A morte não é opcional. Por isso, precisamos falar de cuidados paliativos, diz psiquiatra canadense


Harvey Max Chochinov é autor do livro ‘Terapia da Dignidade: Finitude, legado e dignidade nos cuidados paliativos’; segundo ele, esse tipo de abordagem é muito básico e precisa ser respeitado

Por Leon Ferrari
Foto: University of Manitoba
Entrevista comHarvey Max ChochinovPsiquiatra e autor do livro ‘Terapia da Dignidade: Finitude, legado e dignidade nos cuidados paliativos’

Se a maioria de nós evita ao máximo pensar ou falar sobre a morte, ela é quase “onipresente” na rotina do psiquiatra canadense Harvey Max Chochinov. Pesquisando cuidados paliativos há 35 anos, o médico não passa um dia sequer sem pensar em como tornar os últimos dias das pessoas melhores e mais dignos.

Os cuidados paliativos representam uma abordagem ou um tratamento que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças que ameacem a continuidade da vida, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Eles envolvem desde controlar a dor e tratar sintomas até proporcionar conforto emocional e espiritual.

A maioria dos brasileiros em situação ameaçadora à vida não tem acesso a cuidados paliativos adequadamente, avalia a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). O Atlas de 2022 da instituição aponta para um avanço significativo de serviços, mas, mesmo assim, são apenas 234 – e a maior parte fica concentrada no Sudeste. Uma política nacional foi aprovada apenas no ano passado.

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Para Chochinov, o acesso a esse tipo de cuidado é algo “muito básico” e precisa ser respeitado. A maneira inovadora com a qual tratou a prática lhe rendeu um espaço no hall da fama médico do Canadá. “Ele moldou o panorama dos cuidados paliativos em todo o mundo”, afirma a organização de caridade responsável por escolher os laureados.

E isso é verdade. A “terapia da dignidade”, que desenvolveu junto a colegas, é aplicada, com pequenas adaptações, ao redor do mundo e em diferentes culturas. Trata-se de uma das psicoterapias mais estudadas dentro dos cuidados paliativos. Chochinov estima que mais de 100 artigos já foram publicados sobre o método – fora os estudos ainda em curso.

O maior deles saiu em janeiro deste ano na revista científica Journal of Palliative Medicine e foi feito com 579 pacientes idosos com câncer em cuidados paliativos. Ao compará-los com o grupo controle, que não recebeu essa psicoterapia, os pesquisadores conseguiram demonstrar a eficácia da terapia na melhoria da dignidade dos adultos mais velhos.

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“Uma hipótese central do nosso estudo foi que a terapia da dignidade influencia em domínios espirituais e existenciais importantes, como a necessidade de significado, as preocupações com a família e a necessidade de um legado”, escreveram os pesquisadores, liderados por Diana Wilkie, da Faculdade de Enfermagem da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos.

Composta de uma série de perguntas pré-definidas, mas que seguem um caminho bastante orgânico, essa psicoterapia tem como objetivo guiar as pessoas a encontrar uma maneira de serem lembradas ou de ter sua sabedoria transmitida. O passo a passo dela foi publicado em livro homônimo, em 2011, que ganhou uma versão brasileira: “Terapia da Dignidade: Finitude, legado e dignidade nos cuidados paliativos”, da Editora Manole (2023).

Ela é resultado do chamado “modelo de dignidade”, que ajudou Chochinov e colegas a entenderem como trazer mais conforto e bem-estar no fim da vida. A preservação da dignidade, eles descobriram, é um dos principais preditores da vontade de continuar vivendo ou não.

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Os cuidados paliativos representam uma abordagem ou um tratamento que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de graves doenças. Nesse sentido, um dos pontos de partida é tratar o paciente com dignidade, e não como sinônimo de uma condição de saúde. Foto: Chinnapong/Adobe Stock

A dignidade, por sua vez, está intimamente ligada à identidade ou à afirmação da identidade. Afinal, ninguém quer ser encarado como uma doença. “Não queremos ser vistos apenas como uma doença cardíaca terminal ou um delírio agudo intermitente ou falência renal. Esses são rótulos genéricos que damos aos pacientes. Mas não há nada de genérico sobre pessoas. Cada um de nós é único”, afirmou, em entrevista ao Estadão.

Agora que se aproxima do que chama de “crepúsculo” de sua carreira, ele quer compartilhar o que entende por cuidar com dignidade. Em 2022, publicou o livro “Dignity in Care”, no qual fornece insights de como alcançar o lado humano na Medicina. “Quando ensino, estou tentando falar não apenas para públicos interessados em cuidados paliativos, mas para qualquer pessoa interessada em cuidar de seres humanos. Porque o respeito e a dignidade importam em todo o ciclo da vida.”

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Confira os principais trechos da entrevista:

Você escreveu que, ao ensinar sobre cuidados paliativos ao redor do mundo, sempre se impressionou com o fato de as pessoas serem muito semelhantes, no sentido que compartilhamos preocupações e lutas comuns sobre como lidar com a vulnerabilidade e a inevitabilidade da morte. Como a humanidade encara a morte?

Me senti surpreso e, de certa forma, até encorajado ao ver como somos similares uns aos outros. Somos diferentes de algumas maneiras, mas, quando se trata de coisas que são tão inerentemente humanas, somos todos muito parecidos. Quando se trata de morte, as pessoas estão ansiosas, com medo. A morte é o grande desconhecido, e tanto é assim que quase se torna algo que realmente não pode ser falado ou sobre o qual se fala muito pouco.

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Parece muito clichê dizer isso, mas somos uma sociedade que nega a morte. A verdade é que não dedicamos muito tempo prestando muita atenção à morte até que nós mesmos ou aqueles próximos a nós enfrentam uma condição de risco de vida. Temos medo das dimensões incompreensíveis da não existência.

Somos uma sociedade que nega a morte

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Nas suas palavras, o que é a terapia da dignidade?

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É uma intervenção psicoterapêutica de curta duração que desenvolvi junto a colegas há duas décadas. Na época, foi projetada para pessoas que tinham uma condição que coloca a vida em risco ou limita a vida. Ao longo dos últimos anos, ela se expandiu para uma variedade de áreas, sendo utilizada com idosos frágeis, pessoas com desafios de saúde mental, cuidados com demência e até mesmo em pacientes que estão chegando ao fim da vida em prisões.

Dito isso, a terapia da dignidade foi projetada como uma intervenção em cuidados paliativos. É guiada por um terapeuta treinado e oferece às pessoas a oportunidade de falar sobre coisas que gostariam que fossem conhecidas, coisas que gostariam de dizer antes de saírem desta vida. O que for dito vai ser incorporado a um documento. A conversa é gravada, transcrita, editada e, então, devolvida àquela pessoa para que ela dê a quem sente que gostaria de tê-la.

Qual a sua opinião sobre o uso dessa terapia em outras áreas que não somente nos cuidados paliativos?

Clinicamente, a terapia da dignidade se torna apropriada no momento em que um paciente alcança o que eu chamo de prontidão existencial. Sabemos que quando você enfrenta um evento importante na vida, especialmente um evento traumático, algo que mina sua saúde ou que muda seu prognóstico em termos de expectativa de vida, é levado a lugar reflexivo. E o que aprendemos ao longo dos anos é que há algo muito terapêutico em ser capaz de aproveitar esse momento no tempo para refletir sobre onde você esteve, o que importa para você, e tentar de alguma forma integrar isso.

Certamente, quando as pessoas estão próximas do fim da vida, muitas vezes estão nesse lugar de prontidão existencial, de querer refletir. Mas fizemos estudos da terapia da dignidade em pessoas que não enfrentam uma morte iminente, como idosos em lar de cuidados, e muitos deles já estão refletindo sobre o curso de suas vidas.

Quando você enfrenta um evento importante na vida, especialmente um traumático, é levado a um lugar reflexivo

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Quando buscamos um médico, queremos uma resposta, um tratamento, um prognóstico, principalmente se tratando de pacientes que enfrentam um risco iminente de morte. Mas me parece que a terapia da dignidade é muito mais sobre perguntas do que respostas. Como os pacientes lidam com essa quebra de expectativa?

