Em janeiro de 2023, Shandy Brewer embarcou em um voo da Alaska Airlines de Portland, Oregon, para Ontário, Califórnia, a caminho da comemoração do aniversário de sua avó. Ela estava sentada na 11ª fileira, entre seu pai e um desconhecido. Pouco depois da decolagem, Brewer e os outros passageiros ouviram um estrondo. Ela não conseguiu ver que, 15 fileiras atrás dela, uma das portas do avião havia estourado, expondo os passageiros a 5 mil metros de altitude.
Máscaras de oxigênio caíram do teto, e os passageiros começaram a rezar. Ela achou que o avião iria cair. Quando o piloto anunciou um pouso de emergência em Oregon, Shandy abraçou seu pai com um braço e o desconhecido com o outro. Ela queria ter a chance de gravar um vídeo para se despedir da mãe.
Quase 11 meses depois, a angústia mental causada por menos de 20 minutos de pânico no ar é uma ferida que não cicatriza, conta Shandy, hoje com 30 anos: “As pessoas dizem: ‘Ninguém morreu nesse voo’ – mas poderíamos ter morrido”. Shandy faz terapia e pratica exercícios de respiração, mas ainda tem um pesadelo recorrente: está em um helicóptero sem portas nem estrutura, agarrando-se ao assento para se salvar da queda livre. Ela também se assusta com ruídos altos. No dia 4 de julho, o som de fogos de artifício pela comemoração da independência dos Estados Unidos a fez sentir “pânico extremo”, e ela teve de se esconder dentro de casa.
Shandy Brewer
Quando as pessoas falam sobre seu medo de voar, muitas vezes ouvem como resposta que os aviões são bastante seguros. De acordo com uma análise de 2022 sobre a segurança da aviação comercial realizada pelas Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina, “houve uma redução significativa e sustentada nos acidentes aéreos nos Estados Unidos nas últimas duas décadas”. A análise constatou que a segurança dos voos “melhorou mais de quarenta vezes”. (Segundo a Agência Nacional da Aviação Civil, a Anac, o Brasil alcançou, no ano passado, 95,1% na avaliação global preliminar da auditoria do Programa Universal de Auditoria de Supervisão de Segurança da Organização da Aviação Civil Internacional, a Oaci. É considerado um dos melhores índices no programa).
Mas as estatísticas pouco importam para uma mente que não consegue parar de reproduzir um acontecimento perturbador, sobretudo quando emergências assustadoras continuam aparecendo nos noticiários. “Muitas pessoas desenvolvem uma ansiedade significativa depois desses incidentes”, informa Rebecca B. Skolnick, psicóloga clínica e professora da Icahn School of Medicine do Mount Sinai. “Isso se torna não apenas algo que aconteceu com elas, mas algo que molda a maneira como elas pensam sobre o mundo e sobre viajar de avião”.
Shandy e mais de 30 outros passageiros do voo da Alaska Airlines estão processando a companhia aérea e a Boeing, fabricante da aeronave, alegando “estresse severo, ansiedade, trauma, dor física, flashbacks e medo de voar, além de manifestações físicas objetivas, como insônia, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), danos auditivos e outras lesões”. De acordo com o processo, um dos reclamantes escreveu uma mensagem de texto para a mãe, acreditando, assim como Shandy, que o avião estava caindo: “Estamos de máscara. Eu amo você”.
“Sobrevivi, mas minha vida ficou afetada”
No ano passado, o setor de viagens aéreas foi alvo de críticas devido a vários problemas de segurança nos voos, como aviões que saíram da pista, vazamentos hidráulicos e pneus que caíram – tudo isso com passageiros a bordo. Em maio de 2024, um passageiro morreu e 83 ficaram feridos quando um voo da Singapore Airlines sofreu uma forte turbulência, forçando um pouso de emergência. Em julho, durante um voo da Espanha para o Uruguai, uma turbulência levou 40 passageiros ao hospital.
(Turbulências extremas que exigem hospitalização são relativamente raras; de acordo com a Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos, em 2023 foram registrados 20 casos de ferimentos graves causados por turbulência. Mas as pesquisas sobre mudanças climáticas sugerem que as turbulências vão piorar devido ao aumento dos níveis de dióxido de carbono na atmosfera. Um estudo de 2023 publicado na revista Geophysical Research Letters constatou que as turbulências severas aumentaram em 55% entre 1979 e 2020).
Em março de 2024, o motor de um avião que viajava de Houston para Fort Myers, na Flórida, pegou fogo sobre o Golfo do México. O avião aterrissou em segurança, mas Dorian Cerda, 28 anos, passageiro que estava sentado perto da janela – perto o suficiente para sentir o calor do fogo – disse que a experiência o marcou. Durante o voo, aguardando nervosamente uma explosão que nunca ocorreu, ele gravou um vídeo para sua esposa e filhos pequenos, dizendo que os amava.
Hoje, Cerda diz que o incidente está “sempre no meu processo de pensamento” quando planeja viajar, especialmente porque ele tem família para sustentar. Ele disse que passou a se preocupar demais, com medo de algo acontecer de novo. “Viajei em cinco aviões na vida, e um deles pegou fogo”, disse ele. “Minhas estatísticas são de 20%. Não arriscaria a vida com uma estatística de 20%. Sobrevivi, mas minha vida ficou afetada”.
Martin Seif, psicólogo clínico e especialista no tratamento da ansiedade de voar, disse que muitas pessoas com medos relacionados a aviões sofrem de ansiedade antecipatória, o que significa que elas têm medo de algo que pode acontecer – ou acontecer novamente – mesmo que a lógica sugira que não vai acontecer nada. “Não há diferença entre sentir ansiedade e sentir que se está realmente em perigo”, diz. “Na neurologia da ansiedade, ocorre o disparo da amígdala e, em seguida, os pensamentos ou narrativas que alimentam a ansiedade. Quando você está nesse estado de consciência alterado, parece muito provável que esses pensamentos vão virar realidade”.
Dorian Cerda
Rebecca acrescenta que evitar viagens aéreas “perpetua o medo, porque ensina ao cérebro que voar é perigoso”. Para algumas pessoas, até mesmo arrumar as malas ou pesquisar passagens online pode levar à ansiedade.
Existem algumas pesquisas sobre como uma experiência de voo traumática pode afetar a saúde mental – especificamente no caso de sobreviventes de acidentes aéreos. Um estudo de 2016 constatou que 47% dos participantes que sobreviveram a acidentes de avião corriam o risco de sofrer de TEPT e 35% corriam o risco de sofrer de depressão nove meses depois. Um estudo de 2013 constatou que 78% dos participantes apresentaram sintomas emocionais ou afetivos, como hipervigilância e dificuldade para dormir, após sobreviverem a um acidente.
Mas o dano infligido aos passageiros que passaram por emergências durante voos – mas não sofreram acidentes – ainda não foi tão pesquisado ou reconhecido. Depois que o motor do avião pegou fogo ao lado de Cerda, a companhia aérea lhe ofereceu um vale-refeição de US$ 15 (o equivalente, hoje, a R$ 85).
Nem a Administração Federal de Aviação (FAA, na sigla em inglês) nem o Conselho Nacional de Segurança nos Transportes têm políticas ou recomendações sobre a saúde mental dos passageiros após emergências. Mina Kaji, especialista em assuntos públicos da FAA, disse que a “prioridade número um da agência é promover a segurança do sistema de aviação do país”.
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“Passamos pelas mesmas coisas que os passageiros”
Eileen Rodriguez é comissária de bordo há 38 anos e presidente de gerenciamento de estresse em incidentes críticos do sindicato Transport Workers Union Local 556, que representa milhares de comissários de bordo da Southwest Airlines. Se ocorrer alguma emergência em voo, Eileen Rodriguez entra em contato com os comissários de bordo em questão de horas para entender como ajudar. “Passamos por eventos horríveis”, conta ela. “Muitas vezes é necessário um tempo de folga e muito apoio para superar”.
Mais perto do início da carreira, Eileen trabalhou na American Airlines. Um voo turbulento fez com que ela sofresse uma lesão na cabeça e nas costas e quebrasse o pé. Depois de se recuperar fisicamente, ela voltou a trabalhar em uma das marcas regionais da companhia aérea. Menos de um ano após o primeiro incidente, quando era a única comissária de bordo em um pequeno avião a hélice, ela vivenciou um pouso de emergência. Tirou seis meses de licença para fazer terapia e lidar com o medo de voar que havia desenvolvido.
Ela acabou voltando ao trabalho, mas não foi uma transição simples. “A ansiedade era grande demais”, diz. “Qualquer pequeno solavanco, barulho ou outra qualquer coisa que não fosse familiar me deixava assustada”.
Eileen observa que o tipo de suporte a incidentes críticos oferecido pelos sindicatos de comissários de bordo atualmente a teria ajudado naquela época. “Vivemos os mesmos sentimentos que os passageiros”, ressalta.
Eileen Rodriguez, comissária de bordo
Heather Healy, diretora do programa de assistência a funcionários do sindicato Association of Flight Attendants, diz que a população em geral acredita, equivocadamente, que os comissários de bordo são imunes a traumas emocionais causados por voos. Com o passar do tempo, eventos repetidos podem piorar o impacto de experiências assustadoras, assim como aconteceria com qualquer outra pessoa. “Em vez de ver cada incidente como algo que constrói sua armadura, precisamos vê-lo como algo que abre fendas na sua armadura”, explica.
Embora os trabalhadores de emergência, como paramédicos e policiais, muitas vezes recebam a oportunidade de trabalhar em ambientes alternativos onde possam recuperar a resiliência após incidentes traumáticos, nota Heather, os comissários de bordo não têm o mesmo protocolo de período de recuperação. “É só voltar para o avião ou não voltar”.
“Gostaria de dizer que estou muito melhor, mas não estou”
Para algumas pessoas, o trauma perdura por anos, dentro e fora dos aviões. Em um voo de Boston para Chicago em 2016, tudo se apagou na aeronave onde Emma Lazaroff viajava. O piloto disse, pelo interfone, para os comissários de bordo se sentarem com urgência, e o avião começou a tremer e a chacoalhar ruidosamente. Parecia estar despencando. “Fomos jogados contra os assentos”, lembra Emma. “As bagagens se espalharam por toda a cabine. Todos nós achamos que iríamos morrer”. Após cerca de cinco minutos de caos, o avião pareceu subir, e o céu escuro do lado de fora das janelas revelou um pôr do sol. O voo aterrissou em segurança.
Emma, hoje com 32 anos, não sabe o que causou o incidente – o piloto não explicou aos passageiros e a companhia aérea não disse a ela – mas aquele dia teve repercussões graves e duradouras. Logo após o voo, ela começou a ter ataques de pânico, flashbacks, pesadelos e náuseas que persistem até hoje. Em 2024, ela finalmente foi diagnosticada com TEPT. Xanax a ajuda na hora de voar. “Em geral, estou muito mais irritável”, conta Emma.
Emma Lazaroff
Jacob Morton, 35 anos, afirma que um voo em 2016 de St. Louis para Los Angeles ficou “gravado no meu cérebro”. Alguns minutos após a decolagem, ele ouviu o que parecia ser uma explosão. Com formação em engenharia aeroespacial e experiência em projetos de aeronaves, ele imaginou, corretamente, que um pássaro havia batido no avião, o que ele sabia ser uma ocorrência inofensiva, para a qual os pilotos estão preparados.
Mas, quando o motor parou, ele sentiu um cheiro de fumaça, e o piloto instruiu que os comissários de bordo exigissem que os passageiros ficassem na posição de colisão. Todos entraram em pânico – e ele também. “Desde então, a cada decolagem eu só me agarro ao assento e me concentro”, diz. Ele fica de olho na velocidade e na altitude, o que proporciona conforto graças ao seu conhecimento de mecânica de voo, mas isso é tudo o que ele pode fazer. “Eu simplesmente cerro os dentes e espero passar”.
Marna Gatlin, 61 anos, voa desde a infância. (Seu avô era piloto e sobreviveu a um acidente de avião). Ela disse que perdeu a vontade de voar aos 20 anos, depois de dois incidentes – uma turbulência extrema e um problema com o sistema hidráulico de um avião que fez com que o piloto instruísse os passageiros a ficar na posição de colisão. O voo aterrissou “bem forte e rápido”, recorda ela, mas em segurança.
Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 reforçaram ainda mais seus medos. “Aquilo trouxe uma nova barreira psicológica de ansiedade para mim”. “Parei de voar”. Não querendo que seu filho herdasse esse trauma, em 2008 Marna participou de sessões de terapia para levar a família a São Francisco. Ela ficou petrificada, mas conseguiu.
Marna tentou vários tratamentos ao longo dos anos, até mesmo hipnose e um programa para passageiros com medo que ela não conseguiu concluir porque exigia embarcar em um voo curto. Ela até consultou um vidente, que lhe disse que ela havia sofrido um acidente em uma vida pregressa.
“Gostaria de dizer que estou muito melhor, mas não estou”, afirma ela.
Agora ela viaja de avião às vezes, mas sempre nervosa, graças ao seu próprio sistema: um Ativan antes do aeroporto e exercícios de respiração no avião. Ela reserva o voo mais cedo possível, porque há menos turbulência pela manhã, e passa o primeiro dia em seu destino descomprimindo no hotel. “Fico emocionalmente exausta”, relata. “É esse o tamanho do trauma”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU