Em meio ao avanço de construções irregulares nas franjas da cidade de São Paulo, vereadores da base e da oposição ao prefeito Ricardo Nunes (MDB) têm defendido abertamente a mudança na classificação de parte das Zonas Especiais de Proteção Ambiental (Zepams). A nova classificação permitiria a regularização fundiária e permanência de famílias de baixa renda, mas daria margem a uma maior urbanização de áreas sensíveis, como em distritos do entorno das represas e da Serra da Cantareira.
A alteração será indicada na primeira ou segunda versão do texto substitutivo ao projeto de lei da revisão da Lei de Zoneamento. As apresentações das novas versões do projeto de lei estão previstas para a segunda-feira, 4, e o dia 11, respectivamente. Já as votações, para 7 e 14 de dezembro.
Os vereadores favoráveis defendem a mudança em locais ocupados há anos, alguns há mais de uma ou duas décadas. A mudança não é bem recebida por uma parte dos especialistas, principalmente pelo possível impacto ambiental, ainda mais no contexto de emergência climática cada vez mais evidente.
O relator, Rodrigo Goulart (PSD), afirma que a alteração será proposta exclusivamente nos perímetros com aval da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente e com ocupação “consolidada”. Também diz que novas Zepams serão igualmente demarcadas e que uma das “grandes preocupações” da revisão é a questão ambiental. Não há confirmação dos endereços que podem ter o zoneamento alterado.
“Não é todo mundo e sem nenhum tipo de critério. Se fosse sair regularizando, não consultaria órgãos. Não tem questão política, tem técnica”, afirma o vereador. “São algumas áreas da cidade que têm conflitos de zoneamento. Não é isso que vai afetar ambientalmente a cidade. Vamos dar respostas ambientais na lei”, acrescenta. O Estadão tem um mapa interativo com os principais tipos de zonas, inclusive Zepams, confira neste link (também está disponível no decorrer desta publicação).
Dezenas de loteamentos e ocupações irregulares nesses distritos e em outras partes da cidade são investigadas pelo Ministério Público de São Paulo. Estima-se que o número ultrapasse 160 áreas, segundo documento que o Estadão teve acesso.
O tema é alvo de ao menos três inquéritos civis (divididos em regiões norte, sul e leste), com investigações iniciadas em diversas promotorias e comunicadas pela Polícia Ambiental, as quais foram compiladas dessa forma após o entendimento de que atuações pontuais não obtinham a efetividade esperada diante da complexidade do tema.
Outro ponto destacado por Goulart é que Nunes poderá vetar eventuais demarcações consideradas inadequadas, assim como consultar a Secretaria Municipal de Habitação e, novamente, a pasta do Verde. O projeto enviado pelo Executivo à Câmara já trazia propostas de alterações para Zepams, com a liberação de comércios de alimentos para até 500 pessoas mediante aval de órgão ambiental não especificado, como antecipou o Estadão.
Hoje, essa avaliação deve ser feita nos conselhos gestores dos parques ou no Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Cades). No Parque do Ibirapuera, por exemplo, a regra vigente libera exclusivamente espaços fixos para público de até 100 pessoas, mesmo após a concessão.
Goulart confirmou a intenção de manter esse trecho no texto substitutivo, citando que possibilitará a regularização de espaços em atividades há anos. Uma das principais demandas nesse segmento é de empresários da Avenida Atlântica, junto à Represa do Guarapiranga, por exemplo.
No caso da transformação de Zepams em Zeis, a maior parte das demandas levadas por lideranças de moradores ao Legislativo envolve terrenos nas subprefeituras Capela do Socorro, M’Boi Mirim e Parelheiros, na zona sul, e Perus e Jaçanã-Tremembé, na norte. As Zepams foram um dos principais temas tratados nas audiências públicas na Câmara, citadas em menos 20 do total (25).
As Zepams foram criadas no Plano Diretor de 2002, com a delimitação dos perímetros a partir de 2004. Hoje, são cerca de 250 milhões de m², o que representa 16% do território paulistano, majoritariamente na periferia. Não são o único tipo de zoneamento de áreas verdes: há também Zonas Especiais de Preservação (ZEP), voltadas a unidades de conservação, e as Zonas de Preservação e Desenvolvimento Sustentável (ZPDS), ligadas à agricultura, à extração mineral e ao ecoturismo.
Levantamento da Prefeitura identificou que, de 2002 a 2017, 11% do total das Zepams (equivalente a 17 Parques do Ibirapuera) sofreu modificações significativas, com aumento de edificações e supressão ou degradação florestal. Relatórios municipais mais recentes indicam que esse movimento segue em expansão.
Nem todas as modificações significativas foram informais. Parte delas é, inclusive, ligada a obras públicas, como do Rodoanel, por exemplo. Além disso, em alguns casos, os moradores até desconhecem a irregularidade da ocupação.
Outro levantamento recente da Prefeitura identificou que a decorrência de Zepams em áreas de risco aumentou 714%, de 2010 a 2022, chegando a 1,3 milhões de m². Além disso, no ano passado, a Prefeitura conseguiu o aval do Legislativo e do Verde para mudar o zoneamento de Zepams da várzea do Rio Jurubatuba, na zona sul, onde pretende expandir a Marginal do Pinheiros.
A proposta da Câmara envolveria a transformação das Zepams em Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), voltadas à população de baixa renda. Esse tipo de zoneamento é mais valorizado no mercado, por ter menos restrições. Movimento semelhante foi feito pelo Legislativo na elaboração do atual zoneamento (de 2016), com alguns vetos pela gestão Fernando Haddad (PT). Ao todo, a cidade tem 687 perímetros classificados dessa forma, segundo relatório municipal de 2021.
Especialistas ouvidos pelo Estadão falam que essa medida pode causar impacto ambiental. A alternativa indicada na maioria dos casos seria a recuperação das áreas e o direcionamento das famílias de baixa renda para programas habitacionais. Não se descarta que situações pontuais justificariam eventuais demarcações como Zeis, porém seriam exceções.
Outro ponto destacado é que diversos incentivos municipais foram criados desde 2014 (e na nova lei do Plano Diretor) para ampliar a oferta de moradia popular em áreas centrais, aproximando famílias do emprego e de ampla infraestrutura. Além disso, há um grande volume de zonas de interesse social em vigor que não passaram por requalificação, com famílias vivendo ainda em condições precárias.
A mudança em discussão foi facilitada pela revisão do Plano Diretor, promulgada por Nunes em julho após revisão na Câmara, igualmente com relatoria de Goulart. O novo inciso permite rever a classificação das Zepams quando “ocupadas com reflorestamento, agricultura, extrativismo, loteamentos irregulares, assentamentos precários e favelas” e mediante a identificação de que não corresponderiam às características desse tipo de zoneamento.
No texto da lei, é apontado que a mudança envolveria “sobretudo” áreas com terrenos ociosos e sem ocupação significativa, o que permitiria a reclassificação como Zeis-4. A nova lei também permite que a revisão do zoneamento mude a classificação de Zepams para esse mesmo tipo de Zeis no caso de terrenos de florestas plantadas (como de pinus e eucaliptos) com mais de 100 mil m² — que seriam voltados à moradia de baixa renda por meio da doação de 40% da área ao Município.
Segundo o Plano Diretor, as Zepams são áreas voltadas à preservação e proteção ambiental. “Têm, como principais atributos, remanescentes de Mata Atlântica e outras formações de vegetação nativa, arborização de relevância ambiental, vegetação significativa, alto índice de permeabilidade e existência de nascentes”, diz a lei. Envolvem tanto áreas públicas quanto privadas, inclusive parques existentes e previstos no Plano Diretor.
Na lei, diz-se que essas zonas “prestam relevantes serviços ambientais, entre os quais a conservação da biodiversidade, controle de processos erosivos e de inundação, produção de água e regulação microclimática”, como a contenção do avanço da urbanização no cinturão verde metropolitano. A redução dos “impactos de assentamentos precários sobre áreas de proteção ambiental” está entre os objetivos do Plano Diretor em Habitação.
Entre as regras para as Zepams, estão limites variados: atividades em apenas 10% da área, uma residência unifamiliar de até 10 m de altura por lote e permissão restrita a alguns tipos de atividades não residenciais, como ecoturismo, pesquisa, comércio especializado e outras. Um mapeamento recente da Prefeitura aponta que 75% do território com essa classificação tem remanescentes de Mata Atlântica. Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, os demais 25% também têm função ambiental.
