Cerca de 4,5% dos detentos liberados pela Justiça de São Paulo para sair provisoriamente da prisão no fim do último ano não retornaram para o sistema penitenciário no período previsto, segundo balanço da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP). Na prática, agora estão nas ruas 1.566 dos 34.547 presos que tiveram a saída autorizada pelo Poder Judiciário no Estado.
A taxa segue em patamar parecido ao que vem sendo observado nos últimos anos, quando oscilou entre 4,44% e 4,91%. Ainda assim, as chamadas saidinhas temporárias de presos, permitidas pela Lei de Execução Penal, têm sido alvo crescente de críticas e de cobranças pela retomada das discussões no Senado de projeto de lei que extingue o benefício – iniciativa que divide opiniões.
Neste fim de semana, um sargento da Polícia Militar foi morto a tiros em Belo Horizonte durante uma perseguição a dois suspeitos. O homem apontado como o autor dos disparos era um detento, que obteve o direito da saída temporária e estava no regime semiaberto. Já no Rio, três homens apontados como chefes do tráfico de drogas não voltaram para a cadeia após saírem para o feriado de réveillon.
Dados enviados ao Estadão pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo apontam que a taxa de evasão registrada na liberação do fim do ano passado foi a segunda menor no recorte dos últimos seis anos. Ficou atrás apenas de 2021, quando 4,44% dos 36.688 presos liberados deixaram de voltar para a prisão.
Em contrapartida, o ano de 2018 teve a pior taxa registrada no mesmo recorte. Dos 34.041 detentos que saíram provisoriamente da prisão no fim daquele ano, 1.672 não retornaram no tempo previsto. O levantamento leva em conta o período de 23 de dezembro a 3 de janeiro, quando as liberações de fim de ano são concedidas em São Paulo, conforme portaria específica que regula a medida no Estado.
A saída temporária foi adotada efetivamente a partir da Lei de Execução Penal, de junho de 1984, que lista os principais requisitos para a autorização da liberação de detentos. O texto prevê que, para ser beneficiado, o preso precisa estar em regime semiaberto e ter cumprido ao menos um sexto da pena, se o condenado for primário, ou um quarto, se reincidente.
A liberação pode ser autorizada pelo Judiciário por até cinco vezes ao ano. Entre outras obrigações, o detento não pode consumir bebida alcoólica ou outras substâncias entorpecentes e não deve frequentar bares, casas noturnas ou casas de prostituição durante o período em que está nas ruas. Esses incrementos foram incluídos em 2010.
Conforme a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP), 712 detentos foram recapturados pela polícia durante a saída temporária do fim deste ano enquanto descumpriam alguma das regras para permanecer nas ruas. Em 81 desses casos, os presos foram flagrados cometendo algum tipo de crime, afirmou a pasta.
Nas redes sociais, o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, tem cobrado a aprovação de projeto de lei que tramita no Senado que prevê o fim das saídas temporárias de presos. A medida foi aprovada em agosto de 2022 na Câmara, sob relatoria do próprio Derrite enquanto ele ocupava uma cadeira pelo PL.
Na época, o hoje secretário da Segurança Pública alterou a proposta inicial que limitava as saídas temporárias para, em vez disso, abolir completamente o benefício. “Agora é necessário que o Senado também aprove”, cobrou Derrite, em publicação nas redes sociais.
Como mostrou o Estadão, o PL 2.253/2022, que extingue a medida, está na Comissão de Segurança Pública do Senado, agora sob relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Houve pedido de vista pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES) e, com o recesso parlamentar, iniciado em 23 de dezembro, a tramitação está parada.
Nesta segunda-feira, 8, com a repercussão da morte do sargento da PM Roger Dias da Cunha por um preso que estava em saída temporária em Belo Horizonte, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que o benefício demanda revisão legislativa sobre a posse de armas e as ‘saidinhas’ de presidiários.
“Embora o papel da segurança pública seja do Executivo, e o de se fazer justiça, do Judiciário, o Congresso promoverá mudanças nas leis, reformulando e até suprimindo direitos que, a pretexto de ressocializar, estão servindo como meio para a prática de mais e mais crimes”, afirmou Pacheco, comprometendo-se a fomentar discussões sobre o tema no Congresso.
Especialistas divergem sobre manutenção da ‘saidinha’
A saída temporária de presos é alvo de divergência entre especialistas. Na avaliação de Claudio Langroiva, professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), a medida pode ser considerada benéfica para reinserção de presos, “desde que aplicada com a seriedade, a responsabilidade e a tecnicidade que a lei exige e que se espera dos gestores do sistema penitenciário”.
“Nosso sistema é um sistema destinado a ressocializar, reeducar, atribuir responsabilidade e preparar o delinquente para entender seus erros e voltar melhor para a sociedade. Pois é certo que cedo ou tarde ele voltará, só depende do Estado, que deveria bem cuidar de toda a execução da pena, fazer o melhor para que o condenado volte melhor para seu convívio social, o que hoje é uma exceção no Brasil”, disse.
O professor aponta que, desde que o Código de Processo Penal entrou em vigor, a principal alteração foi feita por meio da Lei 13.964, de 2019, conhecida como pacote anticrime, uma das bandeiras do primeiro ano da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Por meio dela, o direito à saída temporária passou a ser proibido para os condenados que cumprem pena por crime hediondo que tenha resultado em morte.
Desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), Ivana David relembra que, na primeira versão do pacote anticrime, a ideia era proibir a saída temporária para quem tivesse cometido times hediondos, tortura, racismo, entre outros. “O Parlamento mudou o pacote anticrime nesse sentido e colocou que só não tem direito à saída temporária o crime hediondo com resultado morte”, disse.
“Essa remodelação foi um prejuízo à sociedade, porque era um projeto que, ao meu ver, seria o ideal, pelo menos nessa frase de crime que estamos vivendo”, acrescenta. Ela afirma que a quantidade e as datas das saídas temporárias permitidas varia conforme em cada Estado, mas reforça que os pré-requisitos podem ser alterados de forma ampla por meio da Lei de Execução Penal.
Para a desembargadora, seria importante realizar atualizações no modelo, como a expansão do uso de tornozeleiras eletrônicas pelos detentos que recebem os benefícios e de restrições que se atentem para a atuação nas prisões das organizações criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Para a diretora da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, Raquel Gallinati, a lei previu a medida como tentativa do sistema penal em ressocializar o preso. “No entanto, o sistema de execução penal apresenta distorções, já que muitos indivíduos não cumprem a pena no presídio adequado quando estão no regime semiaberto”, disse.
“A fase que deveria ser de ressocialização torna-se, na prática, uma espécie de pós-graduação no crime, pois os detentos continuam na penitenciária cumprindo pena junto com aqueles em regime fechado”, acrescenta. Segundo Raquel, o benefício foi desvirtuado, sendo utilizado frequentemente para evitar rebeliões e acalmar os presos, desviando-se do propósito original. /COLABOROU JOSÉ MARIA TOMAZELA