Uma nova proposta incluída na revisão do Plano Diretor de São Paulo propõe repassar à iniciativa privada parte das obras públicas de habitação, mobilidade e drenagem. A mudança está na versão do projeto aprovada pelos vereadores em primeiro turno na quarta-feira, 31, e permite que as construtoras substituam o pagamento da chamada outorga onerosa, uma espécie de taxa pelo direito de construir, pela entrega dessas intervenções. Há possibilidade de até 10% de desconto no que seria pago na forma de taxa.
O trecho não estava no projeto de lei entregue pela gestão Ricardo Nunes (MDB) em março e foi incluído no substitutivo apresentado pelo relator da revisão, o vereador Rodrigo Goulart (PSD), na semana passada. O Plano Diretor passará por um total de oito audiências públicas e alterações no texto ao longo dos próximos dias. A versão final será apresentada em 19 de junho, com a apreciação definitiva da Câmara Municipal em 21 de junho.
Urbanistas ouvidos pelo Estadão avaliam que a mudança nos moldes propostos não prevê mecanismos que garantam uma execução de boa qualidade dos projetos. Além disso, apontam que resultará no enfraquecimento do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), fundo municipal voltado para obras públicas, que tem destinação definida pelo poder municipal em conjunto com um conselho gestor. O setor imobiliário fala na necessidade de ajustes para que a alternativa seja atrativa.
Já o relator do PL argumenta que a proposta trará agilidade para a entrega de obras públicas. “Querendo ou não, o privado é mais eficiente, mais rápido e não tem tanta burocracia para executar”, disse ao ser questionado pela imprensa antes da votação na Câmara. Além disso, para que o pagamento em obra não esvazie totalmente Fundurb, há um trava que limita essa aplicação à metade do total pago pelas construtoras no ano anterior. Isto é, quase R$ 500 milhões anuais poderiam ser aplicados diretamente pelas empresas em intervenções em áreas públicas.
Não há informações sobre os critérios que motivaram a inclusão da proposta no texto substitutivo. Um levantamento da Bancada Feminista do PSOL não identificou a origem da alteração ao levantar as contribuições apresentadas em consultas públicas virtuais, audiências e cartas entregues pelo setor privado. Ao Estadão, a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) e o Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo (Secovi-SP) responderam que não se trata de uma demanda apresentada pelo setor.
O novo trecho adicionado ao PL do Plano Diretor envolve a chamada outorga onerosa, taxa cobrada das empresas para erguer prédios com uma área construída maior do que a metragem do terreno . Essa variável vai de duas a quatro vezes a área do lote, a depender do zoneamento do local, sendo maior nas quadras próximas de metrô, trem e corredor de ônibus.
Em um empreendimento recente da Rua Francisco Leitão, em Pinheiros, por exemplo, foram pagos R$ 4,6 milhões para construir 6 mil m² em um terreno de 1,6 mil m². Com a mudança prevista no projeto, o incorporador poderia optar por “pagar” esse valor por meio da execução de uma obra de habitação, drenagem ou mobilidade, com desconto de até 10%, ou seja, de R$ 460 mil.
Segundo o PL, o “pagamento” em obra de habitação deverá ser em um terreno público escolhido a partir de uma lista feita pela Prefeitura. Além disso, os novos apartamentos deverão ser destinados pelo poder municipal para a população de baixa renda que vive hoje em áreas de risco. Também é apontado que uma regulamentação deverá ser realizada pelo Município. Não há, contudo, detalhes sobre os critérios para as obras de mobilidade e drenagem, tampouco informações sobre fiscalização.
“A exigência de contrapartidas financeiras por meio da execução de obras de mobilidade, drenagem e habitação contribui para o desenvolvimento de infraestrutura urbana adequada, beneficiando a população e melhorando a qualidade de vida. A priorização das áreas de risco e déficit habitacional no direcionamento das obras de habitação evidencia um compromisso social e a preocupação com a inclusão e segurança dos cidadãos”, argumentou Rodrigo Goulart no parecer da proposta.
O Fundurb é uma das principais fontes de recursos para algumas secretarias. O plano anual de aplicação deste ano envolve R$ 790,5 milhões, por exemplo, dos quais R$ 307,5 milhões para 37 obras de habitação, R$ 134,9 milhões para 96 obras de mobilidade, R$ 46,3 milhões para bibliotecas, teatros e outros espaços e atividades de cultura, R$ 114,3 milhões para subprefeituras, R$ 45,4 milhões para intervenções urbanas, R$ 11,7 milhões para a implantação de parques, R$ 20 milhões para reformas de espaços desportivos e R$ 110,1 mil para infraestrutura em geral.
A maior parte do recurso é obrigatoriamente destinada à habitação e mobilidade. Entre as obras previstas neste ano, estão a construção de um prédio para a população de baixa renda no terreno do antigo Edifício Wilton Paes de Almeida (atingido por um incêndio que deixou vítimas em 2018, no Largo do Paissandu), a criação de ciclovias e a implantação de acessibilidade para pessoas com deficiência em calçadas, por exemplo. O restante da arrecadação não utilizada fica guardado no fundo e não pode ser repassado para outras áreas, como saúde e educação.
Urbanistas apontam problemas e esvaziamento de fundo municipal
Desde a divulgação do novo texto do PL, o “pagamento” da outorga por meio de obra tem gerado críticas por uma parte dos especialistas. Um dos principais pontos é a falta de informações sobre os requisitos para a definição dos locais, tipos de obras e materiais empregados.
Professora do Insper, a urbanista Camila Maleronka destaca que São Paulo tem um histórico de iniciativas semelhantes que fracassaram. Em um caso na área da Operação Urbana Água Branca, por exemplo, a empresa decidiu “pagar em obra” com melhorias na rua do próprio empreendimento, o que ajudaria a valorizar o local. Além disso, foi à falência antes da entrega, o que deixou a execução final em um limbo jurídico, sem que pudesse ser entregue nem mesmo pela Prefeitura.
Outro exemplo negativo citado pela especialista é da “operação interligada”, dos anos 1980, na qual parte das moradias entregues tinham baixa qualidade construtiva e arquitetônica. “Em municípios pequenos, é uma alternativa boa. Na cidade de São Paulo, há um grau maior de complexidade”, compara.
Em resumo, a urbanista diz que a mudança tira a transparência da aplicação do fundo (definida junto ao conselho gestor), diminui o compromisso com o processo de decisão e não explica o cálculo que baseou a definição do possível desconto em até 10%. “Em vez de melhorar o fluxo, fazê-lo mais eficiente, entender o porquê da demora, fazem o contrário, trabalhando em uma coisa que não endereça a causa do problema.”
Pesquisador na ETH Zurique, diretor do instituto Zerocem e ex-presidente do IAB/SP, o urbanista Fernando Tulio Salva Rocha Franco salienta que o pagamento por obra envolve áreas que não são a expertise do setor imobiliário, como drenagem e mobilidade. Nesses casos, a provável aplicação envolveria uma subcontratação, o que dificulta a fiscalização e cobrança no caso de descumprimentos, por exemplo. “Com um desenho interessante, poderia ser uma solução. Do jeito que é colocado, abre muitas brechas para uma má gestão.”
Ele aponta que a mudança enfraqueceria o Fundurb tanto em recursos quanto no gerenciamento da aplicação, ainda mais porque o fundo funciona com lógica redistributiva. “Vários estudos mostram que se consegue arrecadar recursos das áreas ricas da cidade, onde tem maior aporte da produção imobiliária, e se reinveste em melhorias urbanísticas nas periferias”, diz.
Setor imobiliário fala em ajustes para mudança ser mais atrativa
A nova aplicação para os recursos da outorga não foi apresentada formalmente pelo setor imobiliário aos vereadores e à Prefeitura. Duas das principais organizações do setor, o Secovi-SP e a Abrainc avaliam que a proposta hoje tem potencial de atração limitado. Porém, fala-se em ajustes para torná-la mais vantajosa.
Vice-presidente do Secovi-SP, Claudio Bernardes avalia que a proposta é boa para a Prefeitura, mas “não é a melhor das alternativas” para as empresas do setor. “Não é expertise das incorporadoras realizar obra de drenagem. É muito mais complexo executar. O pagamento em dinheiro sai mais barato do que ir contratar uma empresa (terceirizada)”, exemplifica.
Para ele, o trecho não deixa claro se há desconto de fato se o pagamento for em obra. Além disso, não considera 10% suficientemente vantajoso. “É uma coisa que poderia ser interessante desde que tenha atratividade boa. Seria mais razoável, porque, às vezes, a Prefeitura não tem eficiência para realizar no prazo.”
Um exemplo de pagamento em obra já vigente é a chamada “cota de solidariedade”, criada em 2014, em que grandes empreendimentos (com mais de 20 mil m²) precisam destinar recursos para a construção de habitação para a baixa renda. A exigência tem a possibilidade de ser cumprida por meio da criação dessas unidades no próprio empreendimento ou na construção em outro lugar, porém a maioria (39 de um total de 63, até março) optou por depositar o valor equivalente no Fundurb.
Já a Abrainc retornou ao Estadão por escrito. Em resposta, afirmou que “é possível que as incorporadoras e construtoras encontrem vantagens nessa (nova) opção, mas vai depender de cada caso concreto”. “No entanto, a redução no custo da outorga onerosa (o possível desconto de até 10%) não deixa de ser um incentivo que pode eventualmente tornar essa opção atrativa, a despeito da experiência da cota de solidariedade, que não obteve adesão expressiva por parte das empresas.”
A associação também salientou estar à disposição para “contribuir com o debate técnico” sobre a proposta. Além disso, disse que “é saudável que o poder público busque alternativas para melhorar suas políticas públicas envolvendo todas as partes interessadas, incluindo o setor imobiliário, para contribuir com ideias e perspectivas construtivas”.
Líder da bancada do PT, o vereador Senival Moura — que votou favoravelmente ao novo PL do Plano Diretor em 1º turno — tem uma sugestão de emenda que prevê a retirada do trecho sobre o pagamento da outorga por meio da execução de obra. A proposta é apoiada por vereadores de oposição, mas não há definição se será acatada no texto final do projeto.
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