maio. Quais outras iniciativas devem ser implementadas?

O Ministério Público vem trabalhando o tema da letalidade há muito tempo, trazendo a PM para o debate e conhecendo programas da corporação para diminuir os índices. Não é só a bodycam. Há grandes mitos de que a PM é treinada para matar, isso não existe. Os policiais têm programas de profissionalização e de direitos humanos. Se há resultado melhor hoje, com certeza é em função do trabalho de alguns anos, méritos da própria instituição e da sociedade.

As câmeras são muito positivas para o combate à criminalidade e para o próprio PM. À medida que as imagens podem ser usadas como prova dos processos, a verdade sempre vai aparecer. Isso também protege o policial: se ele alega que um sujeito estava com droga ou agredindo alguém, a bodycam vai servir para confirmar a tese.

Policiais militares do Estado de São Paulo Foto: Hélvio Romero/Estadão

No ano passado, o STF proibiu que a polícia do Rio realizasse operações em favelas durante a pandemia. Desde então, houve um recuo considerável de casos de mortes de civis. Como o sr. enxerga a atuação de outras instituições no sistema de controle da violência?

O desejável é sempre uma letalidade muito baixa. A Justiça procura atuar dentro do sistema de freios e contrapesos. O Supremo exerceu seu papel de consagrar a Constituição, a dignidade humana e deu um parâmetro. Isso baixou o número de mortes, então talvez pode ser uma diretriz que indique um caminho. Mas essa análise é muito complexa na medida em que o crime acontece em todos os segmentos da sociedade, não só na favela. No Rio, acontece também na Vieira Souto ou na Barra da Tijuca. Precisamos achar um ponto de equilíbrio para alcançar não só o criminoso de baixa renda, mas também o de colarinho branco.

Em se tratando de letalidade policial, diferentes dados e pesquisas realizadas no Brasil apontam que há um padrão de mortos: homens, jovens e negros. Nesse caso, não é importante focar no perfil da vítima?

Sem dúvida. Na verdade, o Brasil ainda vive um racismo estrutural muito grande. É injusto imputar isso só à polícia ou ao sistema de Justiça. Temos de olhar para a sociedade como um todo. O que vou falar é chover no molhado: o racismo estrutural é grave, remonta à escravidão, à população negra que foi simplesmente jogada, sem direito a nada. Até hoje nenhum governo - de esquerda, direita ou centro - conseguiu superar o problema. Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.

O racismo estrutural reflete na atividade policial?

O racismo estrutural impacta em tudo, mas no final acaba refletindo nesse índice de mortes. Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Até porque boa parte das corporações é formada por negros. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo. Quantos negros temos no Congresso Nacional? Quantos negros temos no STJ (Superior Tribunal de Justiça)? E no Supremo? É sempre a minoria. Isso tudo acaba refletindo no número de mortes.

Imagens de câmera corporal de policial mostram atuação durante ocorrência no mês de junho Foto: PM-SP

Em 2018, o Brasil elegeu um presidente que defende ampliar excludentes de ilicitude e apoia publicamente operações que resultam em morte. Além disso, foram eleitos governadores com discurso de que “a polícia vai atirar na cabecinha” ou que prometiam “contratar os melhores advogados” para policiais. Em 2020, a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, impulsionou um debate mundial sobre a violência das polícias. No Brasil, houve uma série de manifestações após casos recentes. Qual é o ambiente atual para discutir controle policial?

A gente vive um movimento pendular no mundo. Em alguns países, há muita polarização. Daí, a importância de instituições independentes, como o Ministério Público e o Judiciário, para fazer o contraponto e trazer equilíbrio para a vida em sociedade. Não podemos nos desencumbir do papel de controle externo. Particularmente, sou contra o armamento da população e não vejo necessidade alguma de se criar excludente de ilicitude, porque os problemas da violência no Brasil são outros. A gente precisa buscar uma polícia cada vez mais republicana e cidadã, além de um Estado que consiga oferecer segurança pública.

O comportamento de políticos e gestores públicos tem impacto na postura da polícia na rua?

Eu prefiro ficar sempre com a Constituição. Forças policiais e o Estado têm de cumprir seu papel: a manutenção da vida de quem quer que seja. Principalmente da vítima, mas também do criminoso. Intervenção policial que termina em morte não é motivo para comemoração.

Em Pernambuco, uma crise na cúpula da segurança foi exposta após manifestações contra o presidente Bolsonaro serem reprimidas pela polícia. O Ceará também testemunhou motim em 2020, que pesquisadores associam a um aumento desenfreado de homicídios. Quais razões existem para acreditar que São Paulo não corre risco de passar por algo semelhante?

Volto a insistir que o trabalho de profissionalização das polícias de São Paulo é de longa data. Não creio que a tropa tenha qualquer viés ideológico, mas sim profissional, de combate ao crime. Essas coisas não podem acontecer. Se houver, vai ser apurado. Agora, é óbvio que a gente está falando de uma instituição com 80 mil pessoas. É muita gente, então você pode ver um caso aqui ou ali. Mas posso assegurar que não há um viés de comando.

Bolsonaro tem subido o tom contra o sistema eleitoral e isso também provoca manifestações sobre riscos de ruptura institucional no Brasil. Em caso de golpe, há chance de as tropas aderirem?

Na segunda-feira, o Ministério Público lançou uma nota ressaltando a importância do sistema democrático e das instituições no Brasil. Eu sou entusiasta das instituições. Creio que elas não faltarão ao País e não haverá ruptura. Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá, não obstante a existência de algumas falas que nós consideramos que não deveriam acontecer. Esse envolvimento de corporações (com rupturas), tenho certeza, não acontecerá.

Por ser o órgão de controle externo das polícias e responsável por oferecer denúncias criminais à Justiça, o MP talvez tenha a imagem muito associada a punições. Em São Paulo, o que tem sido pensado para prevenção da violência e garantia do bom funcionamento das corporações?

Entendemos que não basta falar em combate à criminalidade. Não basta uma ação do Gaeco contra o tráfico em determinado bairro. A gente precisa entrar lá também com a promotoria de Direitos Humanos, de Saúde, de Educação. A prevenção envolve conferir aos cidadãos os direitos que estão previstos na Constituição Federal. É claro que a violência está entre as principais pautas da sociedade, mas não trabalhamos com olhar único. A violência resulta da falta de cidadania, da ausência do Estado, da desigualdade social. Então nosso papel vai muito além de pedir a pena máxima para condenar um réu.

Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo Foto: Marcelo Chello/Estadão

Um habeas corpus coletivo, concedido pela Justiça Militar em julho de 2020, autorizava a PM a recolher materiais em cenas de mortes de civis. Essa decisão foi cassada pelo corregedor do TJ-SP na semana passada. Como o sr. avalia a questão?

A decisão do Tribunal de Justiça está correta. Não se trata de uma questão institucional, mas de legislação. O sistema legal é muito claro. O papel de apreender objetos e armas, fazer o levantamento do local e investigar o crime é da polícia judiciária. Ou seja, da Polícia Civil. Sem prejuízo, claro, de investigações que devem ser feitas pela Polícia Militar, em âmbito interno e disciplinar, uma vez que esses acontecimentos também podem envolver crime militar. Cada um no seu papel.

A decisão da Justiça Militar ficou em vigor por um ano. Isso impactou o trabalho do MP em casos de letalidade policial?

Apesar de ter ficado vigente, o habeas corpus não foi posto em prática no dia a dia e a Polícia Civil acabou intervindo na maioria dos casos. No fundo, nem na própria Polícia Militar havia unanimidade em relação à medida. É bom pontuar que, em caso de morte decorrente de intervenção policial, a apuração da prova é muito complicada. Normalmente, ela se dá sem testemunha e em horários pouco usuais. A gente tem procurado designar promotores para acompanhar os casos desde o início e não conseguimos detectar prejuízo claro em relação aos efeitos do habeas corpus.