É verdade que não estamos fornecendo a eles uma resposta de uma maneira tradicional, mas estamos oferecendo respostas para questões que eles têm tentado resolver há muito tempo, por exemplo: como minha família vai se virar sem mim? Como meus filhos vão me conhecer? Como posso garantir que meu marido entenda que nosso amor não o impede de encontrar outra pessoa para compartilhar a vida?

Isso dá às pessoas uma plataforma para poder responder a esses tipos de perguntas por si mesmas, criando um legado muito enriquecedor. Muitas pessoas pensam em fazer isso, mas elas travam, porque é muito emocional, é avassalador, e elas não sabem necessariamente como juntar tudo isso.

Você escreveu que, embora tratar com dignidade sempre foi o parâmetro na medicina, muito pouco se sabia ou pesquisava sobre o tema. O que é dignidade?

Decidimos estudar a dignidade porque notamos que, ao olhar para lugares como Holanda e Bélgica, onde a eutanásia e o suicídio assistido estavam ocorrendo, os estudos que surgiam nos diziam que a principal razão pela qual os pacientes buscavam uma morte acelerada era devido a uma perda de senso de dignidade, segundo relatos dos médicos que os haviam atendido.

Pensamos: ‘Se a dignidade é um motivo pelo qual vale a pena morrer, então vale a pena ser estudada’. Começamos a olhar para a literatura mundial – e isso remonta à metade dos anos 1990 –, e o que estava escrito sobre dignidade não era científico. Ela era usada como um poderoso argumento final para apoiar sua posição. Então, se você apoiasse a eutanásia e o suicídio assistido, diria que se trata de uma questão de dignidade humana: ‘Meu corpo, minha autonomia, isso é sobre dignidade’. E se você não aprovasse, diria: ‘É tirar a vida humana, isso é sobre dignidade humana’.

Não somos filósofos, não somos a polícia moral: somos médicos e profissionais de saúde interessados em tentar descobrir como podemos ajudar as pessoas conforme elas se aproximam do final da vida. A razão pela qual tenho interesse no desejo de morrer é porque se as pessoas estão em uma situação na qual não querem mais viver, há algo acontecendo, ou não acontecendo, em seu cuidado que precisamos estar atentos?

Começamos, então, a fazer alguns dos primeiros estudos científicos sobre dignidade. Uma das descobertas iniciais, que para mim foi uma epifania, foi de que a coisa que mais predizia a dignidade em uma grande coorte, com mais de 200 pacientes terminais, era como eles se percebiam sendo vistos, a noção de aparência. Isso é muito interessante. A maneira como eles percebiam que os outros lhes enxergavam era o preditor mais poderoso de dignidade. Sempre pensei que bons cuidados paliativos se tratava do que fazemos ao paciente, e os dados estavam dizendo que o preditor mais poderoso de dignidade era como nós, os provedores de saúde, enxergávamos os pacientes.

Metaforicamente falando, o que essa descoberta está dizendo é que os pacientes estão procurando um reflexo nos olhos do provedor de saúde que irá confirmar seu senso de dignidade. Se estou indo ao médico e a única coisa que vejo refletida em seus olhos é minha doença, sinto que me tornei minha doença. Eu não sou mais eu. Mas, se o que vejo refletido em seus olhos também inclui a imagem que me contém, quem sou eu como pessoa, sinto que minha dignidade foi preservada.

E isso não é apenas verdade quando estamos no final da vida: é para todas as vezes que você entra no consultório de um médico. Ninguém quer ser visto apenas como sua doença. De repente, tudo o que você se torna é aquele caroço ou aquela dor. As pessoas querem continuar a ser vistas e apreciadas na totalidade do que são como seres humanos.

Como definimos a dignidade? Sabemos que tem muito a ver com o nosso trabalho (como profissionais de saúde) e tem muito a ver com como somos apreciados ou percebidos. É sobre a preservação da pessoa. Há uma infinidade de coisas que afetam a dignidade, e elas não são hierárquicas. Isso significa que, para algumas pessoas, estar limpo, estar sem dor, é a essência da preservação da dignidade. Para outras, é muito mais sobre uma jornada espiritual. Mas, para muitas pessoas, é sobre tentar preservar sua essência.

Lendo seus livros me pareceu que dignidade tem uma forte e íntima relação com identidade. É isso mesmo? Por que a identidade e a afirmação de uma identidade são tão importantes para nós?

Porque atinge o cerne de quem somos, da nossa essência, e é aí que a tensão surge em relação à Medicina. No momento em que cruzamos o limiar da clínica ou do hospital, nos tornamos pacientes. Agora, um paciente é definido de uma forma muito genérica. Um paciente cardíaco, um paciente com câncer, um paciente psiquiátrico. Em outras palavras, você se torna definido com base em ‘equipamentos’ muito padronizados que todos temos em nossa mente e nosso corpo e que começam a falhar.

Quando nos tornamos pacientes, somos entendidos dessas formas genéricas. Quando isso acontece, não apenas começamos a perder nosso senso de identidade, mas começamos a sofrer. E o sofrimento, como escreveu (o médico e escritor americano) Eric Cassell, é aquele tipo de estado subjetivo, aquele estado onde a integridade de quem somos como seres humanos está sob ataque ou ameaçada de desintegração. Se você está em um lugar onde a essência de quem você é não pode mais ser expressa ou não está mais sendo reconhecida, seu sofrimento será proporcional a isso.

Como ensinar empatia para os profissionais de saúde em formação, e incentivar um cuidado mais humanizado?

Uma das descobertas profundas que fizemos no início de nossa pesquisa foi que o olhar do profissional de saúde afeta a experiência do paciente. Anos atrás, publiquei um artigo no qual explico que todo provedor de saúde precisa saber os “ABCDs” do cuidado conservador da dignidade, já que eles influenciam nessa experiência. São eles: ‘A’ de atitude; ‘B’ de comportamento (behavior, em inglês); ‘C’ de compaixão, ou seja, a capacidade de entender o sofrimento de outra pessoa e ser atencioso com isso; e ‘D’ para diálogo, conversas, especialmente aquelas que afirmam a personalidade. Por isso, introduzimos a pergunta sobre dignidade do paciente. Você precisa descobrir quem é essa pessoa.

Lembro-me de uma reunião em uma grande instalação de saúde nos EUA que queria começar a empregar parte do meu trabalho. Um médico neurologista disse: ‘Olha, sou muito ocupado’. Então, eu perguntei: ‘Você tem tempo suficiente para perguntar a alguém o que você precisa saber sobre ela como pessoa, como ser humano, para poder cuidar bem dela?’. É uma conversa que não leva muito tempo. Mostramos em nossos estudos que de cinco a dez minutos são suficientes para descobrir coisas profundas sobre quem é esse indivíduo como ser humano.

Os pacientes estão procurando um reflexo nos olhos do provedor de saúde que irá confirmar seu senso de dignidade

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Também introduzimos algo que chamo de regra de platina. Precisamos entender que nosso olhar, como profissionais de saúde, é influenciado e moldado por certos preconceitos. Isso não é acusatório, é simplesmente a realidade. Todos nós somos ensinados que certas coisas têm valor e outras, não. Costumamos usar a nós mesmos como um parâmetro do que os pacientes querem ou precisam. É a regra de ouro: trate os outros como você gostaria de ser tratado.

Mas há limitações à regra de ouro se isso significa que estou impondo um padrão externo em relação ao que o outro pode querer ou precisar conforme eu percebo (o mundo). Às vezes, o que vemos é diferente do que os pacientes veem. Então, a regra de platina é outra ferramenta que podemos usar para treinar os profissionais de saúde. Não apenas é importante descobrir sobre as pessoas, mas é importante entender a si mesmo. É importante entender como você, suas atitudes e sua disposição podem influenciar o que acontece em uma consulta.