O Estadão desenvolveu um mapa interativo do zoneamento hoje em vigor, a partir da base de dados oficial da Prefeitura (Geosampa). O material também permite a busca por endereço. Para visualizar exclusivamente as Zepams, basta selecionar a opção na barra lateral. Mais informações sobre o papel das zonas de proteção ambiental estão na sequência, após a ferramenta.
‘Áreas fundamentais para recarga dos aquíferos e muito declivosas’
As Zepams foram criadas como uma resposta à ocupação desordenada na cidade. Embora marcadas em todas as subprefeituras, estão mais nas bordas da Serra da Cantareira e das represas, áreas de importância para o abastecimento e meio ambiente da cidade.
Doutoranda em Planejamento e Gestão do Território na UFABC e assessora na elaboração do Plano Diretor de 2014, a engenheira agrônoma Maria Lucia Bellenzani explica que a proteção do entorno dos mananciais é fundamental para manter a capacidade de recarga dos aquíferos e, consequentemente, das represas. Também diz que a Serra da Cantareira tem características topográficas “muito declivosas”, com potenciais áreas de risco a moradias ali instaladas.
“Qualquer área permeável é importante, principalmente áreas de recarga de lençóis freáticos, planície aluvial”, destaca. “E toda a vegetação arbórea no contexto urbano é importante, independentemente se tem Mata Atlântica. Mesmo um bosque heterogêneo com espécies exóticas. E se torna cada vez mais importante no contexto que se está vivendo, de emergência climática.”
Para a pesquisadora, uma eventual remarcação deve ser estudada caso a caso, a partir da Carta Geotécnica, do Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica e do Plano Municipal de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres. Também defende que seja discutida publicamente.
“O que vejo é uma tentativa de descaracterização e enfraquecimento do instrumento de Zepam para atender a interesses”, aponta. “A disputa de moradia popular e meio ambiente é um dilema posto no lugar errado. O que a gente precisa viabilizar é a moradia popular em lugares bem localizados. Deveríamos estar pensando em moradia popular de qualidade, e não colocar cada vez mais longe as pessoas. Como a gente sempre fez e deu errado.”
Professor do Instituto das Cidades da Unifesp, o urbanista Kazuo Nakano afirma que esse é um tema que precisa ser discutido com responsabilidade e profundidade. “Em São Paulo, a urbanização foi muito descuidada e prejudicial para o meio ambiente. A gente tem que repensar isso, ver formas de se acomodar melhor, para evitar problemas que a gente vê recorrentemente por conta da emergência climática”, aponta.
Ele salienta que a própria remarcação de Zepams em outros tipos de zonas ao longo dos anos acaba “consolidando perdas ambientais”. Para 2029, por exemplo, há a previsão de envio de um novo Plano Diretor à Câmara, após o qual, serão possivelmente feitas alterações na Lei de Zoneamento.
“Também não dá para pensar que a demarcação de Zeis resolve”, diz. “Precisaria pensar se as Zeis são a solução para isso, porque temos que recuperar o meio ambiente que foi perdido ali, assim como melhorar as condições urbanas. E uma das situações mais dramáticas é nas áreas de proteção dos mananciais”, completa.
Diretor de Arquitetura, Urbanismo e Design na Uninove, Daniel Todtmann Montandon diz que esse é um tema a ser avaliado com cuidado. “Passa uma mensagem muito ruim, de uma cultura de ocupar irregularmente áreas e depois regularizar. Essa lógica de anistia é complicada. Mas não são todos os casos que ocorrem dessa maneira”, avalia. “E a gente sabe que existe certa pressão, nas áreas periféricas, de ter um melhor aproveitamento econômico de uma área que está como Zepam. Quando põe como Zeis, consegue um aproveitamento muito melhor.”
Também ex-diretor do Departamento do Uso do Solo (DEUSO) da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano durante a elaboração do atual zoneamento, Montandon afirma que “dificilmente” algum núcleo com característica de Zeis ficou descoberto na elaboração da lei vigente. “Se por acaso surgiu, precisa ser examinado com cuidado, com a Secretária de Habitação e técnicos. Se for ocupação muito recente, talvez não seja pertinente (mudar o tipo de zona).”
O professor diz, ainda, que o tempo disponível para analisar as demarcações é insuficiente. O mapa completo com as propostas de mudanças será apresentado nesta segunda, 4, com a votação final da revisão em 14 de dezembro. “A pressa que foi colocada não condiz com a natureza e a necessária atenção que tem que se dar para esse assunto.”
Proposta tem amplo apoio na Câmara
A conversão de Zepam em Zeis em alguns trechos da cidade tem amplo apoio na Câmara, vista como necessária para atender uma população que está sem acesso a infraestrutura básica, como saneamento. O apoio a mudanças vai do líder do governo na casa (Fabio Riva, do PSDB) à representante do PSOL na Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente (Silvia Ferraro, da Bancada Feminista).
Um dos únicos opositores é o vereador Eliseu Gabriel (PSB). “Pode servir a interesses de regularizar loteamentos clandestinos. Quem fiscaliza? Não é brincadeira controlar os interesses de determinados grupos. Nenhuma desculpa pode ser dada para destruir Zepam. Se degrada, precisa recuperá-la. São precedentes que se abrem para detonar o nosso ambiente. A gente está na contramão do mundo mais desenvolvido”, disse ao Estadão. “Zeis têm que existir mesmo, mas próximas dos eixos de mobilidade, próximas de onde a pessoa pode encontrar trabalho. Era essa é a ideia.”
A maioria das Zepams da cidade estão na subprefeitura de Parelheiros (55,1% do total), no extremo sul. Na sequência, estão Perus (13,2%), Capela do Socorro (5,2%), M’Boi Mirim (3,7%), Jaçanã-Tremembé (3,5%) e São Mateus (3,3%). Proporcionalmente, a subprefeitura mais ocupada por esse zoneamento é a de Perus (58% do território). O volume é menos significativo na maioria dos bairros centrais.
Em nota, a Secretaria Municipal do Verde diz ter se comprometido a analisar cada uma das demandas de remarcação de Zepams, “a partir do qual, será elaborado um parecer para subsidiar a decisão do Poder Legislativo”. Também reafirmou o trabalho técnico na delimitação das áreas na elaboração do zoneamento de 2016, feita a partir dos critérios do Plano Diretor.
O que foi dito nas audiências públicas
A transformação de Zepams já tinha sido tratada na revisão do Plano Diretor. Em relatórios de contribuições da Prefeitura, é indicada tanto a preocupação de parte da população sobre “conflitos da expansão da mancha urbana sobre regiões ecologicamente mais sensíveis, em especial ocupações irregulares em mananciais” quanto a demanda para resolver a “dificuldade de se promover regularização fundiária em Zepam”.
Nas audiências da revisão do zoneamento da Câmara, as demandas apresentadas por moradores e líderes de associações comunitárias igualmente envolvem tanto a criação de novas Zepams quanto a exclusão. Entre os argumentos para pedidos de reclassificação, estão locais supostamente com a ocupação urbana consolidada, com abertura de vias, CEP e matrículas, por exemplo, nos quais a população não tem acesso a infraestrutura suficiente (como saneamento).
A defesa de novas Zepams também envolve casos variados. Entre eles, estão novas áreas de proteção nas proximidades do território indígena do Jaraguá, na zona norte, na Grota do Bixiga, no centro, e na Vila Anglo Brasileira, na oeste, dentre outros.
Nos três casos, há projetos de prédios altos previstos para os endereços. Esses exemplos mostram que o efeito pode ser limitado, porque o “direito de protocolo” garante a construção de empreendimentos com o zoneamento em vigor na abertura do pedido na Prefeitura, mesmo anos depois. Esse dispositivo de transição chegou a ser questionado em 2018, mas caiu no ano seguinte.
O projeto de lei da revisão reúne outras mudanças significativas antecipadas pelo Estadão. Entre elas, estão o desestímulo à construção de microapartamentos para hospedagem (como Airbnb), a delimitação de quadras com veto e liberação para prédios altos, a proposta de mecanismos para a proteção de vilas, a criação de uma zona especial com regras mais flexíveis em área militar perto do Parque do Ibirapuera e a proibição a ferros-velhos e comércio de material reciclável no centro, dentre outras.
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