Quem via Timothy Ray Brown não imaginava que ele foi a primeira pessoa na história a ter sido curada da infecção por HIV. O americano de Seattle, Washington, passou por um tratamento complexo e quase mortal para se livrar do vírus da Aids.
Registrado na literatura médica como "Paciente de Berlim", Brown decidiu abandonar o anonimato em 2010 e mostrar ele mesmo ao mundo a própria a cura. Em 2020, após o retorno da leucemia em um estágio terminal, ele não resistiu e morreu na Califórnia.
Brown esteve em São Paulo em 2019 para participar de uma convenção sobre HIV na USP. Na ocasião, ele conversou com o Estadão, contou a própria trajetória e como lidava com o fato de ser a primeira pessoa a ser curada da doença. A história dele volta à tona em todo 1º de dezembro, data escolhida como Dia Mundial de Combate à Aids.
Timothy não gostava de ser identificado como o “Paciente de Berlim”. “Se os casos são realmente interessantes os cientistas têm de encontrar um modo de se referir àquela pessoa e identificar mais rápido de quem estão falando sem precisar expor o nome do paciente. Como o meu caso ocorreu em Berlim, me chamaram de o ‘Paciente de Berlim’, embora eu não seja de lá”, diz. “Em 2010, decidi dizer ao mundo meu nome e mostrar meu rosto. Quando as pessoas ainda usam ‘Paciente de Berlim’ eu fico meio irritado. Basicamente, dei permissão para usarem meu nome e disse que estou ok com isso.”
Aos 53 anos, Brown aparentava mais idade do que tinha, mas trazia também no olhar o brilho de quem decidiu viver. Ele enfrentou primeiro a Aids em meados de 1990, época em que ser infectado pelo HIV era uma sentença de morte. Depois, em 2006, descobriu ter leucemia que, embora não relacionada com a Aids, foi a chave para lhe devolver a saúde e eliminar o vírus da doença.
Depois de tentar quimioterapia sem muito sucesso, Brown estava desenganado quando a equipe médica decidiu fazer uma última tentativa: um transplante de medula. A sacada foi tentar combater não só a leucemia, mas também o HIV. O vírus precisa de uma proteína presente no sangue para se instalar e reproduzir. Ocorre que algumas pessoas não produzem essa proteína - uma mutação que os permite ser imunes ao vírus.
Estratégia
A estratégia inédita era tentar encontrar para Brown um doador de medula compatível e que tivesse aquela rara mutação genética. A ideia era destruir o sistema imunológico e substituir a medula dele pela do doador, criando um novo mecanismo de defesa e exterminando não só a leucemia, mas também o HIV.
Embora tivesse recebido dois diagnósticos de doenças potencialmente mortais anteriormente e mantido a calma, Brown revelou que só quando estava sozinho no quarto do hospital e com o próprio sistema imunológico destruído é que começou a “enlouquecer”. O grau de vulnerabilidade que sentiu foi tamanho que o fez perder a praticidade com que lidava com a vida.
A experiência deu certo para eliminar a Aids e tornar Brown imune ao HIV, mas a leucemia ainda não tinha sido derrotada. “Neste sentido, a Aids tinha sido ‘fácil’ curar... Não é realmente fácil curar, mas eles tinham feito isso. A leucemia foi bem mais difícil”, lembra. Foi preciso fazer um novo transplante com o mesmo doador para combater o câncer.
O caso pioneiro de sucesso foi publicado em 2009 no periódico New England Journal of Medicine. Em março de 2019 foi anunciado que a eliminação da doença tinha sido obtida uma segunda vez no “Paciente de Londres”.
Brown contou como se sentia com o título de primeira pessoa curada da Aids. “Em algum momento eu já pensei… e eu estou compartilhando algo que nunca falei antes, exceto para meu namorado... Às vezes penso que se houver mais pacientes curados eu não serei mais tão importante. Mas quero que haja sim muito mais curas. Meus pensamentos negativos não estão em sincronia com o meu desejo mais profundo (de uma cura universal).”
Leia a entrevista com Timothy Brown em 2019
O que o senhor pensa sobre te chamarem de o ‘Paciente de Berlim’?
Se os casos são realmente interessantes os cientistas têm que encontrar um modo de se referir àquela pessoa, então eles conseguem entender e identificar mais rápido de quem estão falando sem precisa expor o nome do paciente. Então, como o meu caso ocorreu em Berlim, me chamaram de o ‘Paciente de Berlim’, muito embora eu não seja de lá. Em 2010 eu decidi dizer ao mundo o meu nome e mostrar o meu rosto para que as pessoas me chamassem pelo meu nome.
Mas como se sente sendo chamado assim?
Eu fico meio irritado porque as pessoas às vezes fazem isso para se proteger de processos e usam ‘Paciente de Berlim’ ao invés do meu nome. Eu não vou processar ninguém! Usem meu nome! Basicamente eu dei permissão para usarem meu nome e disse que estou ok com isso. Então em parte eu aceito e em parte não, porque eu entendo os motivos.
Como eram os seus relacionamentos amorosos?
Houve uma época em que eu estava em um relacionamento aberto e eu e meu namorado costumávamos sair com outros caras também. Geralmente eram só encontros casuais, sem compromisso. Às vezes eu os encontrava em parques e bares e ele fazia o mesmo. Mas acabamos terminando o namoro.
Suspeita de quando foi contaminado pelo HIV?
Houve um momento em outubro de 1993 quando fui visitar um amigo e não parava de sentir calafrios. Eu acho que foi ali a minha soroconversão [momento em que o indivíduo passa a ser reagente ao HIV e se torna soropositivo, o que pode ser acompanhado de uma série de sintomas como os da gripe]. Até então o que eu entendia por sexo seguro era dizer para meus parceiros não ejacularem em mim, o que não é exatamente muito esperto. Era o que eu tinha feito em Barcelona pouco tempo antes. Não sei se ele não tinha me entendido ou o que aconteceu, mas ele não me obedeceu e eu fiquei muito irritado. Basicamente, este é o único momento em que eu posso pensar, porque em outros momentos o comportamento foi diferente.
Existem pessoas que praticam o bareback [sexo sem preservativo] desejando contrair HIV. O que você pensa sobre isso?
Isso é algo que nunca entendi. Vez ou outra encontro com pessoas que querem receber uma “ejaculação soropositiva”, ou seja, querem que alguém com HIV ejacule nelas. Eu posso até entender que seja excitante para elas por causa do risco, mas não entendo o desejo.
E quando foi que soube que era soropositivo?
Foi em 1995, eu estava me envolvendo com um cara que me disse: ‘Preciso te contar uma coisa. Fiz o teste de HIV e deu positivo, acho que você deveria fazer também’. E nós não tínhamos nos preocupado em fazer sexo seguro de nenhuma forma, porque ele não queria. Então eu fui e na época era preciso esperar por cerca de três dias. Estava em época de exames na faculdade e acabei não me saindo tão bem quanto poderia, porque não parava de pensar que não tinha tomado cuidado em fazer sexo seguro. Ele achava que se era soropositivo eu também seria. E eu concordava com isso. HIV era algo que eu pensava que provavelmente pegaria em algum momento. Pensava ser inevitável, de certa forma, por ser homem e não muito cuidadoso em fazer sexo seguro. Mas após o diagnóstico o médico sabia bem o que fazer com pacientes soropositivos e ele disse que eu tinha que começar com o tratamento imediatamente.
Como se sentiu?
Eu fiquei chateado, mas eu sempre fui o tipo de pessoa que pensa que não importa o que aconteça eu consigo lidar com a situação e seguir em frente.
Não ficou assustado?
Bom, eu pensei “isso pode ser fatal”, mas… Logo comecei a tomar doses pequenas de AZT, receitadas pelo meu médico para evitar efeitos colaterais.
Que tipo de impacto o diagnóstico teve na sua vida sexual?
Não me impediu, para valer. Eu somente procurava por pessoas que imaginava que não seriam infectadas por mim, que já eram soropositivas. Eu não queria infectar ninguém e procurava me assegurar disso.
Como foi viver com HIV na Alemanha?
Berlim é muito aberta e não muito preconceituosa com pessoas com HIV, então eu me senti confortável o bastante para contar aos meus chefes no café em que trabalhava e também aos colegas que eu era soropositivo. Não é que eu anunciasse em voz alta "ei, eu tenho HIV, quer um café?", mas todo mundo foi bastante acolhedor e me apoiou como em uma família, então foi tudo bem. Por muitos anos eu não pensei mais no HIV de nenhuma forma. Eu basicamente não queria me lembrar que tinha HIV. Era algo que eu tinha, só que não me afetava realmente. Mas continuava tomando os remédios.
Depois do transplante e de combater HIV e leucemia, qual foi a pior e a melhor parte disso tudo?
Depois do segundo transplante eu me lembro de estar no hospital, me sentindo muito solitário, embora meu ex-namorado viesse sempre me visitar - e eu esqueci de mencionar que ele tinha rompido o namoro comigo por causa de um cara hétero da academia. Ele disse ‘eu vou me mudar para o apartamento dele e é assim que vai ser, nós nunca mais vamos voltar a ficar juntos’. Porque ele sentia que tinha feito tanto por mim e eu nunca tinha dado o devido valor. Mas eu tinha dado! Eu sentia que eu realmente precisava dele, e, de fato, mesmo depois que ele rompeu comigo, ele ainda vinha me acompanhar no hospital todo dia. E ele sempre estava ao meu lado para tudo. Por exemplo: em um momento a equipe médica chegou à conclusão de que tinha feito tudo o que poderia por mim. Então eles me mandaram para casa e enviaram um enfermeiro para me administrar morfina. Basicamente, eles iriam me deixar morrer sob o efeito da morfina. E meu ex disse ‘isso não pode ficar assim. Eu acho que nós podemos sim reverter esse quadro! Por que eles estão desistindo?’. Ele me conseguiu um centro de tratamento de pessoas com danos cerebrais severos, porque na época eu não conseguia me mexer, e com a ajuda de um fisioterapeuta eu recuperei a capacidade de andar. A comunidade médica tenta tomar todo o crédito por ter me curado, mas na realidade ele foi uma das razões porque eu me curei. E eu o amo muito por isso!
E aí ele terminou contigo! (risos) Está me dizendo que depois disso tudo a pior parte foi um coração partido?
Sim, apesar de que eu realmente posso entender [o lado dele]. Mas nós ainda somos muito próximos um do outro. Ele está na Alemanha, eu aqui, mas a gente se fala por WhatsApp o tempo todo. Tim [o atual namorado] o conheceu e nós vamos juntos para Berlim no aniversário dele, em junho. Então ainda somos muito próximos.
E a melhor parte?
A melhor parte… Esqueci de dizer que teve um momento enquanto eu estava no hospital que eu senti que não queria viver mais. Foi a primeira vez na vida que eu me senti assim. E eu sempre tive uma vontade muito forte de viver, então esse foi um sentimento realmente estranho. A melhor parte é que eu estou curado, evoluindo bem e eu praticamente nunca fico doente. Eu me sinto muito saudável agora.
Mas eu tenho a impressão de que esta é a resposta esperada… Ser grato à cura. Mas é isso mesmo? Qual foi o impacto da cura na sua vida?
O principal impacto é que eu posso ter uma vida sexual totalmente livre. [Risos] Uso Prep [a profilaxia pré-exposição, um remédio de uso contínuo para prevenir o contágio pelo HIV] e, para me prevenir de outras doenças sexualmente transmissíveis, eu uso doxiciclina. Basicamente, previno tudo antes de acontecer. Essa é a melhor parte.
Você enfrentou vários momentos de vida ou morte. Qual é a sua relação com a morte?
Eu não quero morrer! Definitivamente eu tenho uma determinação muito forte de continuar vivo. E eu acho que seria realmente muito trágico se eu fosse atropelado por um carro qualquer dia desses! [risos] Eu ando de bicicleta sem capacete, então eu me acho ‘o invencível’.
Qual a importância que você dá para este título, de primeira pessoa curada do HIV?
Em algum momento já eu pensei… e eu estou compartilhando algo que nunca falei antes, exceto paro o meu namorado… Às vezes eu penso que se houver mais pacientes curados eu não serei mais tão importante. Mas, ainda assim, eu estou expressando a minha opinião de que eu quero que hajam sim muitas mais curas. Então meio que meus pensamentos negativos não estão em sincronia com o meu desejo mais profundo [de uma cura universal].