A maioria das pessoas não têm acesso a cuidados paliativos no Brasil. Só no ano passado tivemos a aprovação de uma política nacional de cuidados paliativos. Quão preocupante é isso?

Não conheço os serviços de cuidados paliativos disponíveis em seu País, mas o que você me diz é angustiante e preocupante. Brasileiros, tanto quanto canadenses, americanos e europeus, precisam de certas coisas no final da vida, porque são humanos. Precisam de um bom controle da dor, um bom controle dos sintomas, de pessoas que entendam os desafios psicológicos, emocionais e espirituais de chegar ao fim da vida.

Essas são necessidades humanas muito básicas. A ausência disso é trágica, porque só morremos uma vez. Queremos fazer o certo, e queremos acertar para aquela pessoa porque ela merece isso e também porque molda a maneira como a família lembrará daquela morte e antecipa a sua própria. O que você me diz é angustiante e mostra que há muito trabalho a ser feito.

Como acompanhar a oferta de cuidados paliativos para um ente querido pode impactar a percepção sobre a morte e também a saúde mental da família? Como é possível tornar essa experiência melhor para eles?

Primeiro, as coisas que afetam a dignidade de um paciente de muitas maneiras são exatamente as mesmas coisas que afetam a de um membro da família que testemunha o que está acontecendo. Se você vê alguém que ama sendo tratado de uma maneira muito genérica, como qualquer outro paciente, sem reconhecimento de quem ele é, você sentirá que a pessoa pela qual você se importa não está sendo vista. Quando tratamos nossos pacientes com dignidade, os membros da família terão a tranquilidade de saber que a pessoa que amam está sendo reconhecida e vista.

Outra coisa para ajudar as famílias é que elas precisam entender que desempenham um papel fundamental. Você pode ter um médico segurando sua mão e dizendo: ‘Você parece ser um cara muito bom, brilhante’. Mas se sua mãe ou seu pai, sua irmã, alguém que te conhece, segura sua mão, eles não precisam dizer isso, não precisam dizer ‘você é um cara incrível’, você pode sentir isso em seu DNA.

Lembro-me do relato de um homem cuja esposa estava perto do fim, e ele se sentia inútil. Ele dizia: ‘Tudo que posso fazer é segurar a mão dela, assistir TV até adormecermos’. Lembro-me de dizer a ele: ‘Não há mais ninguém neste planeta que possa segurar a mão de sua esposa como você faz, e lembrá-la de que ela é a mulher por quem você se apaixonou’. Ninguém pode substituir o que a família pode fazer.

A discussão social sobre cuidados paliativos no Brasil é bastante embrionária. O que é preciso para mudar esse panorama, e quão importante é falar sobre eles?

É muito importante falar sobre cuidados paliativos. A taxa de morte ao longo do milênio não mudou: é uma por pessoa. Não podemos mudar isso. Podemos tentar não olhar para isso. Podemos ignorar. Fingir que não é assim.

Como sociedade, se falarmos sobre isso, estaremos em uma posição na qual podemos fazer melhor. As pessoas poderão se sentir mais confortáveis, expressar seus desejos, e poderemos garantir que recebam o melhor cuidado possível.

Você diz que o Brasil tem tão pouco em termos de cuidados paliativos. Por quê? Há razões políticas, financeiras, mas também tem a ver com o fato de que ninguém quer falar sobre isso. Se ninguém está falando sobre isso, então parece que não há necessidade de fazer nada a respeito. Por que jogar dinheiro no silêncio? Os mortos não estão mais aqui para falar, os enlutados estão muito sobrecarregados para falar e os moribundos estão muito doentes para falar.

Quem será a voz que dirá que morrer importa? O ponto é que a morte é uma inevitabilidade, não é opcional, e é por isso que precisamos falar sobre cuidados paliativos.

A taxa de morte ao longo do milênio não mudou: é uma por pessoa. Não podemos mudar isso

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Como anos de estudos sobre pessoas com poucos meses ou dias de vida mudaram a maneira como você encara a morte de maneira geral e a sua própria?

A morte é uma parte importante da vida, e todos merecemos ter uma morte na qual nos seja proporcionado conforto, cuidado de qualidade e a segurança de saber que seremos cuidados como em qualquer outro momento durante nossa vida. Todo ser humano merece isso.

A propósito, em termos de cuidados paliativos, nos últimos 20 anos eles são cada vez mais vistos como algo que deve ser aplicado mais cedo. Não é apenas sobre o que seus últimos dias parecem, mas sobre como é a vida para você depois de ser diagnosticado com uma doença que ameaça ou limita sua vida. Os cuidados paliativos precisam estar presentes muito antes na trajetória de uma doença para garantir que sua qualidade de vida seja boa. É muito importante que não nos esqueçamos de que bons cuidados paliativos não têm a ver apenas sobre como você morre, mas de como você vive até morrer, e isso começa mais cedo na trajetória da doença.

Pessoalmente, cheguei a um lugar em que entendo que morrer é inevitável e estou muito mais focado na qualidade do tempo que tenho aqui. Sinto uma certa pressão de saber que meu tempo é limitado. Há coisas que quero realizar.

Agora, estou trabalhando em dois livros. Eles serão concluídos? Tenho vários projetos de pesquisa dos quais participo. Eles serão concluídos? Acabei de me tornar avô. Por quanto tempo estarei por perto para deixar uma impressão no meu neto? Ele vai me conhecer como pessoa? O foco para mim está mais naquilo que serei capaz de fazer, de me engajar e experimentar até o momento da minha morte. É mais sobre tentar otimizar o que posso fazer enquanto estou vivo para tornar isso mais rico, significativo e importante possível. Porque uma vez que eu tenha partido, estou ciente de que será por muito tempo.

Se a maioria de nós evita ao máximo pensar ou falar sobre a morte, ela é quase “onipresente” na rotina do psiquiatra canadense Harvey Max Chochinov. Pesquisando cuidados paliativos há 35 anos, o médico não passa um dia sequer sem pensar em como tornar os últimos dias das pessoas melhores e mais dignos.

Os cuidados paliativos representam uma abordagem ou um tratamento que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças que ameacem a continuidade da vida, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Eles envolvem desde controlar a dor e tratar sintomas até proporcionar conforto emocional e espiritual.

A maioria dos brasileiros em situação ameaçadora à vida não tem acesso a cuidados paliativos adequadamente, avalia a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). O Atlas de 2022 da instituição aponta para um avanço significativo de serviços, mas, mesmo assim, são apenas 234 – e a maior parte fica concentrada no Sudeste. Uma política nacional foi aprovada apenas no ano passado.

Para Chochinov, o acesso a esse tipo de cuidado é algo “muito básico” e precisa ser respeitado. A maneira inovadora com a qual tratou a prática lhe rendeu um espaço no hall da fama médico do Canadá. “Ele moldou o panorama dos cuidados paliativos em todo o mundo”, afirma a organização de caridade responsável por escolher os laureados.

E isso é verdade. A “terapia da dignidade”, que desenvolveu junto a colegas, é aplicada, com pequenas adaptações, ao redor do mundo e em diferentes culturas. Trata-se de uma das psicoterapias mais estudadas dentro dos cuidados paliativos. Chochinov estima que mais de 100 artigos já foram publicados sobre o método – fora os estudos ainda em curso.

O maior deles saiu em janeiro deste ano na revista científica Journal of Palliative Medicine e foi feito com 579 pacientes idosos com câncer em cuidados paliativos. Ao compará-los com o grupo controle, que não recebeu essa psicoterapia, os pesquisadores conseguiram demonstrar a eficácia da terapia na melhoria da dignidade dos adultos mais velhos.

“Uma hipótese central do nosso estudo foi que a terapia da dignidade influencia em domínios espirituais e existenciais importantes, como a necessidade de significado, as preocupações com a família e a necessidade de um legado”, escreveram os pesquisadores, liderados por Diana Wilkie, da Faculdade de Enfermagem da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos.

Composta de uma série de perguntas pré-definidas, mas que seguem um caminho bastante orgânico, essa psicoterapia tem como objetivo guiar as pessoas a encontrar uma maneira de serem lembradas ou de ter sua sabedoria transmitida. O passo a passo dela foi publicado em livro homônimo, em 2011, que ganhou uma versão brasileira: “Terapia da Dignidade: Finitude, legado e dignidade nos cuidados paliativos”, da Editora Manole (2023).

Ela é resultado do chamado “modelo de dignidade”, que ajudou Chochinov e colegas a entenderem como trazer mais conforto e bem-estar no fim da vida. A preservação da dignidade, eles descobriram, é um dos principais preditores da vontade de continuar vivendo ou não.

Os cuidados paliativos representam uma abordagem ou um tratamento que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de graves doenças. Nesse sentido, um dos pontos de partida é tratar o paciente com dignidade, e não como sinônimo de uma condição de saúde. Foto: Chinnapong/Adobe Stock

A dignidade, por sua vez, está intimamente ligada à identidade ou à afirmação da identidade. Afinal, ninguém quer ser encarado como uma doença. “Não queremos ser vistos apenas como uma doença cardíaca terminal ou um delírio agudo intermitente ou falência renal. Esses são rótulos genéricos que damos aos pacientes. Mas não há nada de genérico sobre pessoas. Cada um de nós é único”, afirmou, em entrevista ao Estadão.

Agora que se aproxima do que chama de “crepúsculo” de sua carreira, ele quer compartilhar o que entende por cuidar com dignidade. Em 2022, publicou o livro “Dignity in Care”, no qual fornece insights de como alcançar o lado humano na Medicina. “Quando ensino, estou tentando falar não apenas para públicos interessados em cuidados paliativos, mas para qualquer pessoa interessada em cuidar de seres humanos. Porque o respeito e a dignidade importam em todo o ciclo da vida.”

Confira os principais trechos da entrevista:

Você escreveu que, ao ensinar sobre cuidados paliativos ao redor do mundo, sempre se impressionou com o fato de as pessoas serem muito semelhantes, no sentido que compartilhamos preocupações e lutas comuns sobre como lidar com a vulnerabilidade e a inevitabilidade da morte. Como a humanidade encara a morte?

Me senti surpreso e, de certa forma, até encorajado ao ver como somos similares uns aos outros. Somos diferentes de algumas maneiras, mas, quando se trata de coisas que são tão inerentemente humanas, somos todos muito parecidos. Quando se trata de morte, as pessoas estão ansiosas, com medo. A morte é o grande desconhecido, e tanto é assim que quase se torna algo que realmente não pode ser falado ou sobre o qual se fala muito pouco.

Parece muito clichê dizer isso, mas somos uma sociedade que nega a morte. A verdade é que não dedicamos muito tempo prestando muita atenção à morte até que nós mesmos ou aqueles próximos a nós enfrentam uma condição de risco de vida. Temos medo das dimensões incompreensíveis da não existência.

Somos uma sociedade que nega a morte

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Nas suas palavras, o que é a terapia da dignidade?

É uma intervenção psicoterapêutica de curta duração que desenvolvi junto a colegas há duas décadas. Na época, foi projetada para pessoas que tinham uma condição que coloca a vida em risco ou limita a vida. Ao longo dos últimos anos, ela se expandiu para uma variedade de áreas, sendo utilizada com idosos frágeis, pessoas com desafios de saúde mental, cuidados com demência e até mesmo em pacientes que estão chegando ao fim da vida em prisões.

Dito isso, a terapia da dignidade foi projetada como uma intervenção em cuidados paliativos. É guiada por um terapeuta treinado e oferece às pessoas a oportunidade de falar sobre coisas que gostariam que fossem conhecidas, coisas que gostariam de dizer antes de saírem desta vida. O que for dito vai ser incorporado a um documento. A conversa é gravada, transcrita, editada e, então, devolvida àquela pessoa para que ela dê a quem sente que gostaria de tê-la.

Qual a sua opinião sobre o uso dessa terapia em outras áreas que não somente nos cuidados paliativos?

Clinicamente, a terapia da dignidade se torna apropriada no momento em que um paciente alcança o que eu chamo de prontidão existencial. Sabemos que quando você enfrenta um evento importante na vida, especialmente um evento traumático, algo que mina sua saúde ou que muda seu prognóstico em termos de expectativa de vida, é levado a lugar reflexivo. E o que aprendemos ao longo dos anos é que há algo muito terapêutico em ser capaz de aproveitar esse momento no tempo para refletir sobre onde você esteve, o que importa para você, e tentar de alguma forma integrar isso.

Certamente, quando as pessoas estão próximas do fim da vida, muitas vezes estão nesse lugar de prontidão existencial, de querer refletir. Mas fizemos estudos da terapia da dignidade em pessoas que não enfrentam uma morte iminente, como idosos em lar de cuidados, e muitos deles já estão refletindo sobre o curso de suas vidas.

Quando você enfrenta um evento importante na vida, especialmente um traumático, é levado a um lugar reflexivo

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Quando buscamos um médico, queremos uma resposta, um tratamento, um prognóstico, principalmente se tratando de pacientes que enfrentam um risco iminente de morte. Mas me parece que a terapia da dignidade é muito mais sobre perguntas do que respostas. Como os pacientes lidam com essa quebra de expectativa?

É verdade que não estamos fornecendo a eles uma resposta de uma maneira tradicional, mas estamos oferecendo respostas para questões que eles têm tentado resolver há muito tempo, por exemplo: como minha família vai se virar sem mim? Como meus filhos vão me conhecer? Como posso garantir que meu marido entenda que nosso amor não o impede de encontrar outra pessoa para compartilhar a vida?

Isso dá às pessoas uma plataforma para poder responder a esses tipos de perguntas por si mesmas, criando um legado muito enriquecedor. Muitas pessoas pensam em fazer isso, mas elas travam, porque é muito emocional, é avassalador, e elas não sabem necessariamente como juntar tudo isso.

Você escreveu que, embora tratar com dignidade sempre foi o parâmetro na medicina, muito pouco se sabia ou pesquisava sobre o tema. O que é dignidade?

Decidimos estudar a dignidade porque notamos que, ao olhar para lugares como Holanda e Bélgica, onde a eutanásia e o suicídio assistido estavam ocorrendo, os estudos que surgiam nos diziam que a principal razão pela qual os pacientes buscavam uma morte acelerada era devido a uma perda de senso de dignidade, segundo relatos dos médicos que os haviam atendido.

Pensamos: ‘Se a dignidade é um motivo pelo qual vale a pena morrer, então vale a pena ser estudada’. Começamos a olhar para a literatura mundial – e isso remonta à metade dos anos 1990 –, e o que estava escrito sobre dignidade não era científico. Ela era usada como um poderoso argumento final para apoiar sua posição. Então, se você apoiasse a eutanásia e o suicídio assistido, diria que se trata de uma questão de dignidade humana: ‘Meu corpo, minha autonomia, isso é sobre dignidade’. E se você não aprovasse, diria: ‘É tirar a vida humana, isso é sobre dignidade humana’.

Não somos filósofos, não somos a polícia moral: somos médicos e profissionais de saúde interessados em tentar descobrir como podemos ajudar as pessoas conforme elas se aproximam do final da vida. A razão pela qual tenho interesse no desejo de morrer é porque se as pessoas estão em uma situação na qual não querem mais viver, há algo acontecendo, ou não acontecendo, em seu cuidado que precisamos estar atentos?

Começamos, então, a fazer alguns dos primeiros estudos científicos sobre dignidade. Uma das descobertas iniciais, que para mim foi uma epifania, foi de que a coisa que mais predizia a dignidade em uma grande coorte, com mais de 200 pacientes terminais, era como eles se percebiam sendo vistos, a noção de aparência. Isso é muito interessante. A maneira como eles percebiam que os outros lhes enxergavam era o preditor mais poderoso de dignidade. Sempre pensei que bons cuidados paliativos se tratava do que fazemos ao paciente, e os dados estavam dizendo que o preditor mais poderoso de dignidade era como nós, os provedores de saúde, enxergávamos os pacientes.

Metaforicamente falando, o que essa descoberta está dizendo é que os pacientes estão procurando um reflexo nos olhos do provedor de saúde que irá confirmar seu senso de dignidade. Se estou indo ao médico e a única coisa que vejo refletida em seus olhos é minha doença, sinto que me tornei minha doença. Eu não sou mais eu. Mas, se o que vejo refletido em seus olhos também inclui a imagem que me contém, quem sou eu como pessoa, sinto que minha dignidade foi preservada.

E isso não é apenas verdade quando estamos no final da vida: é para todas as vezes que você entra no consultório de um médico. Ninguém quer ser visto apenas como sua doença. De repente, tudo o que você se torna é aquele caroço ou aquela dor. As pessoas querem continuar a ser vistas e apreciadas na totalidade do que são como seres humanos.

Como definimos a dignidade? Sabemos que tem muito a ver com o nosso trabalho (como profissionais de saúde) e tem muito a ver com como somos apreciados ou percebidos. É sobre a preservação da pessoa. Há uma infinidade de coisas que afetam a dignidade, e elas não são hierárquicas. Isso significa que, para algumas pessoas, estar limpo, estar sem dor, é a essência da preservação da dignidade. Para outras, é muito mais sobre uma jornada espiritual. Mas, para muitas pessoas, é sobre tentar preservar sua essência.

Lendo seus livros me pareceu que dignidade tem uma forte e íntima relação com identidade. É isso mesmo? Por que a identidade e a afirmação de uma identidade são tão importantes para nós?

Porque atinge o cerne de quem somos, da nossa essência, e é aí que a tensão surge em relação à Medicina. No momento em que cruzamos o limiar da clínica ou do hospital, nos tornamos pacientes. Agora, um paciente é definido de uma forma muito genérica. Um paciente cardíaco, um paciente com câncer, um paciente psiquiátrico. Em outras palavras, você se torna definido com base em ‘equipamentos’ muito padronizados que todos temos em nossa mente e nosso corpo e que começam a falhar.

Quando nos tornamos pacientes, somos entendidos dessas formas genéricas. Quando isso acontece, não apenas começamos a perder nosso senso de identidade, mas começamos a sofrer. E o sofrimento, como escreveu (o médico e escritor americano) Eric Cassell, é aquele tipo de estado subjetivo, aquele estado onde a integridade de quem somos como seres humanos está sob ataque ou ameaçada de desintegração. Se você está em um lugar onde a essência de quem você é não pode mais ser expressa ou não está mais sendo reconhecida, seu sofrimento será proporcional a isso.

Como ensinar empatia para os profissionais de saúde em formação, e incentivar um cuidado mais humanizado?

Uma das descobertas profundas que fizemos no início de nossa pesquisa foi que o olhar do profissional de saúde afeta a experiência do paciente. Anos atrás, publiquei um artigo no qual explico que todo provedor de saúde precisa saber os “ABCDs” do cuidado conservador da dignidade, já que eles influenciam nessa experiência. São eles: ‘A’ de atitude; ‘B’ de comportamento (behavior, em inglês); ‘C’ de compaixão, ou seja, a capacidade de entender o sofrimento de outra pessoa e ser atencioso com isso; e ‘D’ para diálogo, conversas, especialmente aquelas que afirmam a personalidade. Por isso, introduzimos a pergunta sobre dignidade do paciente. Você precisa descobrir quem é essa pessoa.

Lembro-me de uma reunião em uma grande instalação de saúde nos EUA que queria começar a empregar parte do meu trabalho. Um médico neurologista disse: ‘Olha, sou muito ocupado’. Então, eu perguntei: ‘Você tem tempo suficiente para perguntar a alguém o que você precisa saber sobre ela como pessoa, como ser humano, para poder cuidar bem dela?’. É uma conversa que não leva muito tempo. Mostramos em nossos estudos que de cinco a dez minutos são suficientes para descobrir coisas profundas sobre quem é esse indivíduo como ser humano.

Os pacientes estão procurando um reflexo nos olhos do provedor de saúde que irá confirmar seu senso de dignidade

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Também introduzimos algo que chamo de regra de platina. Precisamos entender que nosso olhar, como profissionais de saúde, é influenciado e moldado por certos preconceitos. Isso não é acusatório, é simplesmente a realidade. Todos nós somos ensinados que certas coisas têm valor e outras, não. Costumamos usar a nós mesmos como um parâmetro do que os pacientes querem ou precisam. É a regra de ouro: trate os outros como você gostaria de ser tratado.

Mas há limitações à regra de ouro se isso significa que estou impondo um padrão externo em relação ao que o outro pode querer ou precisar conforme eu percebo (o mundo). Às vezes, o que vemos é diferente do que os pacientes veem. Então, a regra de platina é outra ferramenta que podemos usar para treinar os profissionais de saúde. Não apenas é importante descobrir sobre as pessoas, mas é importante entender a si mesmo. É importante entender como você, suas atitudes e sua disposição podem influenciar o que acontece em uma consulta.

A maioria das pessoas não têm acesso a cuidados paliativos no Brasil. Só no ano passado tivemos a aprovação de uma política nacional de cuidados paliativos. Quão preocupante é isso?

Não conheço os serviços de cuidados paliativos disponíveis em seu País, mas o que você me diz é angustiante e preocupante. Brasileiros, tanto quanto canadenses, americanos e europeus, precisam de certas coisas no final da vida, porque são humanos. Precisam de um bom controle da dor, um bom controle dos sintomas, de pessoas que entendam os desafios psicológicos, emocionais e espirituais de chegar ao fim da vida.

Essas são necessidades humanas muito básicas. A ausência disso é trágica, porque só morremos uma vez. Queremos fazer o certo, e queremos acertar para aquela pessoa porque ela merece isso e também porque molda a maneira como a família lembrará daquela morte e antecipa a sua própria. O que você me diz é angustiante e mostra que há muito trabalho a ser feito.

Como acompanhar a oferta de cuidados paliativos para um ente querido pode impactar a percepção sobre a morte e também a saúde mental da família? Como é possível tornar essa experiência melhor para eles?

Primeiro, as coisas que afetam a dignidade de um paciente de muitas maneiras são exatamente as mesmas coisas que afetam a de um membro da família que testemunha o que está acontecendo. Se você vê alguém que ama sendo tratado de uma maneira muito genérica, como qualquer outro paciente, sem reconhecimento de quem ele é, você sentirá que a pessoa pela qual você se importa não está sendo vista. Quando tratamos nossos pacientes com dignidade, os membros da família terão a tranquilidade de saber que a pessoa que amam está sendo reconhecida e vista.

Outra coisa para ajudar as famílias é que elas precisam entender que desempenham um papel fundamental. Você pode ter um médico segurando sua mão e dizendo: ‘Você parece ser um cara muito bom, brilhante’. Mas se sua mãe ou seu pai, sua irmã, alguém que te conhece, segura sua mão, eles não precisam dizer isso, não precisam dizer ‘você é um cara incrível’, você pode sentir isso em seu DNA.

Lembro-me do relato de um homem cuja esposa estava perto do fim, e ele se sentia inútil. Ele dizia: ‘Tudo que posso fazer é segurar a mão dela, assistir TV até adormecermos’. Lembro-me de dizer a ele: ‘Não há mais ninguém neste planeta que possa segurar a mão de sua esposa como você faz, e lembrá-la de que ela é a mulher por quem você se apaixonou’. Ninguém pode substituir o que a família pode fazer.

A discussão social sobre cuidados paliativos no Brasil é bastante embrionária. O que é preciso para mudar esse panorama, e quão importante é falar sobre eles?

É muito importante falar sobre cuidados paliativos. A taxa de morte ao longo do milênio não mudou: é uma por pessoa. Não podemos mudar isso. Podemos tentar não olhar para isso. Podemos ignorar. Fingir que não é assim.

Como sociedade, se falarmos sobre isso, estaremos em uma posição na qual podemos fazer melhor. As pessoas poderão se sentir mais confortáveis, expressar seus desejos, e poderemos garantir que recebam o melhor cuidado possível.

Você diz que o Brasil tem tão pouco em termos de cuidados paliativos. Por quê? Há razões políticas, financeiras, mas também tem a ver com o fato de que ninguém quer falar sobre isso. Se ninguém está falando sobre isso, então parece que não há necessidade de fazer nada a respeito. Por que jogar dinheiro no silêncio? Os mortos não estão mais aqui para falar, os enlutados estão muito sobrecarregados para falar e os moribundos estão muito doentes para falar.

Quem será a voz que dirá que morrer importa? O ponto é que a morte é uma inevitabilidade, não é opcional, e é por isso que precisamos falar sobre cuidados paliativos.

A taxa de morte ao longo do milênio não mudou: é uma por pessoa. Não podemos mudar isso

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Como anos de estudos sobre pessoas com poucos meses ou dias de vida mudaram a maneira como você encara a morte de maneira geral e a sua própria?

A morte é uma parte importante da vida, e todos merecemos ter uma morte na qual nos seja proporcionado conforto, cuidado de qualidade e a segurança de saber que seremos cuidados como em qualquer outro momento durante nossa vida. Todo ser humano merece isso.

A propósito, em termos de cuidados paliativos, nos últimos 20 anos eles são cada vez mais vistos como algo que deve ser aplicado mais cedo. Não é apenas sobre o que seus últimos dias parecem, mas sobre como é a vida para você depois de ser diagnosticado com uma doença que ameaça ou limita sua vida. Os cuidados paliativos precisam estar presentes muito antes na trajetória de uma doença para garantir que sua qualidade de vida seja boa. É muito importante que não nos esqueçamos de que bons cuidados paliativos não têm a ver apenas sobre como você morre, mas de como você vive até morrer, e isso começa mais cedo na trajetória da doença.

Pessoalmente, cheguei a um lugar em que entendo que morrer é inevitável e estou muito mais focado na qualidade do tempo que tenho aqui. Sinto uma certa pressão de saber que meu tempo é limitado. Há coisas que quero realizar.

Agora, estou trabalhando em dois livros. Eles serão concluídos? Tenho vários projetos de pesquisa dos quais participo. Eles serão concluídos? Acabei de me tornar avô. Por quanto tempo estarei por perto para deixar uma impressão no meu neto? Ele vai me conhecer como pessoa? O foco para mim está mais naquilo que serei capaz de fazer, de me engajar e experimentar até o momento da minha morte. É mais sobre tentar otimizar o que posso fazer enquanto estou vivo para tornar isso mais rico, significativo e importante possível. Porque uma vez que eu tenha partido, estou ciente de que será por muito tempo.

Se a maioria de nós evita ao máximo pensar ou falar sobre a morte, ela é quase “onipresente” na rotina do psiquiatra canadense Harvey Max Chochinov. Pesquisando cuidados paliativos há 35 anos, o médico não passa um dia sequer sem pensar em como tornar os últimos dias das pessoas melhores e mais dignos.

Os cuidados paliativos representam uma abordagem ou um tratamento que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças que ameacem a continuidade da vida, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Eles envolvem desde controlar a dor e tratar sintomas até proporcionar conforto emocional e espiritual.

A maioria dos brasileiros em situação ameaçadora à vida não tem acesso a cuidados paliativos adequadamente, avalia a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). O Atlas de 2022 da instituição aponta para um avanço significativo de serviços, mas, mesmo assim, são apenas 234 – e a maior parte fica concentrada no Sudeste. Uma política nacional foi aprovada apenas no ano passado.

Para Chochinov, o acesso a esse tipo de cuidado é algo “muito básico” e precisa ser respeitado. A maneira inovadora com a qual tratou a prática lhe rendeu um espaço no hall da fama médico do Canadá. “Ele moldou o panorama dos cuidados paliativos em todo o mundo”, afirma a organização de caridade responsável por escolher os laureados.

E isso é verdade. A “terapia da dignidade”, que desenvolveu junto a colegas, é aplicada, com pequenas adaptações, ao redor do mundo e em diferentes culturas. Trata-se de uma das psicoterapias mais estudadas dentro dos cuidados paliativos. Chochinov estima que mais de 100 artigos já foram publicados sobre o método – fora os estudos ainda em curso.

O maior deles saiu em janeiro deste ano na revista científica Journal of Palliative Medicine e foi feito com 579 pacientes idosos com câncer em cuidados paliativos. Ao compará-los com o grupo controle, que não recebeu essa psicoterapia, os pesquisadores conseguiram demonstrar a eficácia da terapia na melhoria da dignidade dos adultos mais velhos.

“Uma hipótese central do nosso estudo foi que a terapia da dignidade influencia em domínios espirituais e existenciais importantes, como a necessidade de significado, as preocupações com a família e a necessidade de um legado”, escreveram os pesquisadores, liderados por Diana Wilkie, da Faculdade de Enfermagem da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos.

Composta de uma série de perguntas pré-definidas, mas que seguem um caminho bastante orgânico, essa psicoterapia tem como objetivo guiar as pessoas a encontrar uma maneira de serem lembradas ou de ter sua sabedoria transmitida. O passo a passo dela foi publicado em livro homônimo, em 2011, que ganhou uma versão brasileira: “Terapia da Dignidade: Finitude, legado e dignidade nos cuidados paliativos”, da Editora Manole (2023).

Ela é resultado do chamado “modelo de dignidade”, que ajudou Chochinov e colegas a entenderem como trazer mais conforto e bem-estar no fim da vida. A preservação da dignidade, eles descobriram, é um dos principais preditores da vontade de continuar vivendo ou não.

Os cuidados paliativos representam uma abordagem ou um tratamento que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de graves doenças. Nesse sentido, um dos pontos de partida é tratar o paciente com dignidade, e não como sinônimo de uma condição de saúde. Foto: Chinnapong/Adobe Stock

A dignidade, por sua vez, está intimamente ligada à identidade ou à afirmação da identidade. Afinal, ninguém quer ser encarado como uma doença. “Não queremos ser vistos apenas como uma doença cardíaca terminal ou um delírio agudo intermitente ou falência renal. Esses são rótulos genéricos que damos aos pacientes. Mas não há nada de genérico sobre pessoas. Cada um de nós é único”, afirmou, em entrevista ao Estadão.

Agora que se aproxima do que chama de “crepúsculo” de sua carreira, ele quer compartilhar o que entende por cuidar com dignidade. Em 2022, publicou o livro “Dignity in Care”, no qual fornece insights de como alcançar o lado humano na Medicina. “Quando ensino, estou tentando falar não apenas para públicos interessados em cuidados paliativos, mas para qualquer pessoa interessada em cuidar de seres humanos. Porque o respeito e a dignidade importam em todo o ciclo da vida.”

Confira os principais trechos da entrevista:

Você escreveu que, ao ensinar sobre cuidados paliativos ao redor do mundo, sempre se impressionou com o fato de as pessoas serem muito semelhantes, no sentido que compartilhamos preocupações e lutas comuns sobre como lidar com a vulnerabilidade e a inevitabilidade da morte. Como a humanidade encara a morte?

Me senti surpreso e, de certa forma, até encorajado ao ver como somos similares uns aos outros. Somos diferentes de algumas maneiras, mas, quando se trata de coisas que são tão inerentemente humanas, somos todos muito parecidos. Quando se trata de morte, as pessoas estão ansiosas, com medo. A morte é o grande desconhecido, e tanto é assim que quase se torna algo que realmente não pode ser falado ou sobre o qual se fala muito pouco.

Parece muito clichê dizer isso, mas somos uma sociedade que nega a morte. A verdade é que não dedicamos muito tempo prestando muita atenção à morte até que nós mesmos ou aqueles próximos a nós enfrentam uma condição de risco de vida. Temos medo das dimensões incompreensíveis da não existência.

Somos uma sociedade que nega a morte

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Nas suas palavras, o que é a terapia da dignidade?

É uma intervenção psicoterapêutica de curta duração que desenvolvi junto a colegas há duas décadas. Na época, foi projetada para pessoas que tinham uma condição que coloca a vida em risco ou limita a vida. Ao longo dos últimos anos, ela se expandiu para uma variedade de áreas, sendo utilizada com idosos frágeis, pessoas com desafios de saúde mental, cuidados com demência e até mesmo em pacientes que estão chegando ao fim da vida em prisões.

Dito isso, a terapia da dignidade foi projetada como uma intervenção em cuidados paliativos. É guiada por um terapeuta treinado e oferece às pessoas a oportunidade de falar sobre coisas que gostariam que fossem conhecidas, coisas que gostariam de dizer antes de saírem desta vida. O que for dito vai ser incorporado a um documento. A conversa é gravada, transcrita, editada e, então, devolvida àquela pessoa para que ela dê a quem sente que gostaria de tê-la.

Qual a sua opinião sobre o uso dessa terapia em outras áreas que não somente nos cuidados paliativos?

Clinicamente, a terapia da dignidade se torna apropriada no momento em que um paciente alcança o que eu chamo de prontidão existencial. Sabemos que quando você enfrenta um evento importante na vida, especialmente um evento traumático, algo que mina sua saúde ou que muda seu prognóstico em termos de expectativa de vida, é levado a lugar reflexivo. E o que aprendemos ao longo dos anos é que há algo muito terapêutico em ser capaz de aproveitar esse momento no tempo para refletir sobre onde você esteve, o que importa para você, e tentar de alguma forma integrar isso.

Certamente, quando as pessoas estão próximas do fim da vida, muitas vezes estão nesse lugar de prontidão existencial, de querer refletir. Mas fizemos estudos da terapia da dignidade em pessoas que não enfrentam uma morte iminente, como idosos em lar de cuidados, e muitos deles já estão refletindo sobre o curso de suas vidas.

Quando você enfrenta um evento importante na vida, especialmente um traumático, é levado a um lugar reflexivo

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Quando buscamos um médico, queremos uma resposta, um tratamento, um prognóstico, principalmente se tratando de pacientes que enfrentam um risco iminente de morte. Mas me parece que a terapia da dignidade é muito mais sobre perguntas do que respostas. Como os pacientes lidam com essa quebra de expectativa?

É verdade que não estamos fornecendo a eles uma resposta de uma maneira tradicional, mas estamos oferecendo respostas para questões que eles têm tentado resolver há muito tempo, por exemplo: como minha família vai se virar sem mim? Como meus filhos vão me conhecer? Como posso garantir que meu marido entenda que nosso amor não o impede de encontrar outra pessoa para compartilhar a vida?

Isso dá às pessoas uma plataforma para poder responder a esses tipos de perguntas por si mesmas, criando um legado muito enriquecedor. Muitas pessoas pensam em fazer isso, mas elas travam, porque é muito emocional, é avassalador, e elas não sabem necessariamente como juntar tudo isso.

Você escreveu que, embora tratar com dignidade sempre foi o parâmetro na medicina, muito pouco se sabia ou pesquisava sobre o tema. O que é dignidade?

Decidimos estudar a dignidade porque notamos que, ao olhar para lugares como Holanda e Bélgica, onde a eutanásia e o suicídio assistido estavam ocorrendo, os estudos que surgiam nos diziam que a principal razão pela qual os pacientes buscavam uma morte acelerada era devido a uma perda de senso de dignidade, segundo relatos dos médicos que os haviam atendido.

Pensamos: ‘Se a dignidade é um motivo pelo qual vale a pena morrer, então vale a pena ser estudada’. Começamos a olhar para a literatura mundial – e isso remonta à metade dos anos 1990 –, e o que estava escrito sobre dignidade não era científico. Ela era usada como um poderoso argumento final para apoiar sua posição. Então, se você apoiasse a eutanásia e o suicídio assistido, diria que se trata de uma questão de dignidade humana: ‘Meu corpo, minha autonomia, isso é sobre dignidade’. E se você não aprovasse, diria: ‘É tirar a vida humana, isso é sobre dignidade humana’.

Não somos filósofos, não somos a polícia moral: somos médicos e profissionais de saúde interessados em tentar descobrir como podemos ajudar as pessoas conforme elas se aproximam do final da vida. A razão pela qual tenho interesse no desejo de morrer é porque se as pessoas estão em uma situação na qual não querem mais viver, há algo acontecendo, ou não acontecendo, em seu cuidado que precisamos estar atentos?

Começamos, então, a fazer alguns dos primeiros estudos científicos sobre dignidade. Uma das descobertas iniciais, que para mim foi uma epifania, foi de que a coisa que mais predizia a dignidade em uma grande coorte, com mais de 200 pacientes terminais, era como eles se percebiam sendo vistos, a noção de aparência. Isso é muito interessante. A maneira como eles percebiam que os outros lhes enxergavam era o preditor mais poderoso de dignidade. Sempre pensei que bons cuidados paliativos se tratava do que fazemos ao paciente, e os dados estavam dizendo que o preditor mais poderoso de dignidade era como nós, os provedores de saúde, enxergávamos os pacientes.

Metaforicamente falando, o que essa descoberta está dizendo é que os pacientes estão procurando um reflexo nos olhos do provedor de saúde que irá confirmar seu senso de dignidade. Se estou indo ao médico e a única coisa que vejo refletida em seus olhos é minha doença, sinto que me tornei minha doença. Eu não sou mais eu. Mas, se o que vejo refletido em seus olhos também inclui a imagem que me contém, quem sou eu como pessoa, sinto que minha dignidade foi preservada.

E isso não é apenas verdade quando estamos no final da vida: é para todas as vezes que você entra no consultório de um médico. Ninguém quer ser visto apenas como sua doença. De repente, tudo o que você se torna é aquele caroço ou aquela dor. As pessoas querem continuar a ser vistas e apreciadas na totalidade do que são como seres humanos.

Como definimos a dignidade? Sabemos que tem muito a ver com o nosso trabalho (como profissionais de saúde) e tem muito a ver com como somos apreciados ou percebidos. É sobre a preservação da pessoa. Há uma infinidade de coisas que afetam a dignidade, e elas não são hierárquicas. Isso significa que, para algumas pessoas, estar limpo, estar sem dor, é a essência da preservação da dignidade. Para outras, é muito mais sobre uma jornada espiritual. Mas, para muitas pessoas, é sobre tentar preservar sua essência.

Lendo seus livros me pareceu que dignidade tem uma forte e íntima relação com identidade. É isso mesmo? Por que a identidade e a afirmação de uma identidade são tão importantes para nós?

Porque atinge o cerne de quem somos, da nossa essência, e é aí que a tensão surge em relação à Medicina. No momento em que cruzamos o limiar da clínica ou do hospital, nos tornamos pacientes. Agora, um paciente é definido de uma forma muito genérica. Um paciente cardíaco, um paciente com câncer, um paciente psiquiátrico. Em outras palavras, você se torna definido com base em ‘equipamentos’ muito padronizados que todos temos em nossa mente e nosso corpo e que começam a falhar.

Quando nos tornamos pacientes, somos entendidos dessas formas genéricas. Quando isso acontece, não apenas começamos a perder nosso senso de identidade, mas começamos a sofrer. E o sofrimento, como escreveu (o médico e escritor americano) Eric Cassell, é aquele tipo de estado subjetivo, aquele estado onde a integridade de quem somos como seres humanos está sob ataque ou ameaçada de desintegração. Se você está em um lugar onde a essência de quem você é não pode mais ser expressa ou não está mais sendo reconhecida, seu sofrimento será proporcional a isso.

Como ensinar empatia para os profissionais de saúde em formação, e incentivar um cuidado mais humanizado?

Uma das descobertas profundas que fizemos no início de nossa pesquisa foi que o olhar do profissional de saúde afeta a experiência do paciente. Anos atrás, publiquei um artigo no qual explico que todo provedor de saúde precisa saber os “ABCDs” do cuidado conservador da dignidade, já que eles influenciam nessa experiência. São eles: ‘A’ de atitude; ‘B’ de comportamento (behavior, em inglês); ‘C’ de compaixão, ou seja, a capacidade de entender o sofrimento de outra pessoa e ser atencioso com isso; e ‘D’ para diálogo, conversas, especialmente aquelas que afirmam a personalidade. Por isso, introduzimos a pergunta sobre dignidade do paciente. Você precisa descobrir quem é essa pessoa.

Lembro-me de uma reunião em uma grande instalação de saúde nos EUA que queria começar a empregar parte do meu trabalho. Um médico neurologista disse: ‘Olha, sou muito ocupado’. Então, eu perguntei: ‘Você tem tempo suficiente para perguntar a alguém o que você precisa saber sobre ela como pessoa, como ser humano, para poder cuidar bem dela?’. É uma conversa que não leva muito tempo. Mostramos em nossos estudos que de cinco a dez minutos são suficientes para descobrir coisas profundas sobre quem é esse indivíduo como ser humano.

Os pacientes estão procurando um reflexo nos olhos do provedor de saúde que irá confirmar seu senso de dignidade

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Também introduzimos algo que chamo de regra de platina. Precisamos entender que nosso olhar, como profissionais de saúde, é influenciado e moldado por certos preconceitos. Isso não é acusatório, é simplesmente a realidade. Todos nós somos ensinados que certas coisas têm valor e outras, não. Costumamos usar a nós mesmos como um parâmetro do que os pacientes querem ou precisam. É a regra de ouro: trate os outros como você gostaria de ser tratado.

Mas há limitações à regra de ouro se isso significa que estou impondo um padrão externo em relação ao que o outro pode querer ou precisar conforme eu percebo (o mundo). Às vezes, o que vemos é diferente do que os pacientes veem. Então, a regra de platina é outra ferramenta que podemos usar para treinar os profissionais de saúde. Não apenas é importante descobrir sobre as pessoas, mas é importante entender a si mesmo. É importante entender como você, suas atitudes e sua disposição podem influenciar o que acontece em uma consulta.

A maioria das pessoas não têm acesso a cuidados paliativos no Brasil. Só no ano passado tivemos a aprovação de uma política nacional de cuidados paliativos. Quão preocupante é isso?

Não conheço os serviços de cuidados paliativos disponíveis em seu País, mas o que você me diz é angustiante e preocupante. Brasileiros, tanto quanto canadenses, americanos e europeus, precisam de certas coisas no final da vida, porque são humanos. Precisam de um bom controle da dor, um bom controle dos sintomas, de pessoas que entendam os desafios psicológicos, emocionais e espirituais de chegar ao fim da vida.

Essas são necessidades humanas muito básicas. A ausência disso é trágica, porque só morremos uma vez. Queremos fazer o certo, e queremos acertar para aquela pessoa porque ela merece isso e também porque molda a maneira como a família lembrará daquela morte e antecipa a sua própria. O que você me diz é angustiante e mostra que há muito trabalho a ser feito.

Como acompanhar a oferta de cuidados paliativos para um ente querido pode impactar a percepção sobre a morte e também a saúde mental da família? Como é possível tornar essa experiência melhor para eles?

Primeiro, as coisas que afetam a dignidade de um paciente de muitas maneiras são exatamente as mesmas coisas que afetam a de um membro da família que testemunha o que está acontecendo. Se você vê alguém que ama sendo tratado de uma maneira muito genérica, como qualquer outro paciente, sem reconhecimento de quem ele é, você sentirá que a pessoa pela qual você se importa não está sendo vista. Quando tratamos nossos pacientes com dignidade, os membros da família terão a tranquilidade de saber que a pessoa que amam está sendo reconhecida e vista.

Outra coisa para ajudar as famílias é que elas precisam entender que desempenham um papel fundamental. Você pode ter um médico segurando sua mão e dizendo: ‘Você parece ser um cara muito bom, brilhante’. Mas se sua mãe ou seu pai, sua irmã, alguém que te conhece, segura sua mão, eles não precisam dizer isso, não precisam dizer ‘você é um cara incrível’, você pode sentir isso em seu DNA.

Lembro-me do relato de um homem cuja esposa estava perto do fim, e ele se sentia inútil. Ele dizia: ‘Tudo que posso fazer é segurar a mão dela, assistir TV até adormecermos’. Lembro-me de dizer a ele: ‘Não há mais ninguém neste planeta que possa segurar a mão de sua esposa como você faz, e lembrá-la de que ela é a mulher por quem você se apaixonou’. Ninguém pode substituir o que a família pode fazer.

A discussão social sobre cuidados paliativos no Brasil é bastante embrionária. O que é preciso para mudar esse panorama, e quão importante é falar sobre eles?

É muito importante falar sobre cuidados paliativos. A taxa de morte ao longo do milênio não mudou: é uma por pessoa. Não podemos mudar isso. Podemos tentar não olhar para isso. Podemos ignorar. Fingir que não é assim.

Como sociedade, se falarmos sobre isso, estaremos em uma posição na qual podemos fazer melhor. As pessoas poderão se sentir mais confortáveis, expressar seus desejos, e poderemos garantir que recebam o melhor cuidado possível.

Você diz que o Brasil tem tão pouco em termos de cuidados paliativos. Por quê? Há razões políticas, financeiras, mas também tem a ver com o fato de que ninguém quer falar sobre isso. Se ninguém está falando sobre isso, então parece que não há necessidade de fazer nada a respeito. Por que jogar dinheiro no silêncio? Os mortos não estão mais aqui para falar, os enlutados estão muito sobrecarregados para falar e os moribundos estão muito doentes para falar.

Quem será a voz que dirá que morrer importa? O ponto é que a morte é uma inevitabilidade, não é opcional, e é por isso que precisamos falar sobre cuidados paliativos.

A taxa de morte ao longo do milênio não mudou: é uma por pessoa. Não podemos mudar isso

Harvey Max Chochinov, psiquiatra

Como anos de estudos sobre pessoas com poucos meses ou dias de vida mudaram a maneira como você encara a morte de maneira geral e a sua própria?

A morte é uma parte importante da vida, e todos merecemos ter uma morte na qual nos seja proporcionado conforto, cuidado de qualidade e a segurança de saber que seremos cuidados como em qualquer outro momento durante nossa vida. Todo ser humano merece isso.

A propósito, em termos de cuidados paliativos, nos últimos 20 anos eles são cada vez mais vistos como algo que deve ser aplicado mais cedo. Não é apenas sobre o que seus últimos dias parecem, mas sobre como é a vida para você depois de ser diagnosticado com uma doença que ameaça ou limita sua vida. Os cuidados paliativos precisam estar presentes muito antes na trajetória de uma doença para garantir que sua qualidade de vida seja boa. É muito importante que não nos esqueçamos de que bons cuidados paliativos não têm a ver apenas sobre como você morre, mas de como você vive até morrer, e isso começa mais cedo na trajetória da doença.

Pessoalmente, cheguei a um lugar em que entendo que morrer é inevitável e estou muito mais focado na qualidade do tempo que tenho aqui. Sinto uma certa pressão de saber que meu tempo é limitado. Há coisas que quero realizar.

Agora, estou trabalhando em dois livros. Eles serão concluídos? Tenho vários projetos de pesquisa dos quais participo. Eles serão concluídos? Acabei de me tornar avô. Por quanto tempo estarei por perto para deixar uma impressão no meu neto? Ele vai me conhecer como pessoa? O foco para mim está mais naquilo que serei capaz de fazer, de me engajar e experimentar até o momento da minha morte. É mais sobre tentar otimizar o que posso fazer enquanto estou vivo para tornar isso mais rico, significativo e importante possível. Porque uma vez que eu tenha partido, estou ciente de que será por muito tempo.

Entrevista por Leon Ferrari

Repórter de Saúde e Bem-Estar. É formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Menção honrosa do 40º Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.

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