No recurso contra a medida, o MP chegou a dizer que liberar apreensão por PMs poderia causar “inegável prejuízo às investigações de casos graves no Estado de São Paulo”.

Não vejo por essa perspectiva. A gente não pode fazer juízo de valor e falar: “Se a investigação ficar com PM, vai gerar impunidade”. Sendo muito franco, quando havia crimes cometidos por militares, muitas vezes eu pedia a investigação da Corregedoria da PM para complementar a investigação da Polícia Civil. A gente tem de olhar a questão pelo prisma correto, que é a lei. Pela legislação, a morte decorrente de intervenção policial é um crime da Justiça comum - e não da Militar.

Caso a ação prosperasse, a gente não estaria discutindo, no fim das contas, que os julgamentos desses crimes contra a vida deveriam voltar para a Justiça Militar?

Sem dúvida alguma, mas acontece que a lei determina júri popular. A gente só tem de tomar cuidado para não gerar a interpretação de que, se o julgamento fosse para a Justiça Militar, geraria impunidade. A experiência mostra que nem sempre isso é verdade. Muitas vezes, o júri popular absolve o PM. A gente tem visto isso acontecer com frequência. Depende da prova, do contexto, por isso não faço juízo sob o prisma da corporação. Insisto: é uma questão de lei e não de corporativismo.

Quando o sr. era subprocurador, atuou no caso do Carandiru, que vai completar 30 anos e é um dos mais emblemáticos. Os PMs foram condenados no júri, mas a sentença foi anulada depois, na segunda instância, pelo TJ. Também aconteceu na chacina de Osasco e Barueri, conhecida como “a maior de São Paulo”.

Eu acredito no Tribunal do Júri e no sistema de Justiça. O Brasil envolve variáveis e, muitas vezes, a gente não alcança aquele resultado que a sociedade pretende. Isso envolve todo um sistema de apuração de provas capaz de construir um arcabouço probatório que leve à condenação. Há muita deficiência. Existe um déficit enorme de investigadores e peritos por conta da eterna crise que vivemos. As instituições tentam crescer, mas convivem com índice de miserabilidade muito grande no País e os investimentos não podem ser os desejados. Quando o sistema vai ser eficiente? Quando as instituições puderem se fortalecer. E incluo até o Ministério Público de São Paulo, que hoje tem um déficit de 200 membros. Isso significa cerca de 10% a menos da força de trabalho.

Para o sr., o principal problema está na fase de investigação?

A solução passa por incrementar, aparelhar e melhorar as condições de trabalho daqueles que são incumbidos de apurar os crimes. Não há mão de obra suficiente. E é um problema histórico, não de hoje. O déficit acaba prejudicando os resultados. No sistema de justiça democrático, em que há ampla defesa e direito ao contraditório, isso acaba gerando brechas que permitem absolvições indesejadas.

No Carandiru, o júri popular condenou os réus. A sentença foi anulada porque, depois disso, o TJ rejeitou a tese de que os PMs teriam “concorrido” para que as mortes acontecessem, sem individualizar a conduta de cada policial.

O Carandiru é uma questão de tese. Na verdade, a denúncia do MP adota uma diretriz que não foi acatada no TJ e a gente recorreu ao STJ, que mandou voltar. Ou seja, continuamos fazendo nosso trabalho. É importante pontuar que não há omissão das instituições. Evidentemente, fica a impressão de que o sistema de Justiça não funciona, mas não é verdade. Essas discussões são normais em um País que ainda se adapta a um processo penal democrático, com contraditório, ampla defesa e o velho problema do sistema processual que leva a quatro instâncias: o júri, o TJ, o STJ e o Supremo. Nesse sentido, precisamos de uma reforma corajosa que faça com que a maioria dos casos termine no 2º grau.

Em julho, o MP ofereceu denúncia contra 12 policiais no caso de Paraisópolis, quando nove pessoas morreram pisoteadas durante uma operação. A promotoria vê “homicídio com dolo eventual”, que é uma interpretação mais dura comparada à da Polícia Civil, que havia indiciado os agentes por “homicídio culposo”. Por quê?

O MP tem de trabalhar sempre com os indícios. No momento de condenar, a dúvida deve contar a favor do réu. Mas, na hora de acusar, deve ser pela sociedade. A interpretação dos colegas (promotores) é que havia indícios de dolo eventual, não há outro contexto a não ser a prova dos autos e o que diz o Código de Processo Penal. Com o andamento do processo, vai se chegar a um resultado. A conclusão pode ser o que diz o MP ou pode ser de homicídio culposo.

A diferença entre homicídio culposo ou com dolo eventual é uma nuance jurídica, nem todo mundo entende. Para conseguir a condenação dos réus, é mais fácil trabalhar a tese em um júri popular ou com um juiz togado?

Com juiz togado, mas essa é uma opinião particular. Notadamente em contexto que envolve PMs, pode ser mais difícil levar aos jurados porque a diferença é muito sutil e fica difícil de identificar em caso concreto. O sistema de Justiça é complexo.

Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo Foto: Marcelo Chello/Estadão

Chefe do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), órgão responsável por fazer o controle externo das polícias, Mário Luiz Sarrubbo acredita que o Estado está na contramão do Brasil e, após bater recorde no ano passado, vive agora um cenário de queda sustentada da violência policial: “Com as câmeras corporais, deve melhorar ainda mais”.

Em entrevista exclusiva ao Estadão, o procurador-geral de Justiça afirma que políticas de controle devem levar em conta quem são as vítimas e que o racismo estrutural precisa ser enfrentado no País. “Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo”, analisa. “Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.”

Sarrubbo também critica o armamento da população e atribui a maior circulação de armas a mais confrontos. Para o procurador-geral, a falta de policiais prejudica a qualidade das investigações e complexidades do sistema de Justiça contribuem para a sensação de impunidade no Brasil. No caso de Paraisópolis, em que recentemente a promotoria ofereceu denúncia contra 12 PMs por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar), ele avalia que seria mais fácil conseguir condenação com um juiz togado - e não por júri popular.

Com a escalada de discursos autoritários e de ataques ao sistema eleitoral pelo governo Jair Bolsonaro, o representante do MP diz não ver risco de as tropas de São Paulo aderirem a um possível golpe. “Esse envolvimento de corporações, tenho certeza, não acontecerá”, afirma. “Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá.”

São Paulo bateu recorde de mortes decorrentes de ações policiais no 1º semestre do ano passado. Já neste ano, a letalidade caiu 33%. A gente está falando de queda sustentada ou de um comportamento estatístico constatado porque o patamar anterior era muito alto?

Embora o contexto nacional seja outro, de incentivo à violência, a PM de São Paulo está fazendo uma série de trabalhos internos para conter a letalidade. É a maior instituição policial do Brasil, com cerca de 80 mil homens, então veja a dificuldade de construir isso. O Ministério Público também faz trabalho envolvendo redes de proteção, identifica focos de violência, leva casos para a polícia e designa promotores para acompanhar eventuais abusos. Tudo isso, em algum momento, tem de refletir nos números. A nossa perspectiva é que seja uma queda sustentada. Com as câmeras corporais agora, deve melhorar ainda mais.

Se é resultado de um trabalho contínuo, o que aconteceu no ano passado? Vale lembrar que era o início da pandemia, quando comércios fecharam, as pessoas ficaram mais em casa e houve queda no registro de roubos, o motivo mais alegado para justificar os confrontos. 

