Alunos de Medicina estão aprendendo a cozinhar, e você deveria fazer o mesmo; entenda


Uma nova disciplina chamada Medicina Culinária busca mostrar na prática o que significa uma alimentação saudável e a importância de falar sobre o tema com os pacientes

Por Leon Ferrari

CAMPINAS - A equipe lava talheres e pratos, e dispõe cumbucas com legumes ralados na bancada. Do forno, o cheiro de biscoitos caseiros impregna os corredores que levam até à cozinha, que, à primeira vista parece com a de qualquer casa. Para chegar até ela, no entanto, foi preciso atravessar a sala de espera de um hospital-dia, e usar rampas para subir três andares.

Aquela cozinha tão familiar é, na verdade, uma sala de aula. E quem utiliza a estrutura não são alunos de Gastronomia ou Nutrição, mas, sim, médicos em formação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O encontro de Medicina Culinária é promovido pelo Projeto MeNu dentro da disciplina Atenção Integral à Saúde do Adulto, de responsabilidade dos professores e médicos Lício Velloso e Bruno Geloneze da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Mas as estrelas dessa aula em específico são as nutricionistas e professoras Ana Carolina Vasques e Caroline Capitani, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA).

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Os alunos chegam curiosos e ficam notadamente felizes com uma recepção calorosa: uma térmica de café e biscoitos que acabaram de sair do forno. Enquanto os estudantes se acomodam nas cadeiras, os professores explicam por que eles estão ali.

“Temos um aumento absurdo e lamentável do que a gente chama de sindemia. Duas pandemias praticamente opostas. O Brasil tem a concomitância de índices crescentes e alarmantes de obesidade e ainda convive com um certo grau de desnutrição, mas, principalmente, insegurança alimentar”, aponta o endocrinologista Geloneze.

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De acordo com a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), de 2021, a prevalência de excesso de peso (sobrepeso) na população brasileira é de 57,2% e a de obesidade, 22,4%. Enquanto isso, a insegurança alimentar, quando não há acesso permanente à alimentação adequada, é realidade para 27,6% (ou 21,6 milhões) dos lares do País.

A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) alerta para o risco elevado de doenças associadas a um quadro de obesidade, como diabetes, doenças cardiovasculares e alguns cânceres. A verdade é que, de maneira geral, as doenças crônicas não transmissíveis estão em ascensão não só no Brasil, mas no mundo.

Nas aulas de Medicina Culinária, é fundamental colocar a mão na massa Foto: Léo Souza/Estadão
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“A alimentação é a base da boa saúde e da prevenção das doenças crônicas. Se a gente melhorasse o cenário alimentar do mundo, conseguiríamos prevenir uma em cada cinco mortes no planeta”, afirma Ana Carolina. Ela cita dados de estudo do americano Institute for Health Metrics and Evaluation publicado na respeitada revista científica The Lancet.

É nesse pano de fundo que a nova disciplina, a Medicina Culinária, começa a tomar forma nos Estados Unidos por volta de 2006 – embora experiências isoladas datem de 130 anos atrás –, e se espalha no mundo e no Brasil, porém, ainda de forma “tímida”, conforme os especialistas. Ela está dentro da chamada Medicina do Estilo de Vida, que aborda também o papel de comportamentos como tabagismo e sedentarismo na prevenção e no manejo de doenças.

Em artigo dos professores da Unicamp, que ainda não foi publicado, eles apontam que não há ainda um conceito global para a nova disciplina. Para eles, “a Medicina Culinária funde a arte de cozinhar em casa com as ciências da nutrição humana, a psicologia, a gastronomia e a medicina para promover a saúde e o bem-estar”.

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“Esse médico que está se formando, ele sabe o que é carboidrato, proteína e, quem sabe, ácidos graxos livres. Você pergunta pra ele: e onde está isso? Em quais alimentos? Ele começa a ter dificuldade. Como contornar isso? Ele não tem a menor ideia”, diz Geloneze.

“Pense em um médico que precisa pedir para o paciente substituir o sal. Alguns alunos não conhecem nenhum tempero, não sabem diferenciar a salsinha da cebolinha. Ele vai falar (sobre a necessidade de trocar por outros temperos) de uma maneira superficial e não vai poder ajudar muito aquele paciente”, exemplifica a médica Thais Mauad, professora do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina (FMUSP) e uma das fundadoras da primeira disciplina de Medicina Culinária do Brasil na USP.

Um dos facilitadores da alimentação saudável é cozinhar em larga escala, para guardar porções para as refeições seguintes Foto: Léo Souza/Estadão
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É como se a Medicina Culinária pedisse para os alunos darem um passo para trás. “Hoje, vivemos um processo de transição culinária. Com o advento da modernidade, as habilidades culinárias que eram transmitidas majoritariamente de geração para geração, não são mais”, observa Caroline.

Essas habilidades passam por saber selecionar um alimento, fazer uma lista de compras, planejar e preparar uma receita e conseguir executar mais de uma tarefa ao mesmo tempo na cozinha. Tudo isso para chegar a um prato mais colorido e saudável.

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Afinal, o que é alimentação saudável?

A Medicina Culinária não tem o objetivo de formar cozinheiros ou ensinar médicos a prescrever dietas – que envolve um plano alimentar, com valor energético total, consistência, balanço de macro e micronutrientes e fracionamento –, algo que, no Brasil, é atividade exclusiva do nutricionista. A ideia é que esse futuro médico consiga dar o “primeiro passo” de uma conversa sobre alimentação – não só nutrição –, com seus pacientes, a fim de incentivar bons hábitos de vida.

Mas, afinal, como a Medicina Culinária define uma alimentação saudável? “É aquela simples, que a gente come a comida que é vendida na feira. A comida que as nossas avós faziam”, aponta Ana Carolina. “Não é vilanizar o glúten, vilanizar o leite, não é idolatrar a farinha sem glúten, não é nada disso.” Os professores também destacam que isso tudo não envolve rejeitar medicamentos ou suplementos.

E por que a comida caseira é tão importante? Durante a parte inicial da aula, a professora Ana apresenta estudos que mostram que, quando uma pessoa cozinha mais, consegue controlar melhor o tamanho das porções e ter uma alimentação com menos sal, gordura saturada, açúcar de adição e aditivos cosméticos, além de ter uma chance reduzida de desenvolver doenças crônicas, como o diabetes tipo 2, por exemplo.

Papel do médico

Um dos pilares da Medicina Culinária é o autocuidado do médico. Isso porque, segundo os especialistas, ele é um espelho para o paciente. Pesquisadores canadenses conseguiram mostrar, em 2013, que pacientes de médicos que se submetiam a práticas preventivas, como exames e vacinas, tinham maior probabilidade de seguir a indicação médica e fazer o mesmo. “Se o médico tem um estilo de vida saudável, ele consegue levar isso com mais verdade para o seu paciente”, resume Ana Carolina.

“Os pacientes acreditam e confiam nas recomendações comportamentais dadas pelos médicos. Seja no aspecto de comportamento, na atividade física e, principalmente, em relação à alimentação”, complementa Geloneze.

No entanto, apenas 14% dos médicos acreditam ter recebido formação adequada em aconselhamento nutricional, de acordo com esta pesquisa. “Os pacientes confiam muito no médico e o médico confia muito pouco em si, até porque ele tem uma certa autocrítica para entender que não tem uma formação sólida nem mesmo razoável nesse assunto.”

Facilitadores

Para preencher essa lacuna, a Medicina Culinária convida os alunos à cozinha. Na Unicamp, os encontros, com cerca de 12 alunos, ocorrem a cada duas ou três semanas, e são divididos entre aula expositiva, que discute o cenário que mostramos anteriormente, e prática, momento no qual os estudantes cozinham. “Quando coloca a mão na massa, a pessoa realmente se sente mais estimulada a fazer isso em casa. Então, na hora que eu faço, que eu pratico, de fato, aquilo faz sentido pra mim”, Caroline.

Lavamos as mãos, colocamos os aventais e nos dividimos em grupos. Cada um fica responsável por uma receita. Todas elas simples, rápidas e com alimentos da estação.

Antes da aula começar, porém, a equipe do projeto já tinha preparado todos os insumos que iríamos precisar. Compraram os ingredientes, fizeram um mise en place (uma espécie de pré-preparo) e colocaram à disposição o que chamam de kit básico para se aventurar na cozinha:

  • Tábua de corte;
  • Medidores de colher e xícara;
  • Descascador de legumes;
  • Faca de legumes;
  • Faca do chefe;
  • Mixer;
  • Processador;
  • Panela wok

Embora as receitas sejam de fato simples, elas são criativas e nos desafiam a usar apenas uma panela para cozinhar uma refeição completa. Minha equipe ficou responsável pelo prato principal: macarrão – mas uma versão turbinada.

A massa já estava cozida, então, na panela, esquentamos oito colheres de sopa de azeite de oliva, adicionamos cúrcuma e páprica, que dão cor à receita e exalam um aroma inebriante. Adicionamos cenoura ralada e deixamos fritar por um minuto antes de adicionar abobrinha ralada fritar por mais dois minutos. Com delicadeza, misturamos a massa, acertamos o sal e, já com a panela desligada, jogamos algumas folhas de hortelã.

Enquanto cada grupo cuidava da sua receita, as professoras passavam para auxiliar e dar informações nutricionais, além de dicas culinárias.

Comida caseira é a base da alimentação saudável para a Medicina Culinária Foto: Léo Souza/Estadão

Um momento obrigatório da aula – e muito esperado – é a degustação. “Fazemos questão de reservar um tempo pra falar do momento da alimentação. O quão importante é a gente sentar numa mesa, se possível com uma toalha, e olhar para refeição, sentir o cheiro o sabor e a textura, descansar os talheres e convidar um familiar ou amigo”, aconselha Ana Carolina.

“Isso se chama comensalidade e está relacionado com qualidade de vida e também com um melhor processo de mastigação, digestão, absorção e secreção de hormônios que vão interferir no processo de saciedade, até nos ajudando a comer menos”, completa.

E, antes que alguém possa alegar que “não tem tempo” – uma reclamação válida nos dias de hoje –, os professores trazem outro pilar da Medicina Culinária: o batch cooking. Isso é, cozinhar em larga escala, o que nos permite congelar o que sobra e deixar para outra refeição.

“Quando eu vou fazer uma sopa, qual é o tempo que gasto para fazer em uma panela pequena? E em uma panela grande? É parecido. Claro, vou ter que picar mais legumes, vai demorar um pouquinho mais, mas nem tanto assim. Por que não investir tempo e ter jantares para vários dias?”, sugere Ana Carolina.

Escolha dos alimentos

Em outra parte da aula, o foco é como fazer melhores escolhas alimentares. Há um incentivo a olhar para o rótulo dos produtos, o que ajuda a classificá-los conforme a classificação NOVA, criada por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP).

São quatro grupos:

  • Alimentos in natura ou minimamente processados: são aqueles consumidos da maneira como vêm da natureza (folhas, sementes, raízes, ovos, etc) ou que passam por algum processo mínimo de processamento, mas sem adição de ingredientes (como os grãos de feijão, que são apenas secos e embalados ou os grãos de café, que são torrados e moídos para virar pó).
  • Ingredientes culinários processados: são substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos, como prensagem, centrifugação e concentração, segundo o Nupens. É o caso do azeite obtido de azeitonas, da manteiga proveniente do leite e do açúcar vindo da cana ou da beterraba.
  • Alimentos processados: são os ingredientes do primeiro grupo (in natura ou minimamente processado) após passar por pequenas modificações que poderiam ser reproduzidas em ambiente doméstico, como conservas, geleias e pães artesanais.
  • Ultraprocessados: grupo composto por alimentos e bebidas que foram submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos. Aqui, entram as bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos, por exemplo.

Como falar de alimentação

Além dos aprendizados nutricionais e culinários, os professores da Unicamp também ensinam como ter conversas sobre mudança de hábitos. Eles recorrem a dois métodos. O primeiro é a entrevista motivacional, com perguntas abertas e centradas no paciente, que permite entender mais sobre quem ele é e o que comer representa ele. Isso permite dar indicações mais individualizadas e respeitando realidades culturais e regionais diferentes.

O segundo método é baseado nas metas SMART, palavra que em inglês significa “inteligente” ou “esperto”. Significa que a meta precisa ser específica, mensurável, atingível, realista e temporal. Um exemplo dado pelos professores é de, ao invés de o médico combinar com o paciente que ele coma legumes, sugerir que a pessoa compre os legumes no final de semana e reserve duas horas para cozinhá-los e cozinhá-los. Assim, esses itens podem compor pratos ao longo da semana.

Aula de Medicina Culinária na cozinha-escola da Unicamp Foto: Léo Souza/Estadão

A receptividade dos alunos

Seja na USP ou na Unicamp, a matéria é um sucesso, segundo os professores. E isso fica estampado na cara dos alunos. “Muito, muito bom. A gente aproveitou bastante. Eu comi bastante, a tarde toda”, brinca Maria Clara Rossi, de 24 anos, sobre o resultado final das receitas que fizemos juntos.

A turma dela já está no quinto ano de medicina, ou seja, já deram o ponta pé nos atendimentos ambulatoriais que fazem parte da formação. Na aula, eles compartilham os momentos em que foram confrontados com dúvidas alimentares e não souberam responder e também falam das vezes em que conseguiram passar instruções com o que já tinham aprendido anteriormente, como o desenho de um prato mais balanceado.

“Eu tinha bastante dificuldade de responder (para o paciente). Acredito que ainda tenho. Mas, depois dessa aula, sinto que ficou um pouco mais organizado na minha cabeça, ficou um pouco mais concreto”, diz.

“Entendi um pouco mais das nuances da questão alimentar, que é muito ampla. Agora tenho um pouco mais de ideia de cada área, quais os tipos de alimento existem, as maneiras que você pode fazer para tornar isso um processo mais tranquilo e palpável no dia a dia, que não precisa ser tão demorado. Dá para ser mais simples”, completa.

João Felipe Agostini, de 22, concorda com a colega. “Sempre tive alguma insegurança, e vou continuar com ela, porque sempre vai ter alguma coisa a mais para aprender. Mas vou levar (ao consultório) o que já sei, como a diminuição do consumo de ultraprocessados, uma alimentação minimamente equilibrada, sem tentar fazer um papel de um nutricionista ou de um especialista no assunto.”

O Projeto MeNu promove as aulas de Medicina Culinária na Unicamp Foto: Léo Souza/Estadão

Educação médica

Assim como não há um conceito fechado para Medicina Culinária, o formato das aulas pode variar. Mas, em geral, alguns elementos estão sempre presentes, pelo menos no Brasil: o uso do “Guia Alimentar para a População Brasileira”, do Ministério da Saúde, como base; uma equipe transdisciplinar, envolvendo médicos e nutricionistas, principalmente; e a valorização dos módulos práticos.

Além disso, há uma grande valorização da biodiversidade brasileira, por meio da escolha de ingredientes frescos, assim como um apelo à sustentabilidade. Na USP, por exemplo, eles pesam os resíduos produzidos após a aula prática.

Agora, ela aparece tanto como disciplina optativa, como na USP, ou dentro de outras matérias da grade, como na Unicamp. Internacionalmente, há experiências remotas, em que o aluno usa a própria cozinha. Mas os professores tendem a preferir a experiência presencial. “Nada é igual a você estar do lado da pessoa ensinando a cozinhar”, fala Thais Mauad.

A professora da USP conta que, por lá, a disciplina envolve cinco encontros, e, em geral, antes de cozinhar, é apresentado um caso clínico fictício, de um paciente que pode se beneficiar de uma mudança do hábito alimentar. Além da Thais, a matéria envolve pelo menos mais onze profissionais, e tem apoio didático do Laboratório do Lee: Gastronomia de Inclusão e do Laboratório e Cozinha Didática de Procedimento e Técnica Culinária Aplicada à Nutrição (PTCAN).

De acordo com o recente artigo dos professores da Unicamp, ainda não publicado, as diretrizes curriculares brasileiras para o ensino médico não incluem as palavras “nutrição”, “alimento” ou “dieta”. No entanto, o Ministério da Saúde, em uma publicação de 2022, destaca que a responsabilidade pelos cuidados nutricionais precisa ser um esforço coletivo dos profissionais da saúde, principalmente na atenção primária.

Os professores em disciplinas do tipo defendem que haja uma matéria específica de Medicina Culinária dentro da grade da graduação, de preferência como uma matéria obrigatória. Eles destacam que também pode ser interessante que, dentro de disciplinas já consolidadas, usem-se módulos com a metodologia da nova área, afinal, há entrecruzamentos, como uma aula sobre o uso do sal dentro de uma matéria que aborde cardiologia.

Mas essa é uma discussão que ainda deve avançar e amadurecer. O Estadão buscou o Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) para questionar as avaliações sobre a nova disciplina.

O conselheiro Júlio Braga, coordenador da Comissão de Ensino Médico do CFM, falou que as diretrizes curriculares da Medicina falam em “prevenção de doenças e orientações dietéticas como algumas das intervenções utilizadas com essa finalidade terapêutica”. “O médico recebe essas informações durante o curso.”

Sobre a introdução das disciplinas de Medicina Culinária no Brasil, ele disse que é “possível estudar temas específicos”. Apenas alertou que isso não configura uma especialidade médica. Ou seja, “o médico não pode se anunciar como especialista, pois poderia induzir pacientes a acreditarem que há uma área muito especializada.”

Ele avalia que uma disciplina do tipo deveria ser eletiva, não obrigatória, ou uma atividade de extensão. “Trata-se de uma abordagem também interessante na atuação multiprofissional.”

“É importante que os profissionais de saúde conheçam as ações e as ferramentas que utilizamos para a educação alimentar e nutricional”, fala o nutricionista Alexsandro Wosniaki, diretor do CFN, citando o guia do Ministério da Saúde e também o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional (EAN).

“Porque eles desempenham um papel crucial, quando pensamos em prevenção e promoção da saúde dentro da atenção primária, que é a porta de entrada para o SUS”, completa. Ainda sobre a Medicina Culinária, ele destaca a importância de que os promotores das disciplinas tomem cuidado para não ultrapassar as atividades privativas dos nutricionistas, como a prescrição de dietoterapia.

Evidências

A Medicina Culinária é baseada em evidências científicas, mas, como qualquer área emergente, está “engatinhando”, nas palavras da professora Caroline, para mostrar que quando aplicada pelo profissional da saúde, isso se reverte em melhorias ao paciente, segundo ela.

“Os estudos mostram que os profissionais da saúde que recebem essa capacitação se sentem mais conscientes, mais preparados e há uma melhora de comunicação com o paciente. E a alimentação dos profissionais muda, e eles passam a ter um padrão alimentar mais saudável”, fala a professora.

Um desses estudos avaliou o impacto de uma das edições da conferência Healthy Kitchens, Healthy Lives–Caring for Our Patients and Ourselves, um parceria da Harvard University e do The Culinary Institute of America, considerada um dos marcos iniciais da Medicina Culinária e uma das promotoras da nova disciplina. Os participantes, a maioria médicos, relataram mudanças positivas: passaram a cozinhar mais suas próprias refeições e a comer mais vegetais, oleaginosas e grãos integrais.

“No mínimo, queremos que os alunos se tornem mais saudáveis”, diz Geloneze.

CAMPINAS - A equipe lava talheres e pratos, e dispõe cumbucas com legumes ralados na bancada. Do forno, o cheiro de biscoitos caseiros impregna os corredores que levam até à cozinha, que, à primeira vista parece com a de qualquer casa. Para chegar até ela, no entanto, foi preciso atravessar a sala de espera de um hospital-dia, e usar rampas para subir três andares.

Aquela cozinha tão familiar é, na verdade, uma sala de aula. E quem utiliza a estrutura não são alunos de Gastronomia ou Nutrição, mas, sim, médicos em formação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O encontro de Medicina Culinária é promovido pelo Projeto MeNu dentro da disciplina Atenção Integral à Saúde do Adulto, de responsabilidade dos professores e médicos Lício Velloso e Bruno Geloneze da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Mas as estrelas dessa aula em específico são as nutricionistas e professoras Ana Carolina Vasques e Caroline Capitani, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA).

Os alunos chegam curiosos e ficam notadamente felizes com uma recepção calorosa: uma térmica de café e biscoitos que acabaram de sair do forno. Enquanto os estudantes se acomodam nas cadeiras, os professores explicam por que eles estão ali.

“Temos um aumento absurdo e lamentável do que a gente chama de sindemia. Duas pandemias praticamente opostas. O Brasil tem a concomitância de índices crescentes e alarmantes de obesidade e ainda convive com um certo grau de desnutrição, mas, principalmente, insegurança alimentar”, aponta o endocrinologista Geloneze.

De acordo com a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), de 2021, a prevalência de excesso de peso (sobrepeso) na população brasileira é de 57,2% e a de obesidade, 22,4%. Enquanto isso, a insegurança alimentar, quando não há acesso permanente à alimentação adequada, é realidade para 27,6% (ou 21,6 milhões) dos lares do País.

A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) alerta para o risco elevado de doenças associadas a um quadro de obesidade, como diabetes, doenças cardiovasculares e alguns cânceres. A verdade é que, de maneira geral, as doenças crônicas não transmissíveis estão em ascensão não só no Brasil, mas no mundo.

Nas aulas de Medicina Culinária, é fundamental colocar a mão na massa Foto: Léo Souza/Estadão

“A alimentação é a base da boa saúde e da prevenção das doenças crônicas. Se a gente melhorasse o cenário alimentar do mundo, conseguiríamos prevenir uma em cada cinco mortes no planeta”, afirma Ana Carolina. Ela cita dados de estudo do americano Institute for Health Metrics and Evaluation publicado na respeitada revista científica The Lancet.

É nesse pano de fundo que a nova disciplina, a Medicina Culinária, começa a tomar forma nos Estados Unidos por volta de 2006 – embora experiências isoladas datem de 130 anos atrás –, e se espalha no mundo e no Brasil, porém, ainda de forma “tímida”, conforme os especialistas. Ela está dentro da chamada Medicina do Estilo de Vida, que aborda também o papel de comportamentos como tabagismo e sedentarismo na prevenção e no manejo de doenças.

Em artigo dos professores da Unicamp, que ainda não foi publicado, eles apontam que não há ainda um conceito global para a nova disciplina. Para eles, “a Medicina Culinária funde a arte de cozinhar em casa com as ciências da nutrição humana, a psicologia, a gastronomia e a medicina para promover a saúde e o bem-estar”.

“Esse médico que está se formando, ele sabe o que é carboidrato, proteína e, quem sabe, ácidos graxos livres. Você pergunta pra ele: e onde está isso? Em quais alimentos? Ele começa a ter dificuldade. Como contornar isso? Ele não tem a menor ideia”, diz Geloneze.

“Pense em um médico que precisa pedir para o paciente substituir o sal. Alguns alunos não conhecem nenhum tempero, não sabem diferenciar a salsinha da cebolinha. Ele vai falar (sobre a necessidade de trocar por outros temperos) de uma maneira superficial e não vai poder ajudar muito aquele paciente”, exemplifica a médica Thais Mauad, professora do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina (FMUSP) e uma das fundadoras da primeira disciplina de Medicina Culinária do Brasil na USP.

Um dos facilitadores da alimentação saudável é cozinhar em larga escala, para guardar porções para as refeições seguintes Foto: Léo Souza/Estadão

É como se a Medicina Culinária pedisse para os alunos darem um passo para trás. “Hoje, vivemos um processo de transição culinária. Com o advento da modernidade, as habilidades culinárias que eram transmitidas majoritariamente de geração para geração, não são mais”, observa Caroline.

Essas habilidades passam por saber selecionar um alimento, fazer uma lista de compras, planejar e preparar uma receita e conseguir executar mais de uma tarefa ao mesmo tempo na cozinha. Tudo isso para chegar a um prato mais colorido e saudável.

Afinal, o que é alimentação saudável?

A Medicina Culinária não tem o objetivo de formar cozinheiros ou ensinar médicos a prescrever dietas – que envolve um plano alimentar, com valor energético total, consistência, balanço de macro e micronutrientes e fracionamento –, algo que, no Brasil, é atividade exclusiva do nutricionista. A ideia é que esse futuro médico consiga dar o “primeiro passo” de uma conversa sobre alimentação – não só nutrição –, com seus pacientes, a fim de incentivar bons hábitos de vida.

Mas, afinal, como a Medicina Culinária define uma alimentação saudável? “É aquela simples, que a gente come a comida que é vendida na feira. A comida que as nossas avós faziam”, aponta Ana Carolina. “Não é vilanizar o glúten, vilanizar o leite, não é idolatrar a farinha sem glúten, não é nada disso.” Os professores também destacam que isso tudo não envolve rejeitar medicamentos ou suplementos.

E por que a comida caseira é tão importante? Durante a parte inicial da aula, a professora Ana apresenta estudos que mostram que, quando uma pessoa cozinha mais, consegue controlar melhor o tamanho das porções e ter uma alimentação com menos sal, gordura saturada, açúcar de adição e aditivos cosméticos, além de ter uma chance reduzida de desenvolver doenças crônicas, como o diabetes tipo 2, por exemplo.

Papel do médico

Um dos pilares da Medicina Culinária é o autocuidado do médico. Isso porque, segundo os especialistas, ele é um espelho para o paciente. Pesquisadores canadenses conseguiram mostrar, em 2013, que pacientes de médicos que se submetiam a práticas preventivas, como exames e vacinas, tinham maior probabilidade de seguir a indicação médica e fazer o mesmo. “Se o médico tem um estilo de vida saudável, ele consegue levar isso com mais verdade para o seu paciente”, resume Ana Carolina.

“Os pacientes acreditam e confiam nas recomendações comportamentais dadas pelos médicos. Seja no aspecto de comportamento, na atividade física e, principalmente, em relação à alimentação”, complementa Geloneze.

No entanto, apenas 14% dos médicos acreditam ter recebido formação adequada em aconselhamento nutricional, de acordo com esta pesquisa. “Os pacientes confiam muito no médico e o médico confia muito pouco em si, até porque ele tem uma certa autocrítica para entender que não tem uma formação sólida nem mesmo razoável nesse assunto.”

Facilitadores

Para preencher essa lacuna, a Medicina Culinária convida os alunos à cozinha. Na Unicamp, os encontros, com cerca de 12 alunos, ocorrem a cada duas ou três semanas, e são divididos entre aula expositiva, que discute o cenário que mostramos anteriormente, e prática, momento no qual os estudantes cozinham. “Quando coloca a mão na massa, a pessoa realmente se sente mais estimulada a fazer isso em casa. Então, na hora que eu faço, que eu pratico, de fato, aquilo faz sentido pra mim”, Caroline.

Lavamos as mãos, colocamos os aventais e nos dividimos em grupos. Cada um fica responsável por uma receita. Todas elas simples, rápidas e com alimentos da estação.

Antes da aula começar, porém, a equipe do projeto já tinha preparado todos os insumos que iríamos precisar. Compraram os ingredientes, fizeram um mise en place (uma espécie de pré-preparo) e colocaram à disposição o que chamam de kit básico para se aventurar na cozinha:

  • Tábua de corte;
  • Medidores de colher e xícara;
  • Descascador de legumes;
  • Faca de legumes;
  • Faca do chefe;
  • Mixer;
  • Processador;
  • Panela wok

Embora as receitas sejam de fato simples, elas são criativas e nos desafiam a usar apenas uma panela para cozinhar uma refeição completa. Minha equipe ficou responsável pelo prato principal: macarrão – mas uma versão turbinada.

A massa já estava cozida, então, na panela, esquentamos oito colheres de sopa de azeite de oliva, adicionamos cúrcuma e páprica, que dão cor à receita e exalam um aroma inebriante. Adicionamos cenoura ralada e deixamos fritar por um minuto antes de adicionar abobrinha ralada fritar por mais dois minutos. Com delicadeza, misturamos a massa, acertamos o sal e, já com a panela desligada, jogamos algumas folhas de hortelã.

Enquanto cada grupo cuidava da sua receita, as professoras passavam para auxiliar e dar informações nutricionais, além de dicas culinárias.

Comida caseira é a base da alimentação saudável para a Medicina Culinária Foto: Léo Souza/Estadão

Um momento obrigatório da aula – e muito esperado – é a degustação. “Fazemos questão de reservar um tempo pra falar do momento da alimentação. O quão importante é a gente sentar numa mesa, se possível com uma toalha, e olhar para refeição, sentir o cheiro o sabor e a textura, descansar os talheres e convidar um familiar ou amigo”, aconselha Ana Carolina.

“Isso se chama comensalidade e está relacionado com qualidade de vida e também com um melhor processo de mastigação, digestão, absorção e secreção de hormônios que vão interferir no processo de saciedade, até nos ajudando a comer menos”, completa.

E, antes que alguém possa alegar que “não tem tempo” – uma reclamação válida nos dias de hoje –, os professores trazem outro pilar da Medicina Culinária: o batch cooking. Isso é, cozinhar em larga escala, o que nos permite congelar o que sobra e deixar para outra refeição.

“Quando eu vou fazer uma sopa, qual é o tempo que gasto para fazer em uma panela pequena? E em uma panela grande? É parecido. Claro, vou ter que picar mais legumes, vai demorar um pouquinho mais, mas nem tanto assim. Por que não investir tempo e ter jantares para vários dias?”, sugere Ana Carolina.

Escolha dos alimentos

Em outra parte da aula, o foco é como fazer melhores escolhas alimentares. Há um incentivo a olhar para o rótulo dos produtos, o que ajuda a classificá-los conforme a classificação NOVA, criada por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP).

São quatro grupos:

  • Alimentos in natura ou minimamente processados: são aqueles consumidos da maneira como vêm da natureza (folhas, sementes, raízes, ovos, etc) ou que passam por algum processo mínimo de processamento, mas sem adição de ingredientes (como os grãos de feijão, que são apenas secos e embalados ou os grãos de café, que são torrados e moídos para virar pó).
  • Ingredientes culinários processados: são substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos, como prensagem, centrifugação e concentração, segundo o Nupens. É o caso do azeite obtido de azeitonas, da manteiga proveniente do leite e do açúcar vindo da cana ou da beterraba.
  • Alimentos processados: são os ingredientes do primeiro grupo (in natura ou minimamente processado) após passar por pequenas modificações que poderiam ser reproduzidas em ambiente doméstico, como conservas, geleias e pães artesanais.
  • Ultraprocessados: grupo composto por alimentos e bebidas que foram submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos. Aqui, entram as bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos, por exemplo.

Como falar de alimentação

Além dos aprendizados nutricionais e culinários, os professores da Unicamp também ensinam como ter conversas sobre mudança de hábitos. Eles recorrem a dois métodos. O primeiro é a entrevista motivacional, com perguntas abertas e centradas no paciente, que permite entender mais sobre quem ele é e o que comer representa ele. Isso permite dar indicações mais individualizadas e respeitando realidades culturais e regionais diferentes.

O segundo método é baseado nas metas SMART, palavra que em inglês significa “inteligente” ou “esperto”. Significa que a meta precisa ser específica, mensurável, atingível, realista e temporal. Um exemplo dado pelos professores é de, ao invés de o médico combinar com o paciente que ele coma legumes, sugerir que a pessoa compre os legumes no final de semana e reserve duas horas para cozinhá-los e cozinhá-los. Assim, esses itens podem compor pratos ao longo da semana.

Aula de Medicina Culinária na cozinha-escola da Unicamp Foto: Léo Souza/Estadão

A receptividade dos alunos

Seja na USP ou na Unicamp, a matéria é um sucesso, segundo os professores. E isso fica estampado na cara dos alunos. “Muito, muito bom. A gente aproveitou bastante. Eu comi bastante, a tarde toda”, brinca Maria Clara Rossi, de 24 anos, sobre o resultado final das receitas que fizemos juntos.

A turma dela já está no quinto ano de medicina, ou seja, já deram o ponta pé nos atendimentos ambulatoriais que fazem parte da formação. Na aula, eles compartilham os momentos em que foram confrontados com dúvidas alimentares e não souberam responder e também falam das vezes em que conseguiram passar instruções com o que já tinham aprendido anteriormente, como o desenho de um prato mais balanceado.

“Eu tinha bastante dificuldade de responder (para o paciente). Acredito que ainda tenho. Mas, depois dessa aula, sinto que ficou um pouco mais organizado na minha cabeça, ficou um pouco mais concreto”, diz.

“Entendi um pouco mais das nuances da questão alimentar, que é muito ampla. Agora tenho um pouco mais de ideia de cada área, quais os tipos de alimento existem, as maneiras que você pode fazer para tornar isso um processo mais tranquilo e palpável no dia a dia, que não precisa ser tão demorado. Dá para ser mais simples”, completa.

João Felipe Agostini, de 22, concorda com a colega. “Sempre tive alguma insegurança, e vou continuar com ela, porque sempre vai ter alguma coisa a mais para aprender. Mas vou levar (ao consultório) o que já sei, como a diminuição do consumo de ultraprocessados, uma alimentação minimamente equilibrada, sem tentar fazer um papel de um nutricionista ou de um especialista no assunto.”

O Projeto MeNu promove as aulas de Medicina Culinária na Unicamp Foto: Léo Souza/Estadão

Educação médica

Assim como não há um conceito fechado para Medicina Culinária, o formato das aulas pode variar. Mas, em geral, alguns elementos estão sempre presentes, pelo menos no Brasil: o uso do “Guia Alimentar para a População Brasileira”, do Ministério da Saúde, como base; uma equipe transdisciplinar, envolvendo médicos e nutricionistas, principalmente; e a valorização dos módulos práticos.

Além disso, há uma grande valorização da biodiversidade brasileira, por meio da escolha de ingredientes frescos, assim como um apelo à sustentabilidade. Na USP, por exemplo, eles pesam os resíduos produzidos após a aula prática.

Agora, ela aparece tanto como disciplina optativa, como na USP, ou dentro de outras matérias da grade, como na Unicamp. Internacionalmente, há experiências remotas, em que o aluno usa a própria cozinha. Mas os professores tendem a preferir a experiência presencial. “Nada é igual a você estar do lado da pessoa ensinando a cozinhar”, fala Thais Mauad.

A professora da USP conta que, por lá, a disciplina envolve cinco encontros, e, em geral, antes de cozinhar, é apresentado um caso clínico fictício, de um paciente que pode se beneficiar de uma mudança do hábito alimentar. Além da Thais, a matéria envolve pelo menos mais onze profissionais, e tem apoio didático do Laboratório do Lee: Gastronomia de Inclusão e do Laboratório e Cozinha Didática de Procedimento e Técnica Culinária Aplicada à Nutrição (PTCAN).

De acordo com o recente artigo dos professores da Unicamp, ainda não publicado, as diretrizes curriculares brasileiras para o ensino médico não incluem as palavras “nutrição”, “alimento” ou “dieta”. No entanto, o Ministério da Saúde, em uma publicação de 2022, destaca que a responsabilidade pelos cuidados nutricionais precisa ser um esforço coletivo dos profissionais da saúde, principalmente na atenção primária.

Os professores em disciplinas do tipo defendem que haja uma matéria específica de Medicina Culinária dentro da grade da graduação, de preferência como uma matéria obrigatória. Eles destacam que também pode ser interessante que, dentro de disciplinas já consolidadas, usem-se módulos com a metodologia da nova área, afinal, há entrecruzamentos, como uma aula sobre o uso do sal dentro de uma matéria que aborde cardiologia.

Mas essa é uma discussão que ainda deve avançar e amadurecer. O Estadão buscou o Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) para questionar as avaliações sobre a nova disciplina.

O conselheiro Júlio Braga, coordenador da Comissão de Ensino Médico do CFM, falou que as diretrizes curriculares da Medicina falam em “prevenção de doenças e orientações dietéticas como algumas das intervenções utilizadas com essa finalidade terapêutica”. “O médico recebe essas informações durante o curso.”

Sobre a introdução das disciplinas de Medicina Culinária no Brasil, ele disse que é “possível estudar temas específicos”. Apenas alertou que isso não configura uma especialidade médica. Ou seja, “o médico não pode se anunciar como especialista, pois poderia induzir pacientes a acreditarem que há uma área muito especializada.”

Ele avalia que uma disciplina do tipo deveria ser eletiva, não obrigatória, ou uma atividade de extensão. “Trata-se de uma abordagem também interessante na atuação multiprofissional.”

“É importante que os profissionais de saúde conheçam as ações e as ferramentas que utilizamos para a educação alimentar e nutricional”, fala o nutricionista Alexsandro Wosniaki, diretor do CFN, citando o guia do Ministério da Saúde e também o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional (EAN).

“Porque eles desempenham um papel crucial, quando pensamos em prevenção e promoção da saúde dentro da atenção primária, que é a porta de entrada para o SUS”, completa. Ainda sobre a Medicina Culinária, ele destaca a importância de que os promotores das disciplinas tomem cuidado para não ultrapassar as atividades privativas dos nutricionistas, como a prescrição de dietoterapia.

Evidências

A Medicina Culinária é baseada em evidências científicas, mas, como qualquer área emergente, está “engatinhando”, nas palavras da professora Caroline, para mostrar que quando aplicada pelo profissional da saúde, isso se reverte em melhorias ao paciente, segundo ela.

“Os estudos mostram que os profissionais da saúde que recebem essa capacitação se sentem mais conscientes, mais preparados e há uma melhora de comunicação com o paciente. E a alimentação dos profissionais muda, e eles passam a ter um padrão alimentar mais saudável”, fala a professora.

Um desses estudos avaliou o impacto de uma das edições da conferência Healthy Kitchens, Healthy Lives–Caring for Our Patients and Ourselves, um parceria da Harvard University e do The Culinary Institute of America, considerada um dos marcos iniciais da Medicina Culinária e uma das promotoras da nova disciplina. Os participantes, a maioria médicos, relataram mudanças positivas: passaram a cozinhar mais suas próprias refeições e a comer mais vegetais, oleaginosas e grãos integrais.

“No mínimo, queremos que os alunos se tornem mais saudáveis”, diz Geloneze.

CAMPINAS - A equipe lava talheres e pratos, e dispõe cumbucas com legumes ralados na bancada. Do forno, o cheiro de biscoitos caseiros impregna os corredores que levam até à cozinha, que, à primeira vista parece com a de qualquer casa. Para chegar até ela, no entanto, foi preciso atravessar a sala de espera de um hospital-dia, e usar rampas para subir três andares.

Aquela cozinha tão familiar é, na verdade, uma sala de aula. E quem utiliza a estrutura não são alunos de Gastronomia ou Nutrição, mas, sim, médicos em formação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O encontro de Medicina Culinária é promovido pelo Projeto MeNu dentro da disciplina Atenção Integral à Saúde do Adulto, de responsabilidade dos professores e médicos Lício Velloso e Bruno Geloneze da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Mas as estrelas dessa aula em específico são as nutricionistas e professoras Ana Carolina Vasques e Caroline Capitani, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA).

Os alunos chegam curiosos e ficam notadamente felizes com uma recepção calorosa: uma térmica de café e biscoitos que acabaram de sair do forno. Enquanto os estudantes se acomodam nas cadeiras, os professores explicam por que eles estão ali.

“Temos um aumento absurdo e lamentável do que a gente chama de sindemia. Duas pandemias praticamente opostas. O Brasil tem a concomitância de índices crescentes e alarmantes de obesidade e ainda convive com um certo grau de desnutrição, mas, principalmente, insegurança alimentar”, aponta o endocrinologista Geloneze.

De acordo com a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), de 2021, a prevalência de excesso de peso (sobrepeso) na população brasileira é de 57,2% e a de obesidade, 22,4%. Enquanto isso, a insegurança alimentar, quando não há acesso permanente à alimentação adequada, é realidade para 27,6% (ou 21,6 milhões) dos lares do País.

A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) alerta para o risco elevado de doenças associadas a um quadro de obesidade, como diabetes, doenças cardiovasculares e alguns cânceres. A verdade é que, de maneira geral, as doenças crônicas não transmissíveis estão em ascensão não só no Brasil, mas no mundo.

Nas aulas de Medicina Culinária, é fundamental colocar a mão na massa Foto: Léo Souza/Estadão

“A alimentação é a base da boa saúde e da prevenção das doenças crônicas. Se a gente melhorasse o cenário alimentar do mundo, conseguiríamos prevenir uma em cada cinco mortes no planeta”, afirma Ana Carolina. Ela cita dados de estudo do americano Institute for Health Metrics and Evaluation publicado na respeitada revista científica The Lancet.

É nesse pano de fundo que a nova disciplina, a Medicina Culinária, começa a tomar forma nos Estados Unidos por volta de 2006 – embora experiências isoladas datem de 130 anos atrás –, e se espalha no mundo e no Brasil, porém, ainda de forma “tímida”, conforme os especialistas. Ela está dentro da chamada Medicina do Estilo de Vida, que aborda também o papel de comportamentos como tabagismo e sedentarismo na prevenção e no manejo de doenças.

Em artigo dos professores da Unicamp, que ainda não foi publicado, eles apontam que não há ainda um conceito global para a nova disciplina. Para eles, “a Medicina Culinária funde a arte de cozinhar em casa com as ciências da nutrição humana, a psicologia, a gastronomia e a medicina para promover a saúde e o bem-estar”.

“Esse médico que está se formando, ele sabe o que é carboidrato, proteína e, quem sabe, ácidos graxos livres. Você pergunta pra ele: e onde está isso? Em quais alimentos? Ele começa a ter dificuldade. Como contornar isso? Ele não tem a menor ideia”, diz Geloneze.

“Pense em um médico que precisa pedir para o paciente substituir o sal. Alguns alunos não conhecem nenhum tempero, não sabem diferenciar a salsinha da cebolinha. Ele vai falar (sobre a necessidade de trocar por outros temperos) de uma maneira superficial e não vai poder ajudar muito aquele paciente”, exemplifica a médica Thais Mauad, professora do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina (FMUSP) e uma das fundadoras da primeira disciplina de Medicina Culinária do Brasil na USP.

Um dos facilitadores da alimentação saudável é cozinhar em larga escala, para guardar porções para as refeições seguintes Foto: Léo Souza/Estadão

É como se a Medicina Culinária pedisse para os alunos darem um passo para trás. “Hoje, vivemos um processo de transição culinária. Com o advento da modernidade, as habilidades culinárias que eram transmitidas majoritariamente de geração para geração, não são mais”, observa Caroline.

Essas habilidades passam por saber selecionar um alimento, fazer uma lista de compras, planejar e preparar uma receita e conseguir executar mais de uma tarefa ao mesmo tempo na cozinha. Tudo isso para chegar a um prato mais colorido e saudável.

Afinal, o que é alimentação saudável?

A Medicina Culinária não tem o objetivo de formar cozinheiros ou ensinar médicos a prescrever dietas – que envolve um plano alimentar, com valor energético total, consistência, balanço de macro e micronutrientes e fracionamento –, algo que, no Brasil, é atividade exclusiva do nutricionista. A ideia é que esse futuro médico consiga dar o “primeiro passo” de uma conversa sobre alimentação – não só nutrição –, com seus pacientes, a fim de incentivar bons hábitos de vida.

Mas, afinal, como a Medicina Culinária define uma alimentação saudável? “É aquela simples, que a gente come a comida que é vendida na feira. A comida que as nossas avós faziam”, aponta Ana Carolina. “Não é vilanizar o glúten, vilanizar o leite, não é idolatrar a farinha sem glúten, não é nada disso.” Os professores também destacam que isso tudo não envolve rejeitar medicamentos ou suplementos.

E por que a comida caseira é tão importante? Durante a parte inicial da aula, a professora Ana apresenta estudos que mostram que, quando uma pessoa cozinha mais, consegue controlar melhor o tamanho das porções e ter uma alimentação com menos sal, gordura saturada, açúcar de adição e aditivos cosméticos, além de ter uma chance reduzida de desenvolver doenças crônicas, como o diabetes tipo 2, por exemplo.

Papel do médico

Um dos pilares da Medicina Culinária é o autocuidado do médico. Isso porque, segundo os especialistas, ele é um espelho para o paciente. Pesquisadores canadenses conseguiram mostrar, em 2013, que pacientes de médicos que se submetiam a práticas preventivas, como exames e vacinas, tinham maior probabilidade de seguir a indicação médica e fazer o mesmo. “Se o médico tem um estilo de vida saudável, ele consegue levar isso com mais verdade para o seu paciente”, resume Ana Carolina.

“Os pacientes acreditam e confiam nas recomendações comportamentais dadas pelos médicos. Seja no aspecto de comportamento, na atividade física e, principalmente, em relação à alimentação”, complementa Geloneze.

No entanto, apenas 14% dos médicos acreditam ter recebido formação adequada em aconselhamento nutricional, de acordo com esta pesquisa. “Os pacientes confiam muito no médico e o médico confia muito pouco em si, até porque ele tem uma certa autocrítica para entender que não tem uma formação sólida nem mesmo razoável nesse assunto.”

Facilitadores

Para preencher essa lacuna, a Medicina Culinária convida os alunos à cozinha. Na Unicamp, os encontros, com cerca de 12 alunos, ocorrem a cada duas ou três semanas, e são divididos entre aula expositiva, que discute o cenário que mostramos anteriormente, e prática, momento no qual os estudantes cozinham. “Quando coloca a mão na massa, a pessoa realmente se sente mais estimulada a fazer isso em casa. Então, na hora que eu faço, que eu pratico, de fato, aquilo faz sentido pra mim”, Caroline.

Lavamos as mãos, colocamos os aventais e nos dividimos em grupos. Cada um fica responsável por uma receita. Todas elas simples, rápidas e com alimentos da estação.

Antes da aula começar, porém, a equipe do projeto já tinha preparado todos os insumos que iríamos precisar. Compraram os ingredientes, fizeram um mise en place (uma espécie de pré-preparo) e colocaram à disposição o que chamam de kit básico para se aventurar na cozinha:

  • Tábua de corte;
  • Medidores de colher e xícara;
  • Descascador de legumes;
  • Faca de legumes;
  • Faca do chefe;
  • Mixer;
  • Processador;
  • Panela wok

Embora as receitas sejam de fato simples, elas são criativas e nos desafiam a usar apenas uma panela para cozinhar uma refeição completa. Minha equipe ficou responsável pelo prato principal: macarrão – mas uma versão turbinada.

A massa já estava cozida, então, na panela, esquentamos oito colheres de sopa de azeite de oliva, adicionamos cúrcuma e páprica, que dão cor à receita e exalam um aroma inebriante. Adicionamos cenoura ralada e deixamos fritar por um minuto antes de adicionar abobrinha ralada fritar por mais dois minutos. Com delicadeza, misturamos a massa, acertamos o sal e, já com a panela desligada, jogamos algumas folhas de hortelã.

Enquanto cada grupo cuidava da sua receita, as professoras passavam para auxiliar e dar informações nutricionais, além de dicas culinárias.

Comida caseira é a base da alimentação saudável para a Medicina Culinária Foto: Léo Souza/Estadão

Um momento obrigatório da aula – e muito esperado – é a degustação. “Fazemos questão de reservar um tempo pra falar do momento da alimentação. O quão importante é a gente sentar numa mesa, se possível com uma toalha, e olhar para refeição, sentir o cheiro o sabor e a textura, descansar os talheres e convidar um familiar ou amigo”, aconselha Ana Carolina.

“Isso se chama comensalidade e está relacionado com qualidade de vida e também com um melhor processo de mastigação, digestão, absorção e secreção de hormônios que vão interferir no processo de saciedade, até nos ajudando a comer menos”, completa.

E, antes que alguém possa alegar que “não tem tempo” – uma reclamação válida nos dias de hoje –, os professores trazem outro pilar da Medicina Culinária: o batch cooking. Isso é, cozinhar em larga escala, o que nos permite congelar o que sobra e deixar para outra refeição.

“Quando eu vou fazer uma sopa, qual é o tempo que gasto para fazer em uma panela pequena? E em uma panela grande? É parecido. Claro, vou ter que picar mais legumes, vai demorar um pouquinho mais, mas nem tanto assim. Por que não investir tempo e ter jantares para vários dias?”, sugere Ana Carolina.

Escolha dos alimentos

Em outra parte da aula, o foco é como fazer melhores escolhas alimentares. Há um incentivo a olhar para o rótulo dos produtos, o que ajuda a classificá-los conforme a classificação NOVA, criada por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP).

São quatro grupos:

  • Alimentos in natura ou minimamente processados: são aqueles consumidos da maneira como vêm da natureza (folhas, sementes, raízes, ovos, etc) ou que passam por algum processo mínimo de processamento, mas sem adição de ingredientes (como os grãos de feijão, que são apenas secos e embalados ou os grãos de café, que são torrados e moídos para virar pó).
  • Ingredientes culinários processados: são substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos, como prensagem, centrifugação e concentração, segundo o Nupens. É o caso do azeite obtido de azeitonas, da manteiga proveniente do leite e do açúcar vindo da cana ou da beterraba.
  • Alimentos processados: são os ingredientes do primeiro grupo (in natura ou minimamente processado) após passar por pequenas modificações que poderiam ser reproduzidas em ambiente doméstico, como conservas, geleias e pães artesanais.
  • Ultraprocessados: grupo composto por alimentos e bebidas que foram submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos. Aqui, entram as bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos, por exemplo.

Como falar de alimentação

Além dos aprendizados nutricionais e culinários, os professores da Unicamp também ensinam como ter conversas sobre mudança de hábitos. Eles recorrem a dois métodos. O primeiro é a entrevista motivacional, com perguntas abertas e centradas no paciente, que permite entender mais sobre quem ele é e o que comer representa ele. Isso permite dar indicações mais individualizadas e respeitando realidades culturais e regionais diferentes.

O segundo método é baseado nas metas SMART, palavra que em inglês significa “inteligente” ou “esperto”. Significa que a meta precisa ser específica, mensurável, atingível, realista e temporal. Um exemplo dado pelos professores é de, ao invés de o médico combinar com o paciente que ele coma legumes, sugerir que a pessoa compre os legumes no final de semana e reserve duas horas para cozinhá-los e cozinhá-los. Assim, esses itens podem compor pratos ao longo da semana.

Aula de Medicina Culinária na cozinha-escola da Unicamp Foto: Léo Souza/Estadão

A receptividade dos alunos

Seja na USP ou na Unicamp, a matéria é um sucesso, segundo os professores. E isso fica estampado na cara dos alunos. “Muito, muito bom. A gente aproveitou bastante. Eu comi bastante, a tarde toda”, brinca Maria Clara Rossi, de 24 anos, sobre o resultado final das receitas que fizemos juntos.

A turma dela já está no quinto ano de medicina, ou seja, já deram o ponta pé nos atendimentos ambulatoriais que fazem parte da formação. Na aula, eles compartilham os momentos em que foram confrontados com dúvidas alimentares e não souberam responder e também falam das vezes em que conseguiram passar instruções com o que já tinham aprendido anteriormente, como o desenho de um prato mais balanceado.

“Eu tinha bastante dificuldade de responder (para o paciente). Acredito que ainda tenho. Mas, depois dessa aula, sinto que ficou um pouco mais organizado na minha cabeça, ficou um pouco mais concreto”, diz.

“Entendi um pouco mais das nuances da questão alimentar, que é muito ampla. Agora tenho um pouco mais de ideia de cada área, quais os tipos de alimento existem, as maneiras que você pode fazer para tornar isso um processo mais tranquilo e palpável no dia a dia, que não precisa ser tão demorado. Dá para ser mais simples”, completa.

João Felipe Agostini, de 22, concorda com a colega. “Sempre tive alguma insegurança, e vou continuar com ela, porque sempre vai ter alguma coisa a mais para aprender. Mas vou levar (ao consultório) o que já sei, como a diminuição do consumo de ultraprocessados, uma alimentação minimamente equilibrada, sem tentar fazer um papel de um nutricionista ou de um especialista no assunto.”

O Projeto MeNu promove as aulas de Medicina Culinária na Unicamp Foto: Léo Souza/Estadão

Educação médica

Assim como não há um conceito fechado para Medicina Culinária, o formato das aulas pode variar. Mas, em geral, alguns elementos estão sempre presentes, pelo menos no Brasil: o uso do “Guia Alimentar para a População Brasileira”, do Ministério da Saúde, como base; uma equipe transdisciplinar, envolvendo médicos e nutricionistas, principalmente; e a valorização dos módulos práticos.

Além disso, há uma grande valorização da biodiversidade brasileira, por meio da escolha de ingredientes frescos, assim como um apelo à sustentabilidade. Na USP, por exemplo, eles pesam os resíduos produzidos após a aula prática.

Agora, ela aparece tanto como disciplina optativa, como na USP, ou dentro de outras matérias da grade, como na Unicamp. Internacionalmente, há experiências remotas, em que o aluno usa a própria cozinha. Mas os professores tendem a preferir a experiência presencial. “Nada é igual a você estar do lado da pessoa ensinando a cozinhar”, fala Thais Mauad.

A professora da USP conta que, por lá, a disciplina envolve cinco encontros, e, em geral, antes de cozinhar, é apresentado um caso clínico fictício, de um paciente que pode se beneficiar de uma mudança do hábito alimentar. Além da Thais, a matéria envolve pelo menos mais onze profissionais, e tem apoio didático do Laboratório do Lee: Gastronomia de Inclusão e do Laboratório e Cozinha Didática de Procedimento e Técnica Culinária Aplicada à Nutrição (PTCAN).

De acordo com o recente artigo dos professores da Unicamp, ainda não publicado, as diretrizes curriculares brasileiras para o ensino médico não incluem as palavras “nutrição”, “alimento” ou “dieta”. No entanto, o Ministério da Saúde, em uma publicação de 2022, destaca que a responsabilidade pelos cuidados nutricionais precisa ser um esforço coletivo dos profissionais da saúde, principalmente na atenção primária.

Os professores em disciplinas do tipo defendem que haja uma matéria específica de Medicina Culinária dentro da grade da graduação, de preferência como uma matéria obrigatória. Eles destacam que também pode ser interessante que, dentro de disciplinas já consolidadas, usem-se módulos com a metodologia da nova área, afinal, há entrecruzamentos, como uma aula sobre o uso do sal dentro de uma matéria que aborde cardiologia.

Mas essa é uma discussão que ainda deve avançar e amadurecer. O Estadão buscou o Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) para questionar as avaliações sobre a nova disciplina.

O conselheiro Júlio Braga, coordenador da Comissão de Ensino Médico do CFM, falou que as diretrizes curriculares da Medicina falam em “prevenção de doenças e orientações dietéticas como algumas das intervenções utilizadas com essa finalidade terapêutica”. “O médico recebe essas informações durante o curso.”

Sobre a introdução das disciplinas de Medicina Culinária no Brasil, ele disse que é “possível estudar temas específicos”. Apenas alertou que isso não configura uma especialidade médica. Ou seja, “o médico não pode se anunciar como especialista, pois poderia induzir pacientes a acreditarem que há uma área muito especializada.”

Ele avalia que uma disciplina do tipo deveria ser eletiva, não obrigatória, ou uma atividade de extensão. “Trata-se de uma abordagem também interessante na atuação multiprofissional.”

“É importante que os profissionais de saúde conheçam as ações e as ferramentas que utilizamos para a educação alimentar e nutricional”, fala o nutricionista Alexsandro Wosniaki, diretor do CFN, citando o guia do Ministério da Saúde e também o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional (EAN).

“Porque eles desempenham um papel crucial, quando pensamos em prevenção e promoção da saúde dentro da atenção primária, que é a porta de entrada para o SUS”, completa. Ainda sobre a Medicina Culinária, ele destaca a importância de que os promotores das disciplinas tomem cuidado para não ultrapassar as atividades privativas dos nutricionistas, como a prescrição de dietoterapia.

Evidências

A Medicina Culinária é baseada em evidências científicas, mas, como qualquer área emergente, está “engatinhando”, nas palavras da professora Caroline, para mostrar que quando aplicada pelo profissional da saúde, isso se reverte em melhorias ao paciente, segundo ela.

“Os estudos mostram que os profissionais da saúde que recebem essa capacitação se sentem mais conscientes, mais preparados e há uma melhora de comunicação com o paciente. E a alimentação dos profissionais muda, e eles passam a ter um padrão alimentar mais saudável”, fala a professora.

Um desses estudos avaliou o impacto de uma das edições da conferência Healthy Kitchens, Healthy Lives–Caring for Our Patients and Ourselves, um parceria da Harvard University e do The Culinary Institute of America, considerada um dos marcos iniciais da Medicina Culinária e uma das promotoras da nova disciplina. Os participantes, a maioria médicos, relataram mudanças positivas: passaram a cozinhar mais suas próprias refeições e a comer mais vegetais, oleaginosas e grãos integrais.

“No mínimo, queremos que os alunos se tornem mais saudáveis”, diz Geloneze.

CAMPINAS - A equipe lava talheres e pratos, e dispõe cumbucas com legumes ralados na bancada. Do forno, o cheiro de biscoitos caseiros impregna os corredores que levam até à cozinha, que, à primeira vista parece com a de qualquer casa. Para chegar até ela, no entanto, foi preciso atravessar a sala de espera de um hospital-dia, e usar rampas para subir três andares.

Aquela cozinha tão familiar é, na verdade, uma sala de aula. E quem utiliza a estrutura não são alunos de Gastronomia ou Nutrição, mas, sim, médicos em formação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O encontro de Medicina Culinária é promovido pelo Projeto MeNu dentro da disciplina Atenção Integral à Saúde do Adulto, de responsabilidade dos professores e médicos Lício Velloso e Bruno Geloneze da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Mas as estrelas dessa aula em específico são as nutricionistas e professoras Ana Carolina Vasques e Caroline Capitani, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA).

Os alunos chegam curiosos e ficam notadamente felizes com uma recepção calorosa: uma térmica de café e biscoitos que acabaram de sair do forno. Enquanto os estudantes se acomodam nas cadeiras, os professores explicam por que eles estão ali.

“Temos um aumento absurdo e lamentável do que a gente chama de sindemia. Duas pandemias praticamente opostas. O Brasil tem a concomitância de índices crescentes e alarmantes de obesidade e ainda convive com um certo grau de desnutrição, mas, principalmente, insegurança alimentar”, aponta o endocrinologista Geloneze.

De acordo com a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), de 2021, a prevalência de excesso de peso (sobrepeso) na população brasileira é de 57,2% e a de obesidade, 22,4%. Enquanto isso, a insegurança alimentar, quando não há acesso permanente à alimentação adequada, é realidade para 27,6% (ou 21,6 milhões) dos lares do País.

A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) alerta para o risco elevado de doenças associadas a um quadro de obesidade, como diabetes, doenças cardiovasculares e alguns cânceres. A verdade é que, de maneira geral, as doenças crônicas não transmissíveis estão em ascensão não só no Brasil, mas no mundo.

Nas aulas de Medicina Culinária, é fundamental colocar a mão na massa Foto: Léo Souza/Estadão

“A alimentação é a base da boa saúde e da prevenção das doenças crônicas. Se a gente melhorasse o cenário alimentar do mundo, conseguiríamos prevenir uma em cada cinco mortes no planeta”, afirma Ana Carolina. Ela cita dados de estudo do americano Institute for Health Metrics and Evaluation publicado na respeitada revista científica The Lancet.

É nesse pano de fundo que a nova disciplina, a Medicina Culinária, começa a tomar forma nos Estados Unidos por volta de 2006 – embora experiências isoladas datem de 130 anos atrás –, e se espalha no mundo e no Brasil, porém, ainda de forma “tímida”, conforme os especialistas. Ela está dentro da chamada Medicina do Estilo de Vida, que aborda também o papel de comportamentos como tabagismo e sedentarismo na prevenção e no manejo de doenças.

Em artigo dos professores da Unicamp, que ainda não foi publicado, eles apontam que não há ainda um conceito global para a nova disciplina. Para eles, “a Medicina Culinária funde a arte de cozinhar em casa com as ciências da nutrição humana, a psicologia, a gastronomia e a medicina para promover a saúde e o bem-estar”.

“Esse médico que está se formando, ele sabe o que é carboidrato, proteína e, quem sabe, ácidos graxos livres. Você pergunta pra ele: e onde está isso? Em quais alimentos? Ele começa a ter dificuldade. Como contornar isso? Ele não tem a menor ideia”, diz Geloneze.

“Pense em um médico que precisa pedir para o paciente substituir o sal. Alguns alunos não conhecem nenhum tempero, não sabem diferenciar a salsinha da cebolinha. Ele vai falar (sobre a necessidade de trocar por outros temperos) de uma maneira superficial e não vai poder ajudar muito aquele paciente”, exemplifica a médica Thais Mauad, professora do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina (FMUSP) e uma das fundadoras da primeira disciplina de Medicina Culinária do Brasil na USP.

Um dos facilitadores da alimentação saudável é cozinhar em larga escala, para guardar porções para as refeições seguintes Foto: Léo Souza/Estadão

É como se a Medicina Culinária pedisse para os alunos darem um passo para trás. “Hoje, vivemos um processo de transição culinária. Com o advento da modernidade, as habilidades culinárias que eram transmitidas majoritariamente de geração para geração, não são mais”, observa Caroline.

Essas habilidades passam por saber selecionar um alimento, fazer uma lista de compras, planejar e preparar uma receita e conseguir executar mais de uma tarefa ao mesmo tempo na cozinha. Tudo isso para chegar a um prato mais colorido e saudável.

Afinal, o que é alimentação saudável?

A Medicina Culinária não tem o objetivo de formar cozinheiros ou ensinar médicos a prescrever dietas – que envolve um plano alimentar, com valor energético total, consistência, balanço de macro e micronutrientes e fracionamento –, algo que, no Brasil, é atividade exclusiva do nutricionista. A ideia é que esse futuro médico consiga dar o “primeiro passo” de uma conversa sobre alimentação – não só nutrição –, com seus pacientes, a fim de incentivar bons hábitos de vida.

Mas, afinal, como a Medicina Culinária define uma alimentação saudável? “É aquela simples, que a gente come a comida que é vendida na feira. A comida que as nossas avós faziam”, aponta Ana Carolina. “Não é vilanizar o glúten, vilanizar o leite, não é idolatrar a farinha sem glúten, não é nada disso.” Os professores também destacam que isso tudo não envolve rejeitar medicamentos ou suplementos.

E por que a comida caseira é tão importante? Durante a parte inicial da aula, a professora Ana apresenta estudos que mostram que, quando uma pessoa cozinha mais, consegue controlar melhor o tamanho das porções e ter uma alimentação com menos sal, gordura saturada, açúcar de adição e aditivos cosméticos, além de ter uma chance reduzida de desenvolver doenças crônicas, como o diabetes tipo 2, por exemplo.

Papel do médico

Um dos pilares da Medicina Culinária é o autocuidado do médico. Isso porque, segundo os especialistas, ele é um espelho para o paciente. Pesquisadores canadenses conseguiram mostrar, em 2013, que pacientes de médicos que se submetiam a práticas preventivas, como exames e vacinas, tinham maior probabilidade de seguir a indicação médica e fazer o mesmo. “Se o médico tem um estilo de vida saudável, ele consegue levar isso com mais verdade para o seu paciente”, resume Ana Carolina.

“Os pacientes acreditam e confiam nas recomendações comportamentais dadas pelos médicos. Seja no aspecto de comportamento, na atividade física e, principalmente, em relação à alimentação”, complementa Geloneze.

No entanto, apenas 14% dos médicos acreditam ter recebido formação adequada em aconselhamento nutricional, de acordo com esta pesquisa. “Os pacientes confiam muito no médico e o médico confia muito pouco em si, até porque ele tem uma certa autocrítica para entender que não tem uma formação sólida nem mesmo razoável nesse assunto.”

Facilitadores

Para preencher essa lacuna, a Medicina Culinária convida os alunos à cozinha. Na Unicamp, os encontros, com cerca de 12 alunos, ocorrem a cada duas ou três semanas, e são divididos entre aula expositiva, que discute o cenário que mostramos anteriormente, e prática, momento no qual os estudantes cozinham. “Quando coloca a mão na massa, a pessoa realmente se sente mais estimulada a fazer isso em casa. Então, na hora que eu faço, que eu pratico, de fato, aquilo faz sentido pra mim”, Caroline.

Lavamos as mãos, colocamos os aventais e nos dividimos em grupos. Cada um fica responsável por uma receita. Todas elas simples, rápidas e com alimentos da estação.

Antes da aula começar, porém, a equipe do projeto já tinha preparado todos os insumos que iríamos precisar. Compraram os ingredientes, fizeram um mise en place (uma espécie de pré-preparo) e colocaram à disposição o que chamam de kit básico para se aventurar na cozinha:

  • Tábua de corte;
  • Medidores de colher e xícara;
  • Descascador de legumes;
  • Faca de legumes;
  • Faca do chefe;
  • Mixer;
  • Processador;
  • Panela wok

Embora as receitas sejam de fato simples, elas são criativas e nos desafiam a usar apenas uma panela para cozinhar uma refeição completa. Minha equipe ficou responsável pelo prato principal: macarrão – mas uma versão turbinada.

A massa já estava cozida, então, na panela, esquentamos oito colheres de sopa de azeite de oliva, adicionamos cúrcuma e páprica, que dão cor à receita e exalam um aroma inebriante. Adicionamos cenoura ralada e deixamos fritar por um minuto antes de adicionar abobrinha ralada fritar por mais dois minutos. Com delicadeza, misturamos a massa, acertamos o sal e, já com a panela desligada, jogamos algumas folhas de hortelã.

Enquanto cada grupo cuidava da sua receita, as professoras passavam para auxiliar e dar informações nutricionais, além de dicas culinárias.

Comida caseira é a base da alimentação saudável para a Medicina Culinária Foto: Léo Souza/Estadão

Um momento obrigatório da aula – e muito esperado – é a degustação. “Fazemos questão de reservar um tempo pra falar do momento da alimentação. O quão importante é a gente sentar numa mesa, se possível com uma toalha, e olhar para refeição, sentir o cheiro o sabor e a textura, descansar os talheres e convidar um familiar ou amigo”, aconselha Ana Carolina.

“Isso se chama comensalidade e está relacionado com qualidade de vida e também com um melhor processo de mastigação, digestão, absorção e secreção de hormônios que vão interferir no processo de saciedade, até nos ajudando a comer menos”, completa.

E, antes que alguém possa alegar que “não tem tempo” – uma reclamação válida nos dias de hoje –, os professores trazem outro pilar da Medicina Culinária: o batch cooking. Isso é, cozinhar em larga escala, o que nos permite congelar o que sobra e deixar para outra refeição.

“Quando eu vou fazer uma sopa, qual é o tempo que gasto para fazer em uma panela pequena? E em uma panela grande? É parecido. Claro, vou ter que picar mais legumes, vai demorar um pouquinho mais, mas nem tanto assim. Por que não investir tempo e ter jantares para vários dias?”, sugere Ana Carolina.

Escolha dos alimentos

Em outra parte da aula, o foco é como fazer melhores escolhas alimentares. Há um incentivo a olhar para o rótulo dos produtos, o que ajuda a classificá-los conforme a classificação NOVA, criada por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP).

São quatro grupos:

  • Alimentos in natura ou minimamente processados: são aqueles consumidos da maneira como vêm da natureza (folhas, sementes, raízes, ovos, etc) ou que passam por algum processo mínimo de processamento, mas sem adição de ingredientes (como os grãos de feijão, que são apenas secos e embalados ou os grãos de café, que são torrados e moídos para virar pó).
  • Ingredientes culinários processados: são substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos, como prensagem, centrifugação e concentração, segundo o Nupens. É o caso do azeite obtido de azeitonas, da manteiga proveniente do leite e do açúcar vindo da cana ou da beterraba.
  • Alimentos processados: são os ingredientes do primeiro grupo (in natura ou minimamente processado) após passar por pequenas modificações que poderiam ser reproduzidas em ambiente doméstico, como conservas, geleias e pães artesanais.
  • Ultraprocessados: grupo composto por alimentos e bebidas que foram submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos. Aqui, entram as bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos, por exemplo.

Como falar de alimentação

Além dos aprendizados nutricionais e culinários, os professores da Unicamp também ensinam como ter conversas sobre mudança de hábitos. Eles recorrem a dois métodos. O primeiro é a entrevista motivacional, com perguntas abertas e centradas no paciente, que permite entender mais sobre quem ele é e o que comer representa ele. Isso permite dar indicações mais individualizadas e respeitando realidades culturais e regionais diferentes.

O segundo método é baseado nas metas SMART, palavra que em inglês significa “inteligente” ou “esperto”. Significa que a meta precisa ser específica, mensurável, atingível, realista e temporal. Um exemplo dado pelos professores é de, ao invés de o médico combinar com o paciente que ele coma legumes, sugerir que a pessoa compre os legumes no final de semana e reserve duas horas para cozinhá-los e cozinhá-los. Assim, esses itens podem compor pratos ao longo da semana.

Aula de Medicina Culinária na cozinha-escola da Unicamp Foto: Léo Souza/Estadão

A receptividade dos alunos

Seja na USP ou na Unicamp, a matéria é um sucesso, segundo os professores. E isso fica estampado na cara dos alunos. “Muito, muito bom. A gente aproveitou bastante. Eu comi bastante, a tarde toda”, brinca Maria Clara Rossi, de 24 anos, sobre o resultado final das receitas que fizemos juntos.

A turma dela já está no quinto ano de medicina, ou seja, já deram o ponta pé nos atendimentos ambulatoriais que fazem parte da formação. Na aula, eles compartilham os momentos em que foram confrontados com dúvidas alimentares e não souberam responder e também falam das vezes em que conseguiram passar instruções com o que já tinham aprendido anteriormente, como o desenho de um prato mais balanceado.

“Eu tinha bastante dificuldade de responder (para o paciente). Acredito que ainda tenho. Mas, depois dessa aula, sinto que ficou um pouco mais organizado na minha cabeça, ficou um pouco mais concreto”, diz.

“Entendi um pouco mais das nuances da questão alimentar, que é muito ampla. Agora tenho um pouco mais de ideia de cada área, quais os tipos de alimento existem, as maneiras que você pode fazer para tornar isso um processo mais tranquilo e palpável no dia a dia, que não precisa ser tão demorado. Dá para ser mais simples”, completa.

João Felipe Agostini, de 22, concorda com a colega. “Sempre tive alguma insegurança, e vou continuar com ela, porque sempre vai ter alguma coisa a mais para aprender. Mas vou levar (ao consultório) o que já sei, como a diminuição do consumo de ultraprocessados, uma alimentação minimamente equilibrada, sem tentar fazer um papel de um nutricionista ou de um especialista no assunto.”

O Projeto MeNu promove as aulas de Medicina Culinária na Unicamp Foto: Léo Souza/Estadão

Educação médica

Assim como não há um conceito fechado para Medicina Culinária, o formato das aulas pode variar. Mas, em geral, alguns elementos estão sempre presentes, pelo menos no Brasil: o uso do “Guia Alimentar para a População Brasileira”, do Ministério da Saúde, como base; uma equipe transdisciplinar, envolvendo médicos e nutricionistas, principalmente; e a valorização dos módulos práticos.

Além disso, há uma grande valorização da biodiversidade brasileira, por meio da escolha de ingredientes frescos, assim como um apelo à sustentabilidade. Na USP, por exemplo, eles pesam os resíduos produzidos após a aula prática.

Agora, ela aparece tanto como disciplina optativa, como na USP, ou dentro de outras matérias da grade, como na Unicamp. Internacionalmente, há experiências remotas, em que o aluno usa a própria cozinha. Mas os professores tendem a preferir a experiência presencial. “Nada é igual a você estar do lado da pessoa ensinando a cozinhar”, fala Thais Mauad.

A professora da USP conta que, por lá, a disciplina envolve cinco encontros, e, em geral, antes de cozinhar, é apresentado um caso clínico fictício, de um paciente que pode se beneficiar de uma mudança do hábito alimentar. Além da Thais, a matéria envolve pelo menos mais onze profissionais, e tem apoio didático do Laboratório do Lee: Gastronomia de Inclusão e do Laboratório e Cozinha Didática de Procedimento e Técnica Culinária Aplicada à Nutrição (PTCAN).

De acordo com o recente artigo dos professores da Unicamp, ainda não publicado, as diretrizes curriculares brasileiras para o ensino médico não incluem as palavras “nutrição”, “alimento” ou “dieta”. No entanto, o Ministério da Saúde, em uma publicação de 2022, destaca que a responsabilidade pelos cuidados nutricionais precisa ser um esforço coletivo dos profissionais da saúde, principalmente na atenção primária.

Os professores em disciplinas do tipo defendem que haja uma matéria específica de Medicina Culinária dentro da grade da graduação, de preferência como uma matéria obrigatória. Eles destacam que também pode ser interessante que, dentro de disciplinas já consolidadas, usem-se módulos com a metodologia da nova área, afinal, há entrecruzamentos, como uma aula sobre o uso do sal dentro de uma matéria que aborde cardiologia.

Mas essa é uma discussão que ainda deve avançar e amadurecer. O Estadão buscou o Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) para questionar as avaliações sobre a nova disciplina.

O conselheiro Júlio Braga, coordenador da Comissão de Ensino Médico do CFM, falou que as diretrizes curriculares da Medicina falam em “prevenção de doenças e orientações dietéticas como algumas das intervenções utilizadas com essa finalidade terapêutica”. “O médico recebe essas informações durante o curso.”

Sobre a introdução das disciplinas de Medicina Culinária no Brasil, ele disse que é “possível estudar temas específicos”. Apenas alertou que isso não configura uma especialidade médica. Ou seja, “o médico não pode se anunciar como especialista, pois poderia induzir pacientes a acreditarem que há uma área muito especializada.”

Ele avalia que uma disciplina do tipo deveria ser eletiva, não obrigatória, ou uma atividade de extensão. “Trata-se de uma abordagem também interessante na atuação multiprofissional.”

“É importante que os profissionais de saúde conheçam as ações e as ferramentas que utilizamos para a educação alimentar e nutricional”, fala o nutricionista Alexsandro Wosniaki, diretor do CFN, citando o guia do Ministério da Saúde e também o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional (EAN).

“Porque eles desempenham um papel crucial, quando pensamos em prevenção e promoção da saúde dentro da atenção primária, que é a porta de entrada para o SUS”, completa. Ainda sobre a Medicina Culinária, ele destaca a importância de que os promotores das disciplinas tomem cuidado para não ultrapassar as atividades privativas dos nutricionistas, como a prescrição de dietoterapia.

Evidências

A Medicina Culinária é baseada em evidências científicas, mas, como qualquer área emergente, está “engatinhando”, nas palavras da professora Caroline, para mostrar que quando aplicada pelo profissional da saúde, isso se reverte em melhorias ao paciente, segundo ela.

“Os estudos mostram que os profissionais da saúde que recebem essa capacitação se sentem mais conscientes, mais preparados e há uma melhora de comunicação com o paciente. E a alimentação dos profissionais muda, e eles passam a ter um padrão alimentar mais saudável”, fala a professora.

Um desses estudos avaliou o impacto de uma das edições da conferência Healthy Kitchens, Healthy Lives–Caring for Our Patients and Ourselves, um parceria da Harvard University e do The Culinary Institute of America, considerada um dos marcos iniciais da Medicina Culinária e uma das promotoras da nova disciplina. Os participantes, a maioria médicos, relataram mudanças positivas: passaram a cozinhar mais suas próprias refeições e a comer mais vegetais, oleaginosas e grãos integrais.

“No mínimo, queremos que os alunos se tornem mais saudáveis”, diz Geloneze.

CAMPINAS - A equipe lava talheres e pratos, e dispõe cumbucas com legumes ralados na bancada. Do forno, o cheiro de biscoitos caseiros impregna os corredores que levam até à cozinha, que, à primeira vista parece com a de qualquer casa. Para chegar até ela, no entanto, foi preciso atravessar a sala de espera de um hospital-dia, e usar rampas para subir três andares.

Aquela cozinha tão familiar é, na verdade, uma sala de aula. E quem utiliza a estrutura não são alunos de Gastronomia ou Nutrição, mas, sim, médicos em formação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O encontro de Medicina Culinária é promovido pelo Projeto MeNu dentro da disciplina Atenção Integral à Saúde do Adulto, de responsabilidade dos professores e médicos Lício Velloso e Bruno Geloneze da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Mas as estrelas dessa aula em específico são as nutricionistas e professoras Ana Carolina Vasques e Caroline Capitani, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA).

Os alunos chegam curiosos e ficam notadamente felizes com uma recepção calorosa: uma térmica de café e biscoitos que acabaram de sair do forno. Enquanto os estudantes se acomodam nas cadeiras, os professores explicam por que eles estão ali.

“Temos um aumento absurdo e lamentável do que a gente chama de sindemia. Duas pandemias praticamente opostas. O Brasil tem a concomitância de índices crescentes e alarmantes de obesidade e ainda convive com um certo grau de desnutrição, mas, principalmente, insegurança alimentar”, aponta o endocrinologista Geloneze.

De acordo com a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), de 2021, a prevalência de excesso de peso (sobrepeso) na população brasileira é de 57,2% e a de obesidade, 22,4%. Enquanto isso, a insegurança alimentar, quando não há acesso permanente à alimentação adequada, é realidade para 27,6% (ou 21,6 milhões) dos lares do País.

A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) alerta para o risco elevado de doenças associadas a um quadro de obesidade, como diabetes, doenças cardiovasculares e alguns cânceres. A verdade é que, de maneira geral, as doenças crônicas não transmissíveis estão em ascensão não só no Brasil, mas no mundo.

Nas aulas de Medicina Culinária, é fundamental colocar a mão na massa Foto: Léo Souza/Estadão

“A alimentação é a base da boa saúde e da prevenção das doenças crônicas. Se a gente melhorasse o cenário alimentar do mundo, conseguiríamos prevenir uma em cada cinco mortes no planeta”, afirma Ana Carolina. Ela cita dados de estudo do americano Institute for Health Metrics and Evaluation publicado na respeitada revista científica The Lancet.

É nesse pano de fundo que a nova disciplina, a Medicina Culinária, começa a tomar forma nos Estados Unidos por volta de 2006 – embora experiências isoladas datem de 130 anos atrás –, e se espalha no mundo e no Brasil, porém, ainda de forma “tímida”, conforme os especialistas. Ela está dentro da chamada Medicina do Estilo de Vida, que aborda também o papel de comportamentos como tabagismo e sedentarismo na prevenção e no manejo de doenças.

Em artigo dos professores da Unicamp, que ainda não foi publicado, eles apontam que não há ainda um conceito global para a nova disciplina. Para eles, “a Medicina Culinária funde a arte de cozinhar em casa com as ciências da nutrição humana, a psicologia, a gastronomia e a medicina para promover a saúde e o bem-estar”.

“Esse médico que está se formando, ele sabe o que é carboidrato, proteína e, quem sabe, ácidos graxos livres. Você pergunta pra ele: e onde está isso? Em quais alimentos? Ele começa a ter dificuldade. Como contornar isso? Ele não tem a menor ideia”, diz Geloneze.

“Pense em um médico que precisa pedir para o paciente substituir o sal. Alguns alunos não conhecem nenhum tempero, não sabem diferenciar a salsinha da cebolinha. Ele vai falar (sobre a necessidade de trocar por outros temperos) de uma maneira superficial e não vai poder ajudar muito aquele paciente”, exemplifica a médica Thais Mauad, professora do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina (FMUSP) e uma das fundadoras da primeira disciplina de Medicina Culinária do Brasil na USP.

Um dos facilitadores da alimentação saudável é cozinhar em larga escala, para guardar porções para as refeições seguintes Foto: Léo Souza/Estadão

É como se a Medicina Culinária pedisse para os alunos darem um passo para trás. “Hoje, vivemos um processo de transição culinária. Com o advento da modernidade, as habilidades culinárias que eram transmitidas majoritariamente de geração para geração, não são mais”, observa Caroline.

Essas habilidades passam por saber selecionar um alimento, fazer uma lista de compras, planejar e preparar uma receita e conseguir executar mais de uma tarefa ao mesmo tempo na cozinha. Tudo isso para chegar a um prato mais colorido e saudável.

Afinal, o que é alimentação saudável?

A Medicina Culinária não tem o objetivo de formar cozinheiros ou ensinar médicos a prescrever dietas – que envolve um plano alimentar, com valor energético total, consistência, balanço de macro e micronutrientes e fracionamento –, algo que, no Brasil, é atividade exclusiva do nutricionista. A ideia é que esse futuro médico consiga dar o “primeiro passo” de uma conversa sobre alimentação – não só nutrição –, com seus pacientes, a fim de incentivar bons hábitos de vida.

Mas, afinal, como a Medicina Culinária define uma alimentação saudável? “É aquela simples, que a gente come a comida que é vendida na feira. A comida que as nossas avós faziam”, aponta Ana Carolina. “Não é vilanizar o glúten, vilanizar o leite, não é idolatrar a farinha sem glúten, não é nada disso.” Os professores também destacam que isso tudo não envolve rejeitar medicamentos ou suplementos.

E por que a comida caseira é tão importante? Durante a parte inicial da aula, a professora Ana apresenta estudos que mostram que, quando uma pessoa cozinha mais, consegue controlar melhor o tamanho das porções e ter uma alimentação com menos sal, gordura saturada, açúcar de adição e aditivos cosméticos, além de ter uma chance reduzida de desenvolver doenças crônicas, como o diabetes tipo 2, por exemplo.

Papel do médico

Um dos pilares da Medicina Culinária é o autocuidado do médico. Isso porque, segundo os especialistas, ele é um espelho para o paciente. Pesquisadores canadenses conseguiram mostrar, em 2013, que pacientes de médicos que se submetiam a práticas preventivas, como exames e vacinas, tinham maior probabilidade de seguir a indicação médica e fazer o mesmo. “Se o médico tem um estilo de vida saudável, ele consegue levar isso com mais verdade para o seu paciente”, resume Ana Carolina.

“Os pacientes acreditam e confiam nas recomendações comportamentais dadas pelos médicos. Seja no aspecto de comportamento, na atividade física e, principalmente, em relação à alimentação”, complementa Geloneze.

No entanto, apenas 14% dos médicos acreditam ter recebido formação adequada em aconselhamento nutricional, de acordo com esta pesquisa. “Os pacientes confiam muito no médico e o médico confia muito pouco em si, até porque ele tem uma certa autocrítica para entender que não tem uma formação sólida nem mesmo razoável nesse assunto.”

Facilitadores

Para preencher essa lacuna, a Medicina Culinária convida os alunos à cozinha. Na Unicamp, os encontros, com cerca de 12 alunos, ocorrem a cada duas ou três semanas, e são divididos entre aula expositiva, que discute o cenário que mostramos anteriormente, e prática, momento no qual os estudantes cozinham. “Quando coloca a mão na massa, a pessoa realmente se sente mais estimulada a fazer isso em casa. Então, na hora que eu faço, que eu pratico, de fato, aquilo faz sentido pra mim”, Caroline.

Lavamos as mãos, colocamos os aventais e nos dividimos em grupos. Cada um fica responsável por uma receita. Todas elas simples, rápidas e com alimentos da estação.

Antes da aula começar, porém, a equipe do projeto já tinha preparado todos os insumos que iríamos precisar. Compraram os ingredientes, fizeram um mise en place (uma espécie de pré-preparo) e colocaram à disposição o que chamam de kit básico para se aventurar na cozinha:

  • Tábua de corte;
  • Medidores de colher e xícara;
  • Descascador de legumes;
  • Faca de legumes;
  • Faca do chefe;
  • Mixer;
  • Processador;
  • Panela wok

Embora as receitas sejam de fato simples, elas são criativas e nos desafiam a usar apenas uma panela para cozinhar uma refeição completa. Minha equipe ficou responsável pelo prato principal: macarrão – mas uma versão turbinada.

A massa já estava cozida, então, na panela, esquentamos oito colheres de sopa de azeite de oliva, adicionamos cúrcuma e páprica, que dão cor à receita e exalam um aroma inebriante. Adicionamos cenoura ralada e deixamos fritar por um minuto antes de adicionar abobrinha ralada fritar por mais dois minutos. Com delicadeza, misturamos a massa, acertamos o sal e, já com a panela desligada, jogamos algumas folhas de hortelã.

Enquanto cada grupo cuidava da sua receita, as professoras passavam para auxiliar e dar informações nutricionais, além de dicas culinárias.

Comida caseira é a base da alimentação saudável para a Medicina Culinária Foto: Léo Souza/Estadão

Um momento obrigatório da aula – e muito esperado – é a degustação. “Fazemos questão de reservar um tempo pra falar do momento da alimentação. O quão importante é a gente sentar numa mesa, se possível com uma toalha, e olhar para refeição, sentir o cheiro o sabor e a textura, descansar os talheres e convidar um familiar ou amigo”, aconselha Ana Carolina.

“Isso se chama comensalidade e está relacionado com qualidade de vida e também com um melhor processo de mastigação, digestão, absorção e secreção de hormônios que vão interferir no processo de saciedade, até nos ajudando a comer menos”, completa.

E, antes que alguém possa alegar que “não tem tempo” – uma reclamação válida nos dias de hoje –, os professores trazem outro pilar da Medicina Culinária: o batch cooking. Isso é, cozinhar em larga escala, o que nos permite congelar o que sobra e deixar para outra refeição.

“Quando eu vou fazer uma sopa, qual é o tempo que gasto para fazer em uma panela pequena? E em uma panela grande? É parecido. Claro, vou ter que picar mais legumes, vai demorar um pouquinho mais, mas nem tanto assim. Por que não investir tempo e ter jantares para vários dias?”, sugere Ana Carolina.

Escolha dos alimentos

Em outra parte da aula, o foco é como fazer melhores escolhas alimentares. Há um incentivo a olhar para o rótulo dos produtos, o que ajuda a classificá-los conforme a classificação NOVA, criada por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP).

São quatro grupos:

  • Alimentos in natura ou minimamente processados: são aqueles consumidos da maneira como vêm da natureza (folhas, sementes, raízes, ovos, etc) ou que passam por algum processo mínimo de processamento, mas sem adição de ingredientes (como os grãos de feijão, que são apenas secos e embalados ou os grãos de café, que são torrados e moídos para virar pó).
  • Ingredientes culinários processados: são substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos, como prensagem, centrifugação e concentração, segundo o Nupens. É o caso do azeite obtido de azeitonas, da manteiga proveniente do leite e do açúcar vindo da cana ou da beterraba.
  • Alimentos processados: são os ingredientes do primeiro grupo (in natura ou minimamente processado) após passar por pequenas modificações que poderiam ser reproduzidas em ambiente doméstico, como conservas, geleias e pães artesanais.
  • Ultraprocessados: grupo composto por alimentos e bebidas que foram submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos. Aqