“Menina, você viu como seu rosto está cheio de espinhas?”, pergunta a trabalhadora autônoma Janaina Xavier, de 43 anos, passando a mão no rosto da filha, Aline Xavier, de 26. “Será que é por causa da droga?”. “Pode ser”, responde a moça, que fuma crack desde a adolescência. A moldura deste quadro, na Avenida Rio Branco, no centro de São Paulo, é a influência da dependência química nas relações familiares. Ex-usuária de cocaína, a mãe quer tirar a filha da Cracolândia, região onde ela própria viveu décadas atrás.
A mãe usou cocaína dos 19 aos 25, mas diz que está “limpa” há uns 15 anos. Mas o consumo deixou sequelas na família, em sua opinião. “Não tive aquele pulso de mãe para educá-la. Se eu fosse uma mãe mais presente, que não olhasse tanto para a droga e para o álcool, ela não estaria nessa situação”, diz Janaína. “Era a mãe drogada de um lado e a filha drogada de outro”, confessa.
A filha usa drogas desde os 13. Hoje, mais de uma década depois, ela acompanha o fluxo, concentração de usuários e traficantes de drogas na região central. De vez em quando, Aline passa na casa da mãe para tomar banho e ver os outros oito irmãos. Por isso, aquele carinho no rosto é fugaz.
O Estadão corre atrás antes que ela desapareça para voltar sabe-se-lá-quando. “Você pensa em parar de usar crack?”. “Penso, mas quero que seja como foi com a minha mãe: com a ajuda de Deus”. Com um batom vermelho que esconde os poucos dentes que sobraram, Aline responde a mais uma pergunta, já descendo a escada. “Eu uso crack por causa da brisa”, diz, toda pilhada.
A brisa faz parte dos efeitos desejados pelo usuário de drogas, como a sensação de energia, hiperatividade, bem-estar, elevação do estado de alerta. Mas também existem os indesejados, como elevação dos batimentos cardíacos, da pressão sanguínea e até alucinações, depressão, pânico e paranoia.
Havia cumplicidade na pergunta da mãe sobre as espinhas. Uma sabe o que a outra sente. “Sair do vício depende mais dela do que de mim. Ela não quer estar nessa situação, mas não tem força para sair. Vou matar minha filha? Faço tudo para ela sair, mas não vou jogar pedra nem discriminar”, conta Janaína. Esse acolhimento permite até dinheiro para a droga. Se a filha pedir R$ 5, a mãe dá. Os irmãos, também. “Se eu não der, ela vai tentar arrumar o dinheiro de outro jeito”.
Levantamento da Unidade de Pesquisas de Álcool e Drogas (Uniad), vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), de 2019, aponta que 80% dos usuários da Cracolândia saíram de suas casas. Especialistas apontam que os conflitos familiares são a principal razão para levar o usuário à região, onde o padrão de uso é normatizado e a droga está disponível. “Muitas vezes, a família interpreta que apenas o usuário é o problema e prefere não tratar a dinâmica familiar. Com isso, ela os mantém à distância, com visitas esporádicas”, diz Maria Angélica Comis, coordenadora do centro de convivência É de Lei.
Os vínculos familiares se esgarçam, mas não se rompem totalmente na Cracolândia. Mães que visitam os filhos são cenas comuns presenciadas pelas equipes de assistência social. Uma funcionária do Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT) da rua Helvétia, unidade emergencial criada no novo endereço da Cracolândia, conta que ajudou uma mãe chamada Maria de Fátima que tinha viajado do Paraná para tentar encontrar o filho na Praça Princesa Isabel. Foram dois dias de buscas incertas - parentes têm permissão dos traficantes para transitar pelo fluxo. No terceiro dia, Maria descobriu que o filho havia sido preso por tráfico de drogas.
Faltou mencionar como Janaína parou de usar drogas. São vários motivos. O primeiro foi espiritual, com o apoio de igrejas evangélicas, religião que ela adotou. Janaina também pensou nos outros filhos - nenhum dependente químico. Mas houve também um estalo. Foi quando a mãe tentou livrar a filha, então adolescente, da prisão por causa da posse de duas pedras de crack. Não conseguiu.
Enquanto fala, a mãe amamenta a filha caçula, Valentina, sem constrangimento, e tenta acordar a adolescente para a foto da matéria. Na sala, um colchão de casal está encostado na parede. Durante o dia, ele não tem espaço para ficar no chão. Circula por ali a cadela Ravenna. E Janaína confessa recaídas. “Fiquei mal. Cheirei e bebi. Você precisa passar pelas recaídas para entender que não é aquilo que você quer para sua vida”.
Papéis invertidos na busca de Wellington pelo pai na Cracolândia
Não houve abraço nos 32 minutos de conversa entre Jailson Oliveira, de 52 anos, mais da metade deles na Cracolândia, e o filho Wellington Batista da Silva. Tensão. Mágoa. Lavação de roupa suja. Quando o filho se mudou para o centro, quatro anos atrás, ele ficou mais perto de Jailson. Naquela época, o pai tinha se reabilitado.
Foram cinco anos "limpos", nos quais trabalhou em um hotel com carteira registrada e até comprou um carro. O fim do casamento, no entanto, foi o gatilho para uma recaída da qual não se levantou. Jailson alterna os dias entre a Cracolândia e um quarto mantido pelo projeto Teto, Trampo e Tratamento. “É uma relação conturbada até hoje. Cada dia, ele tem uma personalidade diferente. Aprendi a lidar, mas sai faísca”, diz o promotor de vendas de 24 anos.
As faíscas aparecem quando o pai precisa de dinheiro para consumir crack e o filho não dá. “Quando quero usar, não quero saber de mais nada. Só da droga”, admite o pai. “Nessa hora, ele esquece da relação entre pai e filho. Ele que deveria estar me ajudando, mas os papéis são invertidos”, lamenta Wellington.
Diálogo áspero, discussão mesmo. Jailson abandona a mesa duas vezes, mas volta. Gritos. Ele reclama de falta de apoio quando o filho diz que não acredita mais nele. A briga só termina com a intervenção do psiquiatra Flávio Falconi, que atua no programa de atendimento a dependentes químicos da Unifesp. Flávio tenta a internação de Jailson em uma comunidade terapêutica, como ele deseja.
No mês passado, Jailson se internou no programa Redenção, da Prefeitura de São Paulo, dirigido aos indivíduos que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas. Por conta da abstinência, ele ficou apenas dois dias. Não suportou e voltou a usar crack. Antes de encerrar a conversa com o Estadão, ele pede ajuda para um tratamento dentário. Ao entrar em contato direto com a boca, a fumaça do crack danifica o esmalte dos dentes, a gengiva e os nervos. Jailson diz que não consegue dormir por causa das dores.
Pais reproduzem ciclos de abandono; mães são as últimas a desistir, dizem especialistas
Pais e mães têm comportamentos diferentes na relação com os filhos que fazem uso abusivo de substâncias químicas. Enquanto os pais se afastam com mais facilidade, as mães não desistem, fazem visitas e procuram retomar os vínculos nos primeiros momentos do tratamento quando são usuárias. Essa diferenciação é feita pelo psiquiatra Flávio Falconi, que atua na região há dez anos com a redução de danos, estratégia baseada na inclusão social e cidadania ao usuário sem necessariamente interromper completamente o uso da substância.
“A grande maioria dos homens traz histórias de abandono da figura paterna. Quando são usuários, eles reproduzem o ciclo de distanciamento”, diz Falconi. “A mãe é a última a desistir”, completa o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, diretor-presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e uma das maiores autoridades no País de tratamento de dependentes químicos.
Levantamento da Unidade de Pesquisas de Álcool e Drogas (Uniad), vinculada à Unifesp, realizado em 2019, aponta que a população é da Cracolândia é, em sua maioria, composta por homens (68.7%), solteiros (77.6%), com idade média de 35 anos. A maioria (76.6%) declarou ter pele de cor preta ou parda.
Maria Angélica Comis, coordenadora do centro de convivência É de Lei, que atua na região central desde 1998, acrescenta que os homens reproduzem a maneira como agem em outros contextos sociais. “Normalmente, as mães permanecem mais tempo em contato. Na nossa sociedade, é mais comum os pais se afastarem dos filhos quando há uma separação conjugal, por exemplo. Na dependência química, isso não é diferente”, completa.