É muito difícil fazer um diagnóstico. Há um contexto: o Brasil vinha de um momento em que as armas de fogo eram recolhidas da população e, com o governo Bolsonaro, passaram a ser devolvidas. A polícia evidentemente teve mais confronto porque há mais armas circulando. Podem dizer: “Mas já não havia arma por causa do tráfico?”.  Hoje tem mais ainda. Qualquer cidadão tem acesso e, por certo, essa arma vai cair em mãos inadequadas. Isso é muito ruim, porque nos leva ao aumento de confrontos e consequentemente de mortes. É só isso? Não, é um contexto genérico que pode ser um indutor do aumento.

A instalação de câmeras corporais que gravam policiais em atividade é uma das principais ações citadas pelo governador de São Paulo, João Doria. Conhecida por confrontos, a Rota registrou letalidade zero em maio. Quais outras iniciativas devem ser implementadas?

O Ministério Público vem trabalhando o tema da letalidade há muito tempo, trazendo a PM para o debate e conhecendo programas da corporação para diminuir os índices. Não é só a bodycam. Há grandes mitos de que a PM é treinada para matar, isso não existe. Os policiais têm programas de profissionalização e de direitos humanos. Se há resultado melhor hoje, com certeza é em função do trabalho de alguns anos, méritos da própria instituição e da sociedade.

As câmeras são muito positivas para o combate à criminalidade e para o próprio PM. À medida que as imagens podem ser usadas como prova dos processos, a verdade sempre vai aparecer. Isso também protege o policial: se ele alega que um sujeito estava com droga ou agredindo alguém, a bodycam vai servir para confirmar a tese.

Policiais militares do Estado de São Paulo Foto: Hélvio Romero/Estadão

No ano passado, o STF proibiu que a polícia do Rio realizasse operações em favelas durante a pandemia. Desde então, houve um recuo considerável de casos de mortes de civis. Como o sr. enxerga a atuação de outras instituições no sistema de controle da violência?

O desejável é sempre uma letalidade muito baixa. A Justiça procura atuar dentro do sistema de freios e contrapesos. O Supremo exerceu seu papel de consagrar a Constituição, a dignidade humana e deu um parâmetro. Isso baixou o número de mortes, então talvez pode ser uma diretriz que indique um caminho. Mas essa análise é muito complexa na medida em que o crime acontece em todos os segmentos da sociedade, não só na favela. No Rio, acontece também na Vieira Souto ou na Barra da Tijuca. Precisamos achar um ponto de equilíbrio para alcançar não só o criminoso de baixa renda, mas também o de colarinho branco.

Em se tratando de letalidade policial, diferentes dados e pesquisas realizadas no Brasil apontam que há um padrão de mortos: homens, jovens e negros. Nesse caso, não é importante focar no perfil da vítima?

Sem dúvida. Na verdade, o Brasil ainda vive um racismo estrutural muito grande. É injusto imputar isso só à polícia ou ao sistema de Justiça. Temos de olhar para a sociedade como um todo. O que vou falar é chover no molhado: o racismo estrutural é grave, remonta à escravidão, à população negra que foi simplesmente jogada, sem direito a nada. Até hoje nenhum governo - de esquerda, direita ou centro - conseguiu superar o problema. Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.

O racismo estrutural reflete na atividade policial?

O racismo estrutural impacta em tudo, mas no final acaba refletindo nesse índice de mortes. Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Até porque boa parte das corporações é formada por negros. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo. Quantos negros temos no Congresso Nacional? Quantos negros temos no STJ (Superior Tribunal de Justiça)? E no Supremo? É sempre a minoria. Isso tudo acaba refletindo no número de mortes.

Imagens de câmera corporal de policial mostram atuação durante ocorrência no mês de junho Foto: PM-SP

Em 2018, o Brasil elegeu um presidente que defende ampliar excludentes de ilicitude e apoia publicamente operações que resultam em morte. Além disso, foram eleitos governadores com discurso de que “a polícia vai atirar na cabecinha” ou que prometiam “contratar os melhores advogados” para policiais. Em 2020, a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, impulsionou um debate mundial sobre a violência das polícias. No Brasil, houve uma série de manifestações após casos recentes. Qual é o ambiente atual para discutir controle policial?

A gente vive um movimento pendular no mundo. Em alguns países, há muita polarização. Daí, a importância de instituições independentes, como o Ministério Público e o Judiciário, para fazer o contraponto e trazer equilíbrio para a vida em sociedade. Não podemos nos desencumbir do papel de controle externo. Particularmente, sou contra o armamento da população e não vejo necessidade alguma de se criar excludente de ilicitude, porque os problemas da violência no Brasil são outros. A gente precisa buscar uma polícia cada vez mais republicana e cidadã, além de um Estado que consiga oferecer segurança pública.

O comportamento de políticos e gestores públicos tem impacto na postura da polícia na rua?

Eu prefiro ficar sempre com a Constituição. Forças policiais e o Estado têm de cumprir seu papel: a manutenção da vida de quem quer que seja. Principalmente da vítima, mas também do criminoso. Intervenção policial que termina em morte não é motivo para comemoração.

Em Pernambuco, uma crise na cúpula da segurança foi exposta após manifestações contra o presidente Bolsonaro serem reprimidas pela polícia. O Ceará também testemunhou motim em 2020, que pesquisadores associam a um aumento desenfreado de homicídios. Quais razões existem para acreditar que São Paulo não corre risco de passar por algo semelhante?

Volto a insistir que o trabalho de profissionalização das polícias de São Paulo é de longa data. Não creio que a tropa tenha qualquer viés ideológico, mas sim profissional, de combate ao crime. Essas coisas não podem acontecer. Se houver, vai ser apurado. Agora, é óbvio que a gente está falando de uma instituição com 80 mil pessoas. É muita gente, então você pode ver um caso aqui ou ali. Mas posso assegurar que não há um viés de comando.

Bolsonaro tem subido o tom contra o sistema eleitoral e isso também provoca manifestações sobre riscos de ruptura institucional no Brasil. Em caso de golpe, há chance de as tropas aderirem?

Na segunda-feira, o Ministério Público lançou uma nota ressaltando a importância do sistema democrático e das instituições no Brasil. Eu sou entusiasta das instituições. Creio que elas não faltarão ao País e não haverá ruptura. Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá, não obstante a existência de algumas falas que nós consideramos que não deveriam acontecer. Esse envolvimento de corporações (com rupturas), tenho certeza, não acontecerá.

Por ser o órgão de controle externo das polícias e responsável por oferecer denúncias criminais à Justiça, o MP talvez tenha a imagem muito associada a punições. Em São Paulo, o que tem sido pensado para prevenção da violência e garantia do bom funcionamento das corporações?

Entendemos que não basta falar em combate à criminalidade. Não basta uma ação do Gaeco contra o tráfico em determinado bairro. A gente precisa entrar lá também com a promotoria de Direitos Humanos, de Saúde, de Educação. A prevenção envolve conferir aos cidadãos os direitos que estão previstos na Constituição Federal. É claro que a violência está entre as principais pautas da sociedade, mas não trabalhamos com olhar único. A violência resulta da falta de cidadania, da ausência do Estado, da desigualdade social. Então nosso papel vai muito além de pedir a pena máxima para condenar um réu.

Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo Foto: Marcelo Chello/Estadão

Um habeas corpus coletivo, concedido pela Justiça Militar em julho de 2020, autorizava a PM a recolher materiais em cenas de mortes de civis. Essa decisão foi cassada pelo corregedor do TJ-SP na semana passada. Como o sr. avalia a questão?

A decisão do Tribunal de Justiça está correta. Não se trata de uma questão institucional, mas de legislação. O sistema legal é muito claro. O papel de apreender objetos e armas, fazer o levantamento do local e investigar o crime é da polícia judiciária. Ou seja, da Polícia Civil. Sem prejuízo, claro, de investigações que devem ser feitas pela Polícia Militar, em âmbito interno e disciplinar, uma vez que esses acontecimentos também podem envolver crime militar. Cada um no seu papel.

A decisão da Justiça Militar ficou em vigor por um ano. Isso impactou o trabalho do MP em casos de letalidade policial?

Apesar de ter ficado vigente, o habeas corpus não foi posto em prática no dia a dia e a Polícia Civil acabou intervindo na maioria dos casos. No fundo, nem na própria Polícia Militar havia unanimidade em relação à medida. É bom pontuar que, em caso de morte decorrente de intervenção policial, a apuração da prova é muito complicada. Normalmente, ela se dá sem testemunha e em horários pouco usuais. A gente tem procurado designar promotores para acompanhar os casos desde o início e não conseguimos detectar prejuízo claro em relação aos efeitos do habeas corpus.

No recurso contra a medida, o MP chegou a dizer que liberar apreensão por PMs poderia causar “inegável prejuízo às investigações de casos graves no Estado de São Paulo”.

Não vejo por essa perspectiva. A gente não pode fazer juízo de valor e falar: “Se a investigação ficar com PM, vai gerar impunidade”. Sendo muito franco, quando havia crimes cometidos por militares, muitas vezes eu pedia a investigação da Corregedoria da PM para complementar a investigação da Polícia Civil. A gente tem de olhar a questão pelo prisma correto, que é a lei. Pela legislação, a morte decorrente de intervenção policial é um crime da Justiça comum - e não da Militar.

Caso a ação prosperasse, a gente não estaria discutindo, no fim das contas, que os julgamentos desses crimes contra a vida deveriam voltar para a Justiça Militar?

Sem dúvida alguma, mas acontece que a lei determina júri popular. A gente só tem de tomar cuidado para não gerar a interpretação de que, se o julgamento fosse para a Justiça Militar, geraria impunidade. A experiência mostra que nem sempre isso é verdade. Muitas vezes, o júri popular absolve o PM. A gente tem visto isso acontecer com frequência. Depende da prova, do contexto, por isso não faço juízo sob o prisma da corporação. Insisto: é uma questão de lei e não de corporativismo.

Quando o sr. era subprocurador, atuou no caso do Carandiru, que vai completar 30 anos e é um dos mais emblemáticos. Os PMs foram condenados no júri, mas a sentença foi anulada depois, na segunda instância, pelo TJ. Também aconteceu na chacina de Osasco e Barueri, conhecida como “a maior de São Paulo”.

Eu acredito no Tribunal do Júri e no sistema de Justiça. O Brasil envolve variáveis e, muitas vezes, a gente não alcança aquele resultado que a sociedade pretende. Isso envolve todo um sistema de apuração de provas capaz de construir um arcabouço probatório que leve à condenação. Há muita deficiência. Existe um déficit enorme de investigadores e peritos por conta da eterna crise que vivemos. As instituições tentam crescer, mas convivem com índice de miserabilidade muito grande no País e os investimentos não podem ser os desejados. Quando o sistema vai ser eficiente? Quando as instituições puderem se fortalecer. E incluo até o Ministério Público de São Paulo, que hoje tem um déficit de 200 membros. Isso significa cerca de 10% a menos da força de trabalho.

Para o sr., o principal problema está na fase de investigação?

A solução passa por incrementar, aparelhar e melhorar as condições de trabalho daqueles que são incumbidos de apurar os crimes. Não há mão de obra suficiente. E é um problema histórico, não de hoje. O déficit acaba prejudicando os resultados. No sistema de justiça democrático, em que há ampla defesa e direito ao contraditório, isso acaba gerando brechas que permitem absolvições indesejadas.

No Carandiru, o júri popular condenou os réus. A sentença foi anulada porque, depois disso, o TJ rejeitou a tese de que os PMs teriam “concorrido” para que as mortes acontecessem, sem individualizar a conduta de cada policial.

O Carandiru é uma questão de tese. Na verdade, a denúncia do MP adota uma diretriz que não foi acatada no TJ e a gente recorreu ao STJ, que mandou voltar. Ou seja, continuamos fazendo nosso trabalho. É importante pontuar que não há omissão das instituições. Evidentemente, fica a impressão de que o sistema de Justiça não funciona, mas não é verdade. Essas discussões são normais em um País que ainda se adapta a um processo penal democrático, com contraditório, ampla defesa e o velho problema do sistema processual que leva a quatro instâncias: o júri, o TJ, o STJ e o Supremo. Nesse sentido, precisamos de uma reforma corajosa que faça com que a maioria dos casos termine no 2º grau.

Em julho, o MP ofereceu denúncia contra 12 policiais no caso de Paraisópolis, quando nove pessoas morreram pisoteadas durante uma operação. A promotoria vê “homicídio com dolo eventual”, que é uma interpretação mais dura comparada à da Polícia Civil, que havia indiciado os agentes por “homicídio culposo”. Por quê?

O MP tem de trabalhar sempre com os indícios. No momento de condenar, a dúvida deve contar a favor do réu. Mas, na hora de acusar, deve ser pela sociedade. A interpretação dos colegas (promotores) é que havia indícios de dolo eventual, não há outro contexto a não ser a prova dos autos e o que diz o Código de Processo Penal. Com o andamento do processo, vai se chegar a um resultado. A conclusão pode ser o que diz o MP ou pode ser de homicídio culposo.

A diferença entre homicídio culposo ou com dolo eventual é uma nuance jurídica, nem todo mundo entende. Para conseguir a condenação dos réus, é mais fácil trabalhar a tese em um júri popular ou com um juiz togado?

Com juiz togado, mas essa é uma opinião particular. Notadamente em contexto que envolve PMs, pode ser mais difícil levar aos jurados porque a diferença é muito sutil e fica difícil de identificar em caso concreto. O sistema de Justiça é complexo.

Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo Foto: Marcelo Chello/Estadão

Chefe do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), órgão responsável por fazer o controle externo das polícias, Mário Luiz Sarrubbo acredita que o Estado está na contramão do Brasil e, após bater recorde no ano passado, vive agora um cenário de queda sustentada da violência policial: “Com as câmeras corporais, deve melhorar ainda mais”.

Em entrevista exclusiva ao Estadão, o procurador-geral de Justiça afirma que políticas de controle devem levar em conta quem são as vítimas e que o racismo estrutural precisa ser enfrentado no País. “Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo”, analisa. “Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.”

Sarrubbo também critica o armamento da população e atribui a maior circulação de armas a mais confrontos. Para o procurador-geral, a falta de policiais prejudica a qualidade das investigações e complexidades do sistema de Justiça contribuem para a sensação de impunidade no Brasil. No caso de Paraisópolis, em que recentemente a promotoria ofereceu denúncia contra 12 PMs por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar), ele avalia que seria mais fácil conseguir condenação com um juiz togado - e não por júri popular.

Com a escalada de discursos autoritários e de ataques ao sistema eleitoral pelo governo Jair Bolsonaro, o representante do MP diz não ver risco de as tropas de São Paulo aderirem a um possível golpe. “Esse envolvimento de corporações, tenho certeza, não acontecerá”, afirma. “Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá.”

São Paulo bateu recorde de mortes decorrentes de ações policiais no 1º semestre do ano passado. Já neste ano, a letalidade caiu 33%. A gente está falando de queda sustentada ou de um comportamento estatístico constatado porque o patamar anterior era muito alto?

Embora o contexto nacional seja outro, de incentivo à violência, a PM de São Paulo está fazendo uma série de trabalhos internos para conter a letalidade. É a maior instituição policial do Brasil, com cerca de 80 mil homens, então veja a dificuldade de construir isso. O Ministério Público também faz trabalho envolvendo redes de proteção, identifica focos de violência, leva casos para a polícia e designa promotores para acompanhar eventuais abusos. Tudo isso, em algum momento, tem de refletir nos números. A nossa perspectiva é que seja uma queda sustentada. Com as câmeras corporais agora, deve melhorar ainda mais.

Se é resultado de um trabalho contínuo, o que aconteceu no ano passado? Vale lembrar que era o início da pandemia, quando comércios fecharam, as pessoas ficaram mais em casa e houve queda no registro de roubos, o motivo mais alegado para justificar os confrontos. 

É muito difícil fazer um diagnóstico. Há um contexto: o Brasil vinha de um momento em que as armas de fogo eram recolhidas da população e, com o governo Bolsonaro, passaram a ser devolvidas. A polícia evidentemente teve mais confronto porque há mais armas circulando. Podem dizer: “Mas já não havia arma por causa do tráfico?”.  Hoje tem mais ainda. Qualquer cidadão tem acesso e, por certo, essa arma vai cair em mãos inadequadas. Isso é muito ruim, porque nos leva ao aumento de confrontos e consequentemente de mortes. É só isso? Não, é um contexto genérico que pode ser um indutor do aumento.

A instalação de câmeras corporais que gravam policiais em atividade é uma das principais ações citadas pelo governador de São Paulo, João Doria. Conhecida por confrontos, a Rota registrou letalidade zero em maio. Quais outras iniciativas devem ser implementadas?

O Ministério Público vem trabalhando o tema da letalidade há muito tempo, trazendo a PM para o debate e conhecendo programas da corporação para diminuir os índices. Não é só a bodycam. Há grandes mitos de que a PM é treinada para matar, isso não existe. Os policiais têm programas de profissionalização e de direitos humanos. Se há resultado melhor hoje, com certeza é em função do trabalho de alguns anos, méritos da própria instituição e da sociedade.

As câmeras são muito positivas para o combate à criminalidade e para o próprio PM. À medida que as imagens podem ser usadas como prova dos processos, a verdade sempre vai aparecer. Isso também protege o policial: se ele alega que um sujeito estava com droga ou agredindo alguém, a bodycam vai servir para confirmar a tese.

Policiais militares do Estado de São Paulo Foto: Hélvio Romero/Estadão

No ano passado, o STF proibiu que a polícia do Rio realizasse operações em favelas durante a pandemia. Desde então, houve um recuo considerável de casos de mortes de civis. Como o sr. enxerga a atuação de outras instituições no sistema de controle da violência?

O desejável é sempre uma letalidade muito baixa. A Justiça procura atuar dentro do sistema de freios e contrapesos. O Supremo exerceu seu papel de consagrar a Constituição, a dignidade humana e deu um parâmetro. Isso baixou o número de mortes, então talvez pode ser uma diretriz que indique um caminho. Mas essa análise é muito complexa na medida em que o crime acontece em todos os segmentos da sociedade, não só na favela. No Rio, acontece também na Vieira Souto ou na Barra da Tijuca. Precisamos achar um ponto de equilíbrio para alcançar não só o criminoso de baixa renda, mas também o de colarinho branco.

Em se tratando de letalidade policial, diferentes dados e pesquisas realizadas no Brasil apontam que há um padrão de mortos: homens, jovens e negros. Nesse caso, não é importante focar no perfil da vítima?

Sem dúvida. Na verdade, o Brasil ainda vive um racismo estrutural muito grande. É injusto imputar isso só à polícia ou ao sistema de Justiça. Temos de olhar para a sociedade como um todo. O que vou falar é chover no molhado: o racismo estrutural é grave, remonta à escravidão, à população negra que foi simplesmente jogada, sem direito a nada. Até hoje nenhum governo - de esquerda, direita ou centro - conseguiu superar o problema. Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.

O racismo estrutural reflete na atividade policial?

O racismo estrutural impacta em tudo, mas no final acaba refletindo nesse índice de mortes. Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Até porque boa parte das corporações é formada por negros. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo. Quantos negros temos no Congresso Nacional? Quantos negros temos no STJ (Superior Tribunal de Justiça)? E no Supremo? É sempre a minoria. Isso tudo acaba refletindo no número de mortes.

Imagens de câmera corporal de policial mostram atuação durante ocorrência no mês de junho Foto: PM-SP

Em 2018, o Brasil elegeu um presidente que defende ampliar excludentes de ilicitude e apoia publicamente operações que resultam em morte. Além disso, foram eleitos governadores com discurso de que “a polícia vai atirar na cabecinha” ou que prometiam “contratar os melhores advogados” para policiais. Em 2020, a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, impulsionou um debate mundial sobre a violência das polícias. No Brasil, houve uma série de manifestações após casos recentes. Qual é o ambiente atual para discutir controle policial?

A gente vive um movimento pendular no mundo. Em alguns países, há muita polarização. Daí, a importância de instituições independentes, como o Ministério Público e o Judiciário, para fazer o contraponto e trazer equilíbrio para a vida em sociedade. Não podemos nos desencumbir do papel de controle externo. Particularmente, sou contra o armamento da população e não vejo necessidade alguma de se criar excludente de ilicitude, porque os problemas da violência no Brasil são outros. A gente precisa buscar uma polícia cada vez mais republicana e cidadã, além de um Estado que consiga oferecer segurança pública.

O comportamento de políticos e gestores públicos tem impacto na postura da polícia na rua?

Eu prefiro ficar sempre com a Constituição. Forças policiais e o Estado têm de cumprir seu papel: a manutenção da vida de quem quer que seja. Principalmente da vítima, mas também do criminoso. Intervenção policial que termina em morte não é motivo para comemoração.

Em Pernambuco, uma crise na cúpula da segurança foi exposta após manifestações contra o presidente Bolsonaro serem reprimidas pela polícia. O Ceará também testemunhou motim em 2020, que pesquisadores associam a um aumento desenfreado de homicídios. Quais razões existem para acreditar que São Paulo não corre risco de passar por algo semelhante?

Volto a insistir que o trabalho de profissionalização das polícias de São Paulo é de longa data. Não creio que a tropa tenha qualquer viés ideológico, mas sim profissional, de combate ao crime. Essas coisas não podem acontecer. Se houver, vai ser apurado. Agora, é óbvio que a gente está falando de uma instituição com 80 mil pessoas. É muita gente, então você pode ver um caso aqui ou ali. Mas posso assegurar que não há um viés de comando.

Bolsonaro tem subido o tom contra o sistema eleitoral e isso também provoca manifestações sobre riscos de ruptura institucional no Brasil. Em caso de golpe, há chance de as tropas aderirem?

Na segunda-feira, o Ministério Público lançou uma nota ressaltando a importância do sistema democrático e das instituições no Brasil. Eu sou entusiasta das instituições. Creio que elas não faltarão ao País e não haverá ruptura. Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá, não obstante a existência de algumas falas que nós consideramos que não deveriam acontecer. Esse envolvimento de corporações (com rupturas), tenho certeza, não acontecerá.

Por ser o órgão de controle externo das polícias e responsável por oferecer denúncias criminais à Justiça, o MP talvez tenha a imagem muito associada a punições. Em São Paulo, o que tem sido pensado para prevenção da violência e garantia do bom funcionamento das corporações?

Entendemos que não basta falar em combate à criminalidade. Não basta uma ação do Gaeco contra o tráfico em determinado bairro. A gente precisa entrar lá também com a promotoria de Direitos Humanos, de Saúde, de Educação. A prevenção envolve conferir aos cidadãos os direitos que estão previstos na Constituição Federal. É claro que a violência está entre as principais pautas da sociedade, mas não trabalhamos com olhar único. A violência resulta da falta de cidadania, da ausência do Estado, da desigualdade social. Então nosso papel vai muito além de pedir a pena máxima para condenar um réu.

Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo Foto: Marcelo Chello/Estadão

Um habeas corpus coletivo, concedido pela Justiça Militar em julho de 2020, autorizava a PM a recolher materiais em cenas de mortes de civis. Essa decisão foi cassada pelo corregedor do TJ-SP na semana passada. Como o sr. avalia a questão?

A decisão do Tribunal de Justiça está correta. Não se trata de uma questão institucional, mas de legislação. O sistema legal é muito claro. O papel de apreender objetos e armas, fazer o levantamento do local e investigar o crime é da polícia judiciária. Ou seja, da Polícia Civil. Sem prejuízo, claro, de investigações que devem ser feitas pela Polícia Militar, em âmbito interno e disciplinar, uma vez que esses acontecimentos também podem envolver crime militar. Cada um no seu papel.

A decisão da Justiça Militar ficou em vigor por um ano. Isso impactou o trabalho do MP em casos de letalidade policial?

Apesar de ter ficado vigente, o habeas corpus não foi posto em prática no dia a dia e a Polícia Civil acabou intervindo na maioria dos casos. No fundo, nem na própria Polícia Militar havia unanimidade em relação à medida. É bom pontuar que, em caso de morte decorrente de intervenção policial, a apuração da prova é muito complicada. Normalmente, ela se dá sem testemunha e em horários pouco usuais. A gente tem procurado designar promotores para acompanhar os casos desde o início e não conseguimos detectar prejuízo claro em relação aos efeitos do habeas corpus.

No recurso contra a medida, o MP chegou a dizer que liberar apreensão por PMs poderia causar “inegável prejuízo às investigações de casos graves no Estado de São Paulo”.

Não vejo por essa perspectiva. A gente não pode fazer juízo de valor e falar: “Se a investigação ficar com PM, vai gerar impunidade”. Sendo muito franco, quando havia crimes cometidos por militares, muitas vezes eu pedia a investigação da Corregedoria da PM para complementar a investigação da Polícia Civil. A gente tem de olhar a questão pelo prisma correto, que é a lei. Pela legislação, a morte decorrente de intervenção policial é um crime da Justiça comum - e não da Militar.

Caso a ação prosperasse, a gente não estaria discutindo, no fim das contas, que os julgamentos desses crimes contra a vida deveriam voltar para a Justiça Militar?

Sem dúvida alguma, mas acontece que a lei determina júri popular. A gente só tem de tomar cuidado para não gerar a interpretação de que, se o julgamento fosse para a Justiça Militar, geraria impunidade. A experiência mostra que nem sempre isso é verdade. Muitas vezes, o júri popular absolve o PM. A gente tem visto isso acontecer com frequência. Depende da prova, do contexto, por isso não faço juízo sob o prisma da corporação. Insisto: é uma questão de lei e não de corporativismo.

Quando o sr. era subprocurador, atuou no caso do Carandiru, que vai completar 30 anos e é um dos mais emblemáticos. Os PMs foram condenados no júri, mas a sentença foi anulada depois, na segunda instância, pelo TJ. Também aconteceu na chacina de Osasco e Barueri, conhecida como “a maior de São Paulo”.

Eu acredito no Tribunal do Júri e no sistema de Justiça. O Brasil envolve variáveis e, muitas vezes, a gente não alcança aquele resultado que a sociedade pretende. Isso envolve todo um sistema de apuração de provas capaz de construir um arcabouço probatório que leve à condenação. Há muita deficiência. Existe um déficit enorme de investigadores e peritos por conta da eterna crise que vivemos. As instituições tentam crescer, mas convivem com índice de miserabilidade muito grande no País e os investimentos não podem ser os desejados. Quando o sistema vai ser eficiente? Quando as instituições puderem se fortalecer. E incluo até o Ministério Público de São Paulo, que hoje tem um déficit de 200 membros. Isso significa cerca de 10% a menos da força de trabalho.

Para o sr., o principal problema está na fase de investigação?

A solução passa por incrementar, aparelhar e melhorar as condições de trabalho daqueles que são incumbidos de apurar os crimes. Não há mão de obra suficiente. E é um problema histórico, não de hoje. O déficit acaba prejudicando os resultados. No sistema de justiça democrático, em que há ampla defesa e direito ao contraditório, isso acaba gerando brechas que permitem absolvições indesejadas.

No Carandiru, o júri popular condenou os réus. A sentença foi anulada porque, depois disso, o TJ rejeitou a tese de que os PMs teriam “concorrido” para que as mortes acontecessem, sem individualizar a conduta de cada policial.

O Carandiru é uma questão de tese. Na verdade, a denúncia do MP adota uma diretriz que não foi acatada no TJ e a gente recorreu ao STJ, que mandou voltar. Ou seja, continuamos fazendo nosso trabalho. É importante pontuar que não há omissão das instituições. Evidentemente, fica a impressão de que o sistema de Justiça não funciona, mas não é verdade. Essas discussões são normais em um País que ainda se adapta a um processo penal democrático, com contraditório, ampla defesa e o velho problema do sistema processual que leva a quatro instâncias: o júri, o TJ, o STJ e o Supremo. Nesse sentido, precisamos de uma reforma corajosa que faça com que a maioria dos casos termine no 2º grau.

Em julho, o MP ofereceu denúncia contra 12 policiais no caso de Paraisópolis, quando nove pessoas morreram pisoteadas durante uma operação. A promotoria vê “homicídio com dolo eventual”, que é uma interpretação mais dura comparada à da Polícia Civil, que havia indiciado os agentes por “homicídio culposo”. Por quê?

O MP tem de trabalhar sempre com os indícios. No momento de condenar, a dúvida deve contar a favor do réu. Mas, na hora de acusar, deve ser pela sociedade. A interpretação dos colegas (promotores) é que havia indícios de dolo eventual, não há outro contexto a não ser a prova dos autos e o que diz o Código de Processo Penal. Com o andamento do processo, vai se chegar a um resultado. A conclusão pode ser o que diz o MP ou pode ser de homicídio culposo.

A diferença entre homicídio culposo ou com dolo eventual é uma nuance jurídica, nem todo mundo entende. Para conseguir a condenação dos réus, é mais fácil trabalhar a tese em um júri popular ou com um juiz togado?

Com juiz togado, mas essa é uma opinião particular. Notadamente em contexto que envolve PMs, pode ser mais difícil levar aos jurados porque a diferença é muito sutil e fica difícil de identificar em caso concreto. O sistema de Justiça é complexo.

Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo Foto: Marcelo Chello/Estadão

Chefe do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), órgão responsável por fazer o controle externo das polícias, Mário Luiz Sarrubbo acredita que o Estado está na contramão do Brasil e, após bater recorde no ano passado, vive agora um cenário de queda sustentada da violência policial: “Com as câmeras corporais, deve melhorar ainda mais”.

Em entrevista exclusiva ao Estadão, o procurador-geral de Justiça afirma que políticas de controle devem levar em conta quem são as vítimas e que o racismo estrutural precisa ser enfrentado no País. “Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo”, analisa. “Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.”

Sarrubbo também critica o armamento da população e atribui a maior circulação de armas a mais confrontos. Para o procurador-geral, a falta de policiais prejudica a qualidade das investigações e complexidades do sistema de Justiça contribuem para a sensação de impunidade no Brasil. No caso de Paraisópolis, em que recentemente a promotoria ofereceu denúncia contra 12 PMs por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar), ele avalia que seria mais fácil conseguir condenação com um juiz togado - e não por júri popular.

Com a escalada de discursos autoritários e de ataques ao sistema eleitoral pelo governo Jair Bolsonaro, o representante do MP diz não ver risco de as tropas de São Paulo aderirem a um possível golpe. “Esse envolvimento de corporações, tenho certeza, não acontecerá”, afirma. “Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá.”

São Paulo bateu recorde de mortes decorrentes de ações policiais no 1º semestre do ano passado. Já neste ano, a letalidade caiu 33%. A gente está falando de queda sustentada ou de um comportamento estatístico constatado porque o patamar anterior era muito alto?

Embora o contexto nacional seja outro, de incentivo à violência, a PM de São Paulo está fazendo uma série de trabalhos internos para conter a letalidade. É a maior instituição policial do Brasil, com cerca de 80 mil homens, então veja a dificuldade de construir isso. O Ministério Público também faz trabalho envolvendo redes de proteção, identifica focos de violência, leva casos para a polícia e designa promotores para acompanhar eventuais abusos. Tudo isso, em algum momento, tem de refletir nos números. A nossa perspectiva é que seja uma queda sustentada. Com as câmeras corporais agora, deve melhorar ainda mais.

Se é resultado de um trabalho contínuo, o que aconteceu no ano passado? Vale lembrar que era o início da pandemia, quando comércios fecharam, as pessoas ficaram mais em casa e houve queda no registro de roubos, o motivo mais alegado para justificar os confrontos. 

É muito difícil fazer um diagnóstico. Há um contexto: o Brasil vinha de um momento em que as armas de fogo eram recolhidas da população e, com o governo Bolsonaro, passaram a ser devolvidas. A polícia evidentemente teve mais confronto porque há mais armas circulando. Podem dizer: “Mas já não havia arma por causa do tráfico?”.  Hoje tem mais ainda. Qualquer cidadão tem acesso e, por certo, essa arma vai cair em mãos inadequadas. Isso é muito ruim, porque nos leva ao aumento de confrontos e consequentemente de mortes. É só isso? Não, é um contexto genérico que pode ser um indutor do aumento.

A instalação de câmeras corporais que gravam policiais em atividade é uma das principais ações citadas pelo governador de São Paulo, João Doria. Conhecida por confrontos, a Rota registrou letalidade zero em maio. Quais outras iniciativas devem ser implementadas?

O Ministério Público vem trabalhando o tema da letalidade há muito tempo, trazendo a PM para o debate e conhecendo programas da corporação para diminuir os índices. Não é só a bodycam. Há grandes mitos de que a PM é treinada para matar, isso não existe. Os policiais têm programas de profissionalização e de direitos humanos. Se há resultado melhor hoje, com certeza é em função do trabalho de alguns anos, méritos da própria instituição e da sociedade.

As câmeras são muito positivas para o combate à criminalidade e para o próprio PM. À medida que as imagens podem ser usadas como prova dos processos, a verdade sempre vai aparecer. Isso também protege o policial: se ele alega que um sujeito estava com droga ou agredindo alguém, a bodycam vai servir para confirmar a tese.

Policiais militares do Estado de São Paulo Foto: Hélvio Romero/Estadão

No ano passado, o STF proibiu que a polícia do Rio realizasse operações em favelas durante a pandemia. Desde então, houve um recuo considerável de casos de mortes de civis. Como o sr. enxerga a atuação de outras instituições no sistema de controle da violência?

O desejável é sempre uma letalidade muito baixa. A Justiça procura atuar dentro do sistema de freios e contrapesos. O Supremo exerceu seu papel de consagrar a Constituição, a dignidade humana e deu um parâmetro. Isso baixou o número de mortes, então talvez pode ser uma diretriz que indique um caminho. Mas essa análise é muito complexa na medida em que o crime acontece em todos os segmentos da sociedade, não só na favela. No Rio, acontece também na Vieira Souto ou na Barra da Tijuca. Precisamos achar um ponto de equilíbrio para alcançar não só o criminoso de baixa renda, mas também o de colarinho branco.

Em se tratando de letalidade policial, diferentes dados e pesquisas realizadas no Brasil apontam que há um padrão de mortos: homens, jovens e negros. Nesse caso, não é importante focar no perfil da vítima?

Sem dúvida. Na verdade, o Brasil ainda vive um racismo estrutural muito grande. É injusto imputar isso só à polícia ou ao sistema de Justiça. Temos de olhar para a sociedade como um todo. O que vou falar é chover no molhado: o racismo estrutural é grave, remonta à escravidão, à população negra que foi simplesmente jogada, sem direito a nada. Até hoje nenhum governo - de esquerda, direita ou centro - conseguiu superar o problema. Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.

O racismo estrutural reflete na atividade policial?

O racismo estrutural impacta em tudo, mas no final acaba refletindo nesse índice de mortes. Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Até porque boa parte das corporações é formada por negros. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo. Quantos negros temos no Congresso Nacional? Quantos negros temos no STJ (Superior Tribunal de Justiça)? E no Supremo? É sempre a minoria. Isso tudo acaba refletindo no número de mortes.

Imagens de câmera corporal de policial mostram atuação durante ocorrência no mês de junho Foto: PM-SP

Em 2018, o Brasil elegeu um presidente que defende ampliar excludentes de ilicitude e apoia publicamente operações que resultam em morte. Além disso, foram eleitos governadores com discurso de que “a polícia vai atirar na cabecinha” ou que prometiam “contratar os melhores advogados” para policiais. Em 2020, a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, impulsionou um debate mundial sobre a violência das polícias. No Brasil, houve uma série de manifestações após casos recentes. Qual é o ambiente atual para discutir controle policial?

A gente vive um movimento pendular no mundo. Em alguns países, há muita polarização. Daí, a importância de instituições independentes, como o Ministério Público e o Judiciário, para fazer o contraponto e trazer equilíbrio para a vida em sociedade. Não podemos nos desencumbir do papel de controle externo. Particularmente, sou contra o armamento da população e não vejo necessidade alguma de se criar excludente de ilicitude, porque os problemas da violência no Brasil são outros. A gente precisa buscar uma polícia cada vez mais republicana e cidadã, além de um Estado que consiga oferecer segurança pública.

O comportamento de políticos e gestores públicos tem impacto na postura da polícia na rua?

Eu prefiro ficar sempre com a Constituição. Forças policiais e o Estado têm de cumprir seu papel: a manutenção da vida de quem quer que seja. Principalmente da vítima, mas também do criminoso. Intervenção policial que termina em morte não é motivo para comemoração.

Em Pernambuco, uma crise na cúpula da segurança foi exposta após manifestações contra o presidente Bolsonaro serem reprimidas pela polícia. O Ceará também testemunhou motim em 2020, que pesquisadores associam a um aumento desenfreado de homicídios. Quais razões existem para acreditar que São Paulo não corre risco de passar por algo semelhante?

Volto a insistir que o trabalho de profissionalização das polícias de São Paulo é de longa data. Não creio que a tropa tenha qualquer viés ideológico, mas sim profissional, de combate ao crime. Essas coisas não podem acontecer. Se houver, vai ser apurado. Agora, é óbvio que a gente está falando de uma instituição com 80 mil pessoas. É muita gente, então você pode ver um caso aqui ou ali. Mas posso assegurar que não há um viés de comando.

Bolsonaro tem subido o tom contra o sistema eleitoral e isso também provoca manifestações sobre riscos de ruptura institucional no Brasil. Em caso de golpe, há chance de as tropas aderirem?

Na segunda-feira, o Ministério Público lançou uma nota ressaltando a importância do sistema democrático e das instituições no Brasil. Eu sou entusiasta das instituições. Creio que elas não faltarão ao País e não haverá ruptura. Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá, não obstante a existência de algumas falas que nós consideramos que não deveriam acontecer. Esse envolvimento de corporações (com rupturas), tenho certeza, não acontecerá.

Por ser o órgão de controle externo das polícias e responsável por oferecer denúncias criminais à Justiça, o MP talvez tenha a imagem muito associada a punições. Em São Paulo, o que tem sido pensado para prevenção da violência e garantia do bom funcionamento das corporações?

Entendemos que não basta falar em combate à criminalidade. Não basta uma ação do Gaeco contra o tráfico em determinado bairro. A gente precisa entrar lá também com a promotoria de Direitos Humanos, de Saúde, de Educação. A prevenção envolve conferir aos cidadãos os direitos que estão previstos na Constituição Federal. É claro que a violência está entre as principais pautas da sociedade, mas não trabalhamos com olhar único. A violência resulta da falta de cidadania, da ausência do Estado, da desigualdade social. Então nosso papel vai muito além de pedir a pena máxima para condenar um réu.

Procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo Foto: Marcelo Chello/Estadão

Um habeas corpus coletivo, concedido pela Justiça Militar em julho de 2020, autorizava a PM a recolher materiais em cenas de mortes de civis. Essa decisão foi cassada pelo corregedor do TJ-SP na semana passada. Como o sr. avalia a questão?

A decisão do Tribunal de Justiça está correta. Não se trata de uma questão institucional, mas de legislação. O sistema legal é muito claro. O papel de apreender objetos e armas, fazer o levantamento do local e investigar o crime é da polícia judiciária. Ou seja, da Polícia Civil. Sem prejuízo, claro, de investigações que devem ser feitas pela Polícia Militar, em âmbito interno e disciplinar, uma vez que esses acontecimentos também podem envolver crime militar. Cada um no seu papel.

A decisão da Justiça Militar ficou em vigor por um ano. Isso impactou o trabalho do MP em casos de letalidade policial?

Apesar de ter ficado vigente, o habeas corpus não foi posto em prática no dia a dia e a Polícia Civil acabou intervindo na maioria dos casos. No fundo, nem na própria Polícia Militar havia unanimidade em relação à medida. É bom pontuar que, em caso de morte decorrente de intervenção policial, a apuração da prova é muito complicada. Normalmente, ela se dá sem testemunha e em horários pouco usuais. A gente tem procurado designar promotores para acompanhar os casos desde o início e não conseguimos detectar prejuízo claro em relação aos efeitos do habeas corpus.

No recurso contra a medida, o MP chegou a dizer que liberar apreensão por PMs poderia causar “inegável prejuízo às investigações de casos graves no Estado de São Paulo”.

Não vejo por essa perspectiva. A gente não pode fazer juízo de valor e falar: “Se a investigação ficar com PM, vai gerar impunidade”. Sendo muito franco, quando havia crimes cometidos por militares, muitas vezes eu pedia a investigação da Corregedoria da PM para complementar a investigação da Polícia Civil. A gente tem de olhar a questão pelo prisma correto, que é a lei. Pela legislação, a morte decorrente de intervenção policial é um crime da Justiça comum - e não da Militar.

Caso a ação prosperasse, a gente não estaria discutindo, no fim das contas, que os julgamentos desses crimes contra a vida deveriam voltar para a Justiça Militar?

Sem dúvida alguma, mas acontece que a lei determina júri popular. A gente só tem de tomar cuidado para não gerar a interpretação de que, se o julgamento fosse para a Justiça Militar, geraria impunidade. A experiência mostra que nem sempre isso é verdade. Muitas vezes, o júri popular absolve o PM. A gente tem visto isso acontecer com frequência. Depende da prova, do contexto, por isso não faço juízo sob o prisma da corporação. Insisto: é uma questão de lei e não de corporativismo.

Quando o sr. era subprocurador, atuou no caso do Carandiru, que vai completar 30 anos e é um dos mais emblemáticos. Os PMs foram condenados no júri, mas a sentença foi anulada depois, na segunda instância, pelo TJ. Também aconteceu na chacina de Osasco e Barueri, conhecida como “a maior de São Paulo”.

Eu acredito no Tribunal do Júri e no sistema de Justiça. O Brasil envolve variáveis e, muitas vezes, a gente não alcança aquele resultado que a sociedade pretende. Isso envolve todo um sistema de apuração de provas capaz de construir um arcabouço probatório que leve à condenação. Há muita deficiência. Existe um déficit enorme de investigadores e peritos por conta da eterna crise que vivemos. As instituições tentam crescer, mas convivem com índice de miserabilidade muito grande no País e os investimentos não podem ser os desejados. Quando o sistema vai ser eficiente? Quando as instituições puderem se fortalecer. E incluo até o Ministério Público de São Paulo, que hoje tem um déficit de 200 membros. Isso significa cerca de 10% a menos da força de trabalho.

Para o sr., o principal problema está na fase de investigação?

A solução passa por incrementar, aparelhar e melhorar as condições de trabalho daqueles que são incumbidos de apurar os crimes. Não há mão de obra suficiente. E é um problema histórico, não de hoje. O déficit acaba prejudicando os resultados. No sistema de justiça democrático, em que há ampla defesa e direito ao contraditório, isso acaba gerando brechas que permitem absolvições indesejadas.

No Carandiru, o júri popular condenou os réus. A sentença foi anulada porque, depois disso, o TJ rejeitou a tese de que os PMs teriam “concorrido” para que as mortes acontecessem, sem individualizar a conduta de cada policial.

O Carandiru é uma questão de tese. Na verdade, a denúncia do MP adota uma diretriz que não foi acatada no TJ e a gente recorreu ao STJ, que mandou voltar. Ou seja, continuamos fazendo nosso trabalho. É importante pontuar que não há omissão das instituições. Evidentemente, fica a impressão de que o sistema de Justiça não funciona, mas não é verdade. Essas discussões são normais em um País que ainda se adapta a um processo penal democrático, com contraditório, ampla defesa e o velho problema do sistema processual que leva a quatro instâncias: o júri, o TJ, o STJ e o Supremo. Nesse sentido, precisamos de uma reforma corajosa que faça com que a maioria dos casos termine no 2º grau.

Em julho, o MP ofereceu denúncia contra 12 policiais no caso de Paraisópolis, quando nove pessoas morreram pisoteadas durante uma operação. A promotoria vê “homicídio com dolo eventual”, que é uma interpretação mais dura comparada à da Polícia Civil, que havia indiciado os agentes por “homicídio culposo”. Por quê?

O MP tem de trabalhar sempre com os indícios. No momento de condenar, a dúvida deve contar a favor do réu. Mas, na hora de acusar, deve ser pela sociedade. A interpretação dos colegas (promotores) é que havia indícios de dolo eventual, não há outro contexto a não ser a prova dos autos e o que diz o Código de Processo Penal. Com o andamento do processo, vai se chegar a um resultado. A conclusão pode ser o que diz o MP ou pode ser de homicídio culposo.

A diferença entre homicídio culposo ou com dolo eventual é uma nuance jurídica, nem todo mundo entende. Para conseguir a condenação dos réus, é mais fácil trabalhar a tese em um júri popular ou com um juiz togado?

Com juiz togado, mas essa é uma opinião particular. Notadamente em contexto que envolve PMs, pode ser mais difícil levar aos jurados porque a diferença é muito sutil e fica difícil de identificar em caso concreto. O sistema de Justiça é complexo.

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