Sabores da África em SP: conheça o camaronês que aprendeu a cozinhar pelo telefone


O engenheiro eletrônico Rafferty Kamga faz sucesso com o restaurante Mama África, na zona leste, depois de aprender receitas com a família à distância

Por Gonçalo Junior
Atualização:

Quando chegou ao Brasil em 2004, Rafferty Kamga procurou alguma atividade relacionada à profissão de engenheiro eletrônico, que exercia em Camarões, seu país de origem. Ele abriu uma loja de eletroeletrônicos na rua Santa Ifigênia, região mais indicada de São Paulo para sua profissão. Mesmo com sua expertise e a localização propícia, o negócio não deu certo.

A alternativa que matutou foi abrir um restaurante, pois ele conhecia bem os pratos, sabores e temperos de Camarões. Mas havia um detalhe: ele não sabia cozinhar.

Os primeiros pratos que saíram da cozinha do restaurante Mama África foram o resultado de ligações diárias e troca de mensagens de texto com a mãe e as irmãs em 2016. Naquela época, os aplicativos de mensagens instantâneas, como o Whatsapp, ainda não haviam se popularizado.

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“Meu sonho sempre foi montar um restaurante para falar da minha cultura. Eu não sabia cozinhar. Não sabia nem fazer arroz. Ligava para minha família para perguntar como montar um prato. Elas diziam faz assim, coloca isso e fui aprendendo”, conta o chef Sam, como ficou conhecido. “Hoje eu faço com os olhos fechados”.

O chef Sam, do restaurante Mama África Labonne Boufem, transformou a gastronomia numa forma de integração ao País.  Foto: Alex Silva/Estadão

O chef precisou arregaçar as mangas – literalmente – porque não encontrou parceiros de negócio. “Pensei em ficar na área de marketing, conversar com os clientes. Não era para eu cozinhar. Era para outra pessoa cozinhar, mas ninguém quis. Ninguém dava valor. O começo foi muito difícil”, diz o chef. Quando ele diz a palavra “muito”, ele repete a vogal ‘u’ por vários segundos e ainda abre as mãos para ilustrar o tamanho das dificuldades.

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Quando fez a reforma do sobrado que fica no Tatuapé, zona leste da capital, o empresário ficou sem capital de giro. “Eu passava dois dias sem vender um prato”, conta. “Eu e minha mulher sentávamos no banco, olhando para a calçada e não entrava nenhum cliente”.

Desde o começo, ele administra o negócio e prepara os pratos ao lado da mulher, a brasileira Andréa. Eles se conheceram em São José do Rio Preto (SP) em sua primeira vez no País, em 2009, como turista, para conhecer o carnaval. O casal pensou em desistir várias vezes, mas faltou dinheiro até para encerrar o negócio. “Procurei mil reais para levar as coisas para São José do Rio Preto. Não achei. Eu ia desistir e fechar o restaurante”.

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Redes sociais permitiram virada de mesa no restaurante

A virada de mesa aconteceu a partir das redes sociais. “O Facebook me deu um voucher de 500 dólares (R$ 2500 reais no câmbio de hoje) para participar de um evento. Na semana que postei esse prato, eu vendi 10 unidades”.

Os primeiros pratos do restaurante Mama África Labonne Boufe foram preparados pelo chef Sam com o apoio da família, que ficou em Camarões. Foto: Alex Silva/Estadão
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O Mama África não oferece só a comida. Sam explica como cada ingrediente é chamado na África (ele fala português, inglês, francês e dialetos africanos), a origem dos temperos e até mesmo a melhor forma de manusear os alimentos. Ele diz que os pratos são africanos, mas com seu estilo. Um dos orgulhos do cardápio é o “Zumbadadeia”, prato que presta homenagem à mulher e leva espinafre, amendoim, castanha e camarão.

Um diferencial que não está no cardápio é a gargalhada do chef, que dá para ser ouvida do outro lado da rua. “Gastronomia é falar do meu povo e da minha cultura. Mama África é o pedaço da África em São Paulo. Da porta para dentro, você está na África; da porta para fora, você está no Brasil. Nem de Camarões, mas África”, afirma em tom solene, puxando as consoantes do francês.

Quando recebeu o Estadão, Sam decidiu fazer algo próprio, que surgisse na hora. Enquanto os perfumes sobem na cozinha apertada (como a maioria dos restaurantes), ele tira da geladeira o segredo da sua comida. Pede para a gente cheirar. É algo novo, difícil de explicar. “São temperos africanos que não existem aqui. Esse é o segredo”.

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Rafferty conta que já sofreu racismo em várias partes do mundo, até na África. “Na Argélia, os negros me chamavam de ‘africano’ e se diziam magrebinos”, conta. O Magreb, região do Noroeste da África, representa o extremo ocidental do mundo árabe, as modernas nações islâmicas da Argélia, Marrocos, Tunísia. “A discriminação entre brancos e negros existe em todo o mundo. Mas os negros têm de mostrar que existe amor entre eles. É preciso união para combater”.

O prato Zumbadadea, com camarão, espinafre e banana da terra, foi criado em homenagem a Andrea, mulher do chef Sam.  Foto: Alex Silva/Estadão

Em São Paulo, a experiência cultural em um restaurante africano fortalece o turismo afrocentrado, na opinião de Hubber Clemente, gestor executivo do Fórum São Paulo do Afroturismo. “Esses restaurantes são fundamentais para uma experiência de turismo afrocentrada. Eles resgatam a culinária dos nossos ancestrais e trazem sabores que fazem parte da nossa memória e de nossa história”, afirma.

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Afroturismo são as práticas de valorização, preservação e reconexão com a identidade e a história protagonizada por comunidades negras. A SPTuris (São Paulo Turismo) lançou 28 atrações que ressaltam o legado afro sobre as visões artísticas, religiosas e gastronômicas em São Paulo.

De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), existem cerca de 60 mil bares e restaurantes em São Paulo, mas não existem dados específicos dos estabelecimentos por tipo de gastronomia, como a africana.

Empreendedores negros atraem a atenção da iniciativa privada

A culinária africana está incorporada à cultura brasileira. Desde 1530, quando os povos negros começaram a ser trazidos à força no processo de escravização, diferentes ingredientes e sabores foram trazidos para cá. O empreendedorismo negro na gastronomia resgata, por exemplo, a herança das quituteiras, mulheres escravizadas que compravam suas alforrias e mantinham sua liberdade com a venda de quitutes no século XVII.

O chef Sam conta que na Bahia são comidos pratos africanos. Esse processo está registrado, por exemplo, nos versos de 1936 do compositor Ari Barroso (1903-1964) e que foram imortalizados por Dorival Caymmi: “No tabuleiro da baiana tem: Vatapá, Caruru, Munguzá…”.

Por outro lado, depois de 135 anos da abolição, o legado da escravidão para a população negra se mantém pela exclusão socioeconômica. São sinais dessa exclusão a baixa representatividade de gestores nas empresas, menor remuneração no mercado de trabalho formal, concentração na economia informal e desvantagens na hora de empreender.

A intersecção histórica entre empreendedorismo e a culinária negra chama a atenção da iniciativa privada. A empresa brasileira de tecnologia iFood criou um programa que oferece consultoria para melhorar o desempenho dos estabelecimentos no aplicativo, cursos de capacitação online e facilidades para a obtenção de crédito, com redução das taxas de empréstimo. Dos mais de 300 mil estabelecimentos cadastrados na plataforma no Brasil, a empresa estima que 40% sejam de empreendedores pretos e pardos.

A primeira etapa do programa, realizada em Salvador, contou com 237 empreendedores. Em São Paulo, a expectativa é atrair 300 empreendedores negros, além de mais 100 em uma vertente específica do programa voltada às comunidades – o projeto piloto será realizado em Heliópolis.

“O ecossistema do iFood gera cerca de 1 milhão de empregos. É uma amostragem importante da população ativa. Nesse contexto, nossas ações podem colaborar para reduzir as desigualdades causadas pelo racismo estrutural”, afirma Angel Vasconcelos, diretora de Equidade do iFood.

Para acelerar o empreendedorismo negro em vários mercados, o Fundo Baobá de Equidade Racial possui um eixo temático de atuação voltada ao desenvolvimento econômico. Um dos objetivos é apoiar iniciativas que estimulem o ato de empreender como engrenagem para o emprego e geração de renda.

“Nosso objetivo é mover as pessoas de lugar na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, enfrentar o racismo. Quando fazemos um edital, nós questionamos como essa ação representa o enfrentamento ao racismo?”, afirma Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com o Fórum São Paulo do Afroturismo e o Fundo Baobá de Equidade Racial

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Serviço

  • Restaurante: Mama África La Bonne Bouffe
  • Endereço: Rua Cantagalo, 230 - Tatuapé (zona leste)
  • Dias e horários: terça a sábado (12h a 22h); domingos e feriados (12h a 16h)
  • Telefone: 11 35827438
  • Site: mamaafricalabonnebouffe.com.br/

Quando chegou ao Brasil em 2004, Rafferty Kamga procurou alguma atividade relacionada à profissão de engenheiro eletrônico, que exercia em Camarões, seu país de origem. Ele abriu uma loja de eletroeletrônicos na rua Santa Ifigênia, região mais indicada de São Paulo para sua profissão. Mesmo com sua expertise e a localização propícia, o negócio não deu certo.

A alternativa que matutou foi abrir um restaurante, pois ele conhecia bem os pratos, sabores e temperos de Camarões. Mas havia um detalhe: ele não sabia cozinhar.

Os primeiros pratos que saíram da cozinha do restaurante Mama África foram o resultado de ligações diárias e troca de mensagens de texto com a mãe e as irmãs em 2016. Naquela época, os aplicativos de mensagens instantâneas, como o Whatsapp, ainda não haviam se popularizado.

“Meu sonho sempre foi montar um restaurante para falar da minha cultura. Eu não sabia cozinhar. Não sabia nem fazer arroz. Ligava para minha família para perguntar como montar um prato. Elas diziam faz assim, coloca isso e fui aprendendo”, conta o chef Sam, como ficou conhecido. “Hoje eu faço com os olhos fechados”.

O chef Sam, do restaurante Mama África Labonne Boufem, transformou a gastronomia numa forma de integração ao País.  Foto: Alex Silva/Estadão

O chef precisou arregaçar as mangas – literalmente – porque não encontrou parceiros de negócio. “Pensei em ficar na área de marketing, conversar com os clientes. Não era para eu cozinhar. Era para outra pessoa cozinhar, mas ninguém quis. Ninguém dava valor. O começo foi muito difícil”, diz o chef. Quando ele diz a palavra “muito”, ele repete a vogal ‘u’ por vários segundos e ainda abre as mãos para ilustrar o tamanho das dificuldades.

Quando fez a reforma do sobrado que fica no Tatuapé, zona leste da capital, o empresário ficou sem capital de giro. “Eu passava dois dias sem vender um prato”, conta. “Eu e minha mulher sentávamos no banco, olhando para a calçada e não entrava nenhum cliente”.

Desde o começo, ele administra o negócio e prepara os pratos ao lado da mulher, a brasileira Andréa. Eles se conheceram em São José do Rio Preto (SP) em sua primeira vez no País, em 2009, como turista, para conhecer o carnaval. O casal pensou em desistir várias vezes, mas faltou dinheiro até para encerrar o negócio. “Procurei mil reais para levar as coisas para São José do Rio Preto. Não achei. Eu ia desistir e fechar o restaurante”.

Redes sociais permitiram virada de mesa no restaurante

A virada de mesa aconteceu a partir das redes sociais. “O Facebook me deu um voucher de 500 dólares (R$ 2500 reais no câmbio de hoje) para participar de um evento. Na semana que postei esse prato, eu vendi 10 unidades”.

Os primeiros pratos do restaurante Mama África Labonne Boufe foram preparados pelo chef Sam com o apoio da família, que ficou em Camarões. Foto: Alex Silva/Estadão

O Mama África não oferece só a comida. Sam explica como cada ingrediente é chamado na África (ele fala português, inglês, francês e dialetos africanos), a origem dos temperos e até mesmo a melhor forma de manusear os alimentos. Ele diz que os pratos são africanos, mas com seu estilo. Um dos orgulhos do cardápio é o “Zumbadadeia”, prato que presta homenagem à mulher e leva espinafre, amendoim, castanha e camarão.

Um diferencial que não está no cardápio é a gargalhada do chef, que dá para ser ouvida do outro lado da rua. “Gastronomia é falar do meu povo e da minha cultura. Mama África é o pedaço da África em São Paulo. Da porta para dentro, você está na África; da porta para fora, você está no Brasil. Nem de Camarões, mas África”, afirma em tom solene, puxando as consoantes do francês.

Quando recebeu o Estadão, Sam decidiu fazer algo próprio, que surgisse na hora. Enquanto os perfumes sobem na cozinha apertada (como a maioria dos restaurantes), ele tira da geladeira o segredo da sua comida. Pede para a gente cheirar. É algo novo, difícil de explicar. “São temperos africanos que não existem aqui. Esse é o segredo”.

Rafferty conta que já sofreu racismo em várias partes do mundo, até na África. “Na Argélia, os negros me chamavam de ‘africano’ e se diziam magrebinos”, conta. O Magreb, região do Noroeste da África, representa o extremo ocidental do mundo árabe, as modernas nações islâmicas da Argélia, Marrocos, Tunísia. “A discriminação entre brancos e negros existe em todo o mundo. Mas os negros têm de mostrar que existe amor entre eles. É preciso união para combater”.

O prato Zumbadadea, com camarão, espinafre e banana da terra, foi criado em homenagem a Andrea, mulher do chef Sam.  Foto: Alex Silva/Estadão

Em São Paulo, a experiência cultural em um restaurante africano fortalece o turismo afrocentrado, na opinião de Hubber Clemente, gestor executivo do Fórum São Paulo do Afroturismo. “Esses restaurantes são fundamentais para uma experiência de turismo afrocentrada. Eles resgatam a culinária dos nossos ancestrais e trazem sabores que fazem parte da nossa memória e de nossa história”, afirma.

Afroturismo são as práticas de valorização, preservação e reconexão com a identidade e a história protagonizada por comunidades negras. A SPTuris (São Paulo Turismo) lançou 28 atrações que ressaltam o legado afro sobre as visões artísticas, religiosas e gastronômicas em São Paulo.

De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), existem cerca de 60 mil bares e restaurantes em São Paulo, mas não existem dados específicos dos estabelecimentos por tipo de gastronomia, como a africana.

Empreendedores negros atraem a atenção da iniciativa privada

A culinária africana está incorporada à cultura brasileira. Desde 1530, quando os povos negros começaram a ser trazidos à força no processo de escravização, diferentes ingredientes e sabores foram trazidos para cá. O empreendedorismo negro na gastronomia resgata, por exemplo, a herança das quituteiras, mulheres escravizadas que compravam suas alforrias e mantinham sua liberdade com a venda de quitutes no século XVII.

O chef Sam conta que na Bahia são comidos pratos africanos. Esse processo está registrado, por exemplo, nos versos de 1936 do compositor Ari Barroso (1903-1964) e que foram imortalizados por Dorival Caymmi: “No tabuleiro da baiana tem: Vatapá, Caruru, Munguzá…”.

Por outro lado, depois de 135 anos da abolição, o legado da escravidão para a população negra se mantém pela exclusão socioeconômica. São sinais dessa exclusão a baixa representatividade de gestores nas empresas, menor remuneração no mercado de trabalho formal, concentração na economia informal e desvantagens na hora de empreender.

A intersecção histórica entre empreendedorismo e a culinária negra chama a atenção da iniciativa privada. A empresa brasileira de tecnologia iFood criou um programa que oferece consultoria para melhorar o desempenho dos estabelecimentos no aplicativo, cursos de capacitação online e facilidades para a obtenção de crédito, com redução das taxas de empréstimo. Dos mais de 300 mil estabelecimentos cadastrados na plataforma no Brasil, a empresa estima que 40% sejam de empreendedores pretos e pardos.

A primeira etapa do programa, realizada em Salvador, contou com 237 empreendedores. Em São Paulo, a expectativa é atrair 300 empreendedores negros, além de mais 100 em uma vertente específica do programa voltada às comunidades – o projeto piloto será realizado em Heliópolis.

“O ecossistema do iFood gera cerca de 1 milhão de empregos. É uma amostragem importante da população ativa. Nesse contexto, nossas ações podem colaborar para reduzir as desigualdades causadas pelo racismo estrutural”, afirma Angel Vasconcelos, diretora de Equidade do iFood.

Para acelerar o empreendedorismo negro em vários mercados, o Fundo Baobá de Equidade Racial possui um eixo temático de atuação voltada ao desenvolvimento econômico. Um dos objetivos é apoiar iniciativas que estimulem o ato de empreender como engrenagem para o emprego e geração de renda.

