Não há cobrador ou cartão de transporte nos ônibus de Vargem Grande Paulista. Há três anos, o município da Grande São Paulo adotou a tarifa zero no transporte coletivo em meio a conflitos com a empresa que prestava o serviço. A mudança permaneceu e chamou a atenção de outras cidades, até mesmo da capital paulista, que se reuniu na semana passada com a cidade vizinha para tratar sobre o passe livre, que o prefeito paulistano Ricardo Nunes (MDB) cogita implementar caso um estudo aponte a viabilidade econômica, financeira e jurídica.
O prefeito de Vargem Grande Paulista, Josué Ramos (PL), defende que o modelo é replicável, até em nível estadual, e ressalta que dobrou a média de passageiros na cidade, impactando no consumo local, na geração de empregos e no acesso da população mais periférica a serviços básicos. A mudança foi a principal plataforma do seu primeiro ano de gestão, do qual saiu reeleito. A principal base de financiamento é uma taxa a empresas, considerada ilegal em decisão recente da Justiça.
A tarifa zero é elogiada por parte da população da cidade (de 54,3 mil habitantes). Em visita do Estadão à cidade, moradores comentaram que a gratuidade faz diferença no orçamento doméstico. Outros também apontaram mudanças que consideram necessárias, como ampliar o horário de funcionamento (até 19h ou 20h, a depender da linha, nos dias úteis, e reduzido no fim de semana) e a qualidade dos veículos.
Em dezembro de 2020, um vereador abriu uma moção para que o ônibus funcionasse até as 22 horas, para atender trabalhadores no fim do expediente. Sobre as críticas, o prefeito diz que os trajetos e os horários das linhas foram desenhados com base na demanda, com um trabalho que incluiu uma empresa de consultoria especializada, e que estão em constante adaptação.
Os ônibus operam com seis linhas, duas circulares. Não há presença de cobrador e tampouco é exigida a apresentação de cartão de transporte. Basta passar pela catraca. O entendimento da prefeitura é de que um eventual sistema de controle eletrônico aumentaria o custo operacional.
A empresa contratada é paga pelo serviço, calculado a partir do quilômetro rodado, não do número de passageiros. Segundo o prefeito, esse modelo dá liberdade ao município para realizar ajustes. Ele também destaca que não precisa mais lidar com imprevisibilidades de contratos de dez ou mais anos, em que eventuais mudanças no preço do combustível, número de usuários e desvalorização da frota precisam entrar no cálculo do custo. “Hoje, (em algumas cidades) com dois anos de contrato, já se discute aumento da tarifa ou do subsídio.”
Prefeitura criou taxa para empresas; Justiça considerada ilegal
Vargem Grande Paulista mantém a operação da tarifa zero por meio de um fundo municipal, no qual cerca de 70% dos recursos são provenientes de uma taxa a empresas locais, criada em 2019. O restante é subsidiado, mas há intenção de que seja complementado com propaganda e outras fontes. Com a mudança, em vez de fornecer o vale-transporte, as empresas pagam R$ 39,20 mensais, por funcionário.
A nova taxa foi bem recebida por boa parte dos empresários, mas não por todos. Ao menos uma empresa do município conseguiu barrar o pagamento na Justiça, que entendeu a taxação como ilegal e inconstitucional. Parecer anterior da promotoria de Vargem Grande Paulista já havia apontado a ilegalidade.
“O programa ‘Transporte para Todos’, por mais bem intencionado que seja, visa a realizar caridade com chapéu alheio, propalando que o serviço de transporte público seria prestado pelo município, no entanto, quem arcaria como ônus financeiro seria totalmente a iniciativa privada, notadamente todas as pessoas jurídicas instaladas na urbe, mediante a instituição da ilegal e inconstitucional Taxa de Transporte Público de Passageiros, que de taxa apenas possui na nomenclatura”, apontou a juíza Patrícia Érica Luna da Silva, da Comarca de Vargem Grande Paulista, em sentença em 30 de junho.
Sobre o caso, o prefeito Josué Ramos alega que é uma exceção e a grande maioria das empresas apoia a cobrança. Isso porque, segundo ele, esse valor é às vezes mais baixo do que uma contribuição para o vale-transporte de um trabalhador. Afirma também que as empresas não precisam fazer o pagamento caso comprovem que a mudança lhes trouxe prejuízos. Diz até que as companhias podem, em último caso, descontar a taxa dos funcionários.
Além disso, destaca que os resultados são positivos o suficiente para manter a tarifa zero mesmo se for necessário subsidiar toda a operação. “Banquei por um ano sem cobrar taxa, em 2020, porque veio a pandemia”, diz o prefeito.
Município apresentou experiência a outras prefeituras, incluindo a capital
Embora cerca de 50 municípios operem com a tarifa zero hoje, Vargem Grande Paulista tem chamado a atenção pelo modelo de financiamento. Municípios como Paranaguá, no Paraná, e Parobé, no interior gaúcho, estão entre os que procuraram a cidade paulista, avaliando a possibilidade de replicar parte da experiência. Na semana passada, o programa foi apresentado em reunião com o prefeito da capital paulista, Ricardo Nunes.
Embora o debate tenha surgido há mais de 30 anos em uma gestão do PT, da então prefeita Luiza Erundina (hoje deputada pelo PSOL), o prefeito de Vargem Grande Paulista avalia que hoje esse tipo de proposta envolve políticos das mais variadas esferas ideológicas e partidárias. Ele cita como exemplo colegas de partido, do PL, que pretendem replicar a proposta em outras cidades, como Guararema.
Para ele, uma implementação na capital paulista geraria uma reação em cadeia, com aceleração ainda maior nas adesões, que cresceram nos últimos anos. ”Se São Paulo tiver a iniciativa e a viabilidade em implantar tarifa zero, todas as demais cidades do País vão ter que rever isso”, avalia. Na semana passada, Nunes disse que aguarda o estudo sobre a possibilidade de implantação em até 60 dias.
Como outros prefeitos, Ramos também defende um Sistema Nacional de Mobilidade Urbana, inspirado no Sistema Único de Saúde (SUS), em que o financiamento é compartilhado em conjunto com a União e os Estados, o que facilitaria a disseminação do passe livre. “O sistema de transporte é direito de todos e dever do Estado.”
Em Vargem Grande Paulista, o tarifa zero nasceu de um conflito com a empresa que operava os ônibus, que, segundo o prefeito, não oferecia o serviço contratado. Ramos diz que, “do dia pra noite”, precisou improvisar um sistema de transporte com vans municipais até desenvolver o programa atual, lançado em novembro de 2019. A ideia da cobrança da taxa teria surgido de um exemplo francês, da cidade de Dunkirk.
Usuários se dividem sobre qualidade do serviço
As opiniões sobre o funcionamento dos ônibus em Vargem Grande Paulista são variadas. A tarifa zero em si não costuma ser criticada, mas há reclamações quanto à qualidade do serviço, principalmente sobre a quantidade de viagens, o horário de funcionamento, a manutenção dos veículos e a lotação nas horas de pico.
“É uma humilhação”, reclama o construtor Benicio Souza, de 43 anos. O morador do bairro Agreste, mais afastado do centro, relata atrasos e ônibus quebrados. Ele avalia que há diferença na qualidade dos veículos entre os bairros atendidos.
Por outro lado, a dona de casa Aparecida Novaes, de 55 anos, também moradora de um bairro periférico, diz que “quem critica é porque não precisa da tarifa zero”. Ela considera o serviço “bom demais”.
Já o professor Marcelo da Silva, de 38 anos, elogia a tarifa zero e considera que seria um modelo interessante a ser replicado em outros municípios, como Cotia, onde reside. Ele defende, contudo, que o horário de operação em dia útil deveria ser ampliado ao menos até as 21 horas, para atender “o pessoal que trabalha”.
A atendente Francimaira da Cunha, de 20 anos, também gosta do serviço e defende ampliação nos horários de funcionamento. Ela conta já ter precisado recorrer a outro modo de transporte quando o ônibus que utilizaria quebrou. “Em vez de mandarem outro, não tinha.”
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