“Nosso objetivo é mover as pessoas de lugar na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, enfrentar o racismo. Quando fazemos um edital, nós questionamos como essa ação representa o enfrentamento ao racismo?”, afirma Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com o Fórum São Paulo do Afroturismo e o Fundo Baobá de Equidade Racial

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Serviço

  • Restaurante: Mama África La Bonne Bouffe
  • Endereço: Rua Cantagalo, 230 - Tatuapé (zona leste)
  • Dias e horários: terça a sábado (12h a 22h); domingos e feriados (12h a 16h)
  • Telefone: 11 35827438
  • Site: mamaafricalabonnebouffe.com.br/

Quando chegou ao Brasil em 2004, Rafferty Kamga procurou alguma atividade relacionada à profissão de engenheiro eletrônico, que exercia em Camarões, seu país de origem. Ele abriu uma loja de eletroeletrônicos na rua Santa Ifigênia, região mais indicada de São Paulo para sua profissão. Mesmo com sua expertise e a localização propícia, o negócio não deu certo.

A alternativa que matutou foi abrir um restaurante, pois ele conhecia bem os pratos, sabores e temperos de Camarões. Mas havia um detalhe: ele não sabia cozinhar.

Os primeiros pratos que saíram da cozinha do restaurante Mama África foram o resultado de ligações diárias e troca de mensagens de texto com a mãe e as irmãs em 2016. Naquela época, os aplicativos de mensagens instantâneas, como o Whatsapp, ainda não haviam se popularizado.

“Meu sonho sempre foi montar um restaurante para falar da minha cultura. Eu não sabia cozinhar. Não sabia nem fazer arroz. Ligava para minha família para perguntar como montar um prato. Elas diziam faz assim, coloca isso e fui aprendendo”, conta o chef Sam, como ficou conhecido. “Hoje eu faço com os olhos fechados”.

O chef Sam, do restaurante Mama África Labonne Boufem, transformou a gastronomia numa forma de integração ao País.  Foto: Alex Silva/Estadão

O chef precisou arregaçar as mangas – literalmente – porque não encontrou parceiros de negócio. “Pensei em ficar na área de marketing, conversar com os clientes. Não era para eu cozinhar. Era para outra pessoa cozinhar, mas ninguém quis. Ninguém dava valor. O começo foi muito difícil”, diz o chef. Quando ele diz a palavra “muito”, ele repete a vogal ‘u’ por vários segundos e ainda abre as mãos para ilustrar o tamanho das dificuldades.

Quando fez a reforma do sobrado que fica no Tatuapé, zona leste da capital, o empresário ficou sem capital de giro. “Eu passava dois dias sem vender um prato”, conta. “Eu e minha mulher sentávamos no banco, olhando para a calçada e não entrava nenhum cliente”.

Desde o começo, ele administra o negócio e prepara os pratos ao lado da mulher, a brasileira Andréa. Eles se conheceram em São José do Rio Preto (SP) em sua primeira vez no País, em 2009, como turista, para conhecer o carnaval. O casal pensou em desistir várias vezes, mas faltou dinheiro até para encerrar o negócio. “Procurei mil reais para levar as coisas para São José do Rio Preto. Não achei. Eu ia desistir e fechar o restaurante”.

Redes sociais permitiram virada de mesa no restaurante

A virada de mesa aconteceu a partir das redes sociais. “O Facebook me deu um voucher de 500 dólares (R$ 2500 reais no câmbio de hoje) para participar de um evento. Na semana que postei esse prato, eu vendi 10 unidades”.

Os primeiros pratos do restaurante Mama África Labonne Boufe foram preparados pelo chef Sam com o apoio da família, que ficou em Camarões. Foto: Alex Silva/Estadão

O Mama África não oferece só a comida. Sam explica como cada ingrediente é chamado na África (ele fala português, inglês, francês e dialetos africanos), a origem dos temperos e até mesmo a melhor forma de manusear os alimentos. Ele diz que os pratos são africanos, mas com seu estilo. Um dos orgulhos do cardápio é o “Zumbadadeia”, prato que presta homenagem à mulher e leva espinafre, amendoim, castanha e camarão.

Um diferencial que não está no cardápio é a gargalhada do chef, que dá para ser ouvida do outro lado da rua. “Gastronomia é falar do meu povo e da minha cultura. Mama África é o pedaço da África em São Paulo. Da porta para dentro, você está na África; da porta para fora, você está no Brasil. Nem de Camarões, mas África”, afirma em tom solene, puxando as consoantes do francês.

Quando recebeu o Estadão, Sam decidiu fazer algo próprio, que surgisse na hora. Enquanto os perfumes sobem na cozinha apertada (como a maioria dos restaurantes), ele tira da geladeira o segredo da sua comida. Pede para a gente cheirar. É algo novo, difícil de explicar. “São temperos africanos que não existem aqui. Esse é o segredo”.

Rafferty conta que já sofreu racismo em várias partes do mundo, até na África. “Na Argélia, os negros me chamavam de ‘africano’ e se diziam magrebinos”, conta. O Magreb, região do Noroeste da África, representa o extremo ocidental do mundo árabe, as modernas nações islâmicas da Argélia, Marrocos, Tunísia. “A discriminação entre brancos e negros existe em todo o mundo. Mas os negros têm de mostrar que existe amor entre eles. É preciso união para combater”.

O prato Zumbadadea, com camarão, espinafre e banana da terra, foi criado em homenagem a Andrea, mulher do chef Sam.  Foto: Alex Silva/Estadão

Em São Paulo, a experiência cultural em um restaurante africano fortalece o turismo afrocentrado, na opinião de Hubber Clemente, gestor executivo do Fórum São Paulo do Afroturismo. “Esses restaurantes são fundamentais para uma experiência de turismo afrocentrada. Eles resgatam a culinária dos nossos ancestrais e trazem sabores que fazem parte da nossa memória e de nossa história”, afirma.

Afroturismo são as práticas de valorização, preservação e reconexão com a identidade e a história protagonizada por comunidades negras. A SPTuris (São Paulo Turismo) lançou 28 atrações que ressaltam o legado afro sobre as visões artísticas, religiosas e gastronômicas em São Paulo.

De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), existem cerca de 60 mil bares e restaurantes em São Paulo, mas não existem dados específicos dos estabelecimentos por tipo de gastronomia, como a africana.

Empreendedores negros atraem a atenção da iniciativa privada

A culinária africana está incorporada à cultura brasileira. Desde 1530, quando os povos negros começaram a ser trazidos à força no processo de escravização, diferentes ingredientes e sabores foram trazidos para cá. O empreendedorismo negro na gastronomia resgata, por exemplo, a herança das quituteiras, mulheres escravizadas que compravam suas alforrias e mantinham sua liberdade com a venda de quitutes no século XVII.

O chef Sam conta que na Bahia são comidos pratos africanos. Esse processo está registrado, por exemplo, nos versos de 1936 do compositor Ari Barroso (1903-1964) e que foram imortalizados por Dorival Caymmi: “No tabuleiro da baiana tem: Vatapá, Caruru, Munguzá…”.

Por outro lado, depois de 135 anos da abolição, o legado da escravidão para a população negra se mantém pela exclusão socioeconômica. São sinais dessa exclusão a baixa representatividade de gestores nas empresas, menor remuneração no mercado de trabalho formal, concentração na economia informal e desvantagens na hora de empreender.

A intersecção histórica entre empreendedorismo e a culinária negra chama a atenção da iniciativa privada. A empresa brasileira de tecnologia iFood criou um programa que oferece consultoria para melhorar o desempenho dos estabelecimentos no aplicativo, cursos de capacitação online e facilidades para a obtenção de crédito, com redução das taxas de empréstimo. Dos mais de 300 mil estabelecimentos cadastrados na plataforma no Brasil, a empresa estima que 40% sejam de empreendedores pretos e pardos.

A primeira etapa do programa, realizada em Salvador, contou com 237 empreendedores. Em São Paulo, a expectativa é atrair 300 empreendedores negros, além de mais 100 em uma vertente específica do programa voltada às comunidades – o projeto piloto será realizado em Heliópolis.

“O ecossistema do iFood gera cerca de 1 milhão de empregos. É uma amostragem importante da população ativa. Nesse contexto, nossas ações podem colaborar para reduzir as desigualdades causadas pelo racismo estrutural”, afirma Angel Vasconcelos, diretora de Equidade do iFood.

Para acelerar o empreendedorismo negro em vários mercados, o Fundo Baobá de Equidade Racial possui um eixo temático de atuação voltada ao desenvolvimento econômico. Um dos objetivos é apoiar iniciativas que estimulem o ato de empreender como engrenagem para o emprego e geração de renda.

“Nosso objetivo é mover as pessoas de lugar na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, enfrentar o racismo. Quando fazemos um edital, nós questionamos como essa ação representa o enfrentamento ao racismo?”, afirma Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com o Fórum São Paulo do Afroturismo e o Fundo Baobá de Equidade Racial

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Serviço

  • Restaurante: Mama África La Bonne Bouffe
  • Endereço: Rua Cantagalo, 230 - Tatuapé (zona leste)
  • Dias e horários: terça a sábado (12h a 22h); domingos e feriados (12h a 16h)
  • Telefone: 11 35827438
  • Site: mamaafricalabonnebouffe.com.br/

Quando chegou ao Brasil em 2004, Rafferty Kamga procurou alguma atividade relacionada à profissão de engenheiro eletrônico, que exercia em Camarões, seu país de origem. Ele abriu uma loja de eletroeletrônicos na rua Santa Ifigênia, região mais indicada de São Paulo para sua profissão. Mesmo com sua expertise e a localização propícia, o negócio não deu certo.

A alternativa que matutou foi abrir um restaurante, pois ele conhecia bem os pratos, sabores e temperos de Camarões. Mas havia um detalhe: ele não sabia cozinhar.

Os primeiros pratos que saíram da cozinha do restaurante Mama África foram o resultado de ligações diárias e troca de mensagens de texto com a mãe e as irmãs em 2016. Naquela época, os aplicativos de mensagens instantâneas, como o Whatsapp, ainda não haviam se popularizado.

“Meu sonho sempre foi montar um restaurante para falar da minha cultura. Eu não sabia cozinhar. Não sabia nem fazer arroz. Ligava para minha família para perguntar como montar um prato. Elas diziam faz assim, coloca isso e fui aprendendo”, conta o chef Sam, como ficou conhecido. “Hoje eu faço com os olhos fechados”.

O chef Sam, do restaurante Mama África Labonne Boufem, transformou a gastronomia numa forma de integração ao País.  Foto: Alex Silva/Estadão

O chef precisou arregaçar as mangas – literalmente – porque não encontrou parceiros de negócio. “Pensei em ficar na área de marketing, conversar com os clientes. Não era para eu cozinhar. Era para outra pessoa cozinhar, mas ninguém quis. Ninguém dava valor. O começo foi muito difícil”, diz o chef. Quando ele diz a palavra “muito”, ele repete a vogal ‘u’ por vários segundos e ainda abre as mãos para ilustrar o tamanho das dificuldades.

Quando fez a reforma do sobrado que fica no Tatuapé, zona leste da capital, o empresário ficou sem capital de giro. “Eu passava dois dias sem vender um prato”, conta. “Eu e minha mulher sentávamos no banco, olhando para a calçada e não entrava nenhum cliente”.

Desde o começo, ele administra o negócio e prepara os pratos ao lado da mulher, a brasileira Andréa. Eles se conheceram em São José do Rio Preto (SP) em sua primeira vez no País, em 2009, como turista, para conhecer o carnaval. O casal pensou em desistir várias vezes, mas faltou dinheiro até para encerrar o negócio. “Procurei mil reais para levar as coisas para São José do Rio Preto. Não achei. Eu ia desistir e fechar o restaurante”.

Redes sociais permitiram virada de mesa no restaurante

A virada de mesa aconteceu a partir das redes sociais. “O Facebook me deu um voucher de 500 dólares (R$ 2500 reais no câmbio de hoje) para participar de um evento. Na semana que postei esse prato, eu vendi 10 unidades”.

Os primeiros pratos do restaurante Mama África Labonne Boufe foram preparados pelo chef Sam com o apoio da família, que ficou em Camarões. Foto: Alex Silva/Estadão

O Mama África não oferece só a comida. Sam explica como cada ingrediente é chamado na África (ele fala português, inglês, francês e dialetos africanos), a origem dos temperos e até mesmo a melhor forma de manusear os alimentos. Ele diz que os pratos são africanos, mas com seu estilo. Um dos orgulhos do cardápio é o “Zumbadadeia”, prato que presta homenagem à mulher e leva espinafre, amendoim, castanha e camarão.

Um diferencial que não está no cardápio é a gargalhada do chef, que dá para ser ouvida do outro lado da rua. “Gastronomia é falar do meu povo e da minha cultura. Mama África é o pedaço da África em São Paulo. Da porta para dentro, você está na África; da porta para fora, você está no Brasil. Nem de Camarões, mas África”, afirma em tom solene, puxando as consoantes do francês.

Quando recebeu o Estadão, Sam decidiu fazer algo próprio, que surgisse na hora. Enquanto os perfumes sobem na cozinha apertada (como a maioria dos restaurantes), ele tira da geladeira o segredo da sua comida. Pede para a gente cheirar. É algo novo, difícil de explicar. “São temperos africanos que não existem aqui. Esse é o segredo”.

Rafferty conta que já sofreu racismo em várias partes do mundo, até na África. “Na Argélia, os negros me chamavam de ‘africano’ e se diziam magrebinos”, conta. O Magreb, região do Noroeste da África, representa o extremo ocidental do mundo árabe, as modernas nações islâmicas da Argélia, Marrocos, Tunísia. “A discriminação entre brancos e negros existe em todo o mundo. Mas os negros têm de mostrar que existe amor entre eles. É preciso união para combater”.

O prato Zumbadadea, com camarão, espinafre e banana da terra, foi criado em homenagem a Andrea, mulher do chef Sam.  Foto: Alex Silva/Estadão

Em São Paulo, a experiência cultural em um restaurante africano fortalece o turismo afrocentrado, na opinião de Hubber Clemente, gestor executivo do Fórum São Paulo do Afroturismo. “Esses restaurantes são fundamentais para uma experiência de turismo afrocentrada. Eles resgatam a culinária dos nossos ancestrais e trazem sabores que fazem parte da nossa memória e de nossa história”, afirma.

Afroturismo são as práticas de valorização, preservação e reconexão com a identidade e a história protagonizada por comunidades negras. A SPTuris (São Paulo Turismo) lançou 28 atrações que ressaltam o legado afro sobre as visões artísticas, religiosas e gastronômicas em São Paulo.

De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), existem cerca de 60 mil bares e restaurantes em São Paulo, mas não existem dados específicos dos estabelecimentos por tipo de gastronomia, como a africana.

Empreendedores negros atraem a atenção da iniciativa privada

A culinária africana está incorporada à cultura brasileira. Desde 1530, quando os povos negros começaram a ser trazidos à força no processo de escravização, diferentes ingredientes e sabores foram trazidos para cá. O empreendedorismo negro na gastronomia resgata, por exemplo, a herança das quituteiras, mulheres escravizadas que compravam suas alforrias e mantinham sua liberdade com a venda de quitutes no século XVII.

O chef Sam conta que na Bahia são comidos pratos africanos. Esse processo está registrado, por exemplo, nos versos de 1936 do compositor Ari Barroso (1903-1964) e que foram imortalizados por Dorival Caymmi: “No tabuleiro da baiana tem: Vatapá, Caruru, Munguzá…”.

Por outro lado, depois de 135 anos da abolição, o legado da escravidão para a população negra se mantém pela exclusão socioeconômica. São sinais dessa exclusão a baixa representatividade de gestores nas empresas, menor remuneração no mercado de trabalho formal, concentração na economia informal e desvantagens na hora de empreender.

A intersecção histórica entre empreendedorismo e a culinária negra chama a atenção da iniciativa privada. A empresa brasileira de tecnologia iFood criou um programa que oferece consultoria para melhorar o desempenho dos estabelecimentos no aplicativo, cursos de capacitação online e facilidades para a obtenção de crédito, com redução das taxas de empréstimo. Dos mais de 300 mil estabelecimentos cadastrados na plataforma no Brasil, a empresa estima que 40% sejam de empreendedores pretos e pardos.

A primeira etapa do programa, realizada em Salvador, contou com 237 empreendedores. Em São Paulo, a expectativa é atrair 300 empreendedores negros, além de mais 100 em uma vertente específica do programa voltada às comunidades – o projeto piloto será realizado em Heliópolis.

“O ecossistema do iFood gera cerca de 1 milhão de empregos. É uma amostragem importante da população ativa. Nesse contexto, nossas ações podem colaborar para reduzir as desigualdades causadas pelo racismo estrutural”, afirma Angel Vasconcelos, diretora de Equidade do iFood.

Para acelerar o empreendedorismo negro em vários mercados, o Fundo Baobá de Equidade Racial possui um eixo temático de atuação voltada ao desenvolvimento econômico. Um dos objetivos é apoiar iniciativas que estimulem o ato de empreender como engrenagem para o emprego e geração de renda.

“Nosso objetivo é mover as pessoas de lugar na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, enfrentar o racismo. Quando fazemos um edital, nós questionamos como essa ação representa o enfrentamento ao racismo?”, afirma Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com o Fórum São Paulo do Afroturismo e o Fundo Baobá de Equidade Racial

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Serviço

  • Restaurante: Mama África La Bonne Bouffe
  • Endereço: Rua Cantagalo, 230 - Tatuapé (zona leste)
  • Dias e horários: terça a sábado (12h a 22h); domingos e feriados (12h a 16h)
  • Telefone: 11 35827438
  • Site: mamaafricalabonnebouffe.com.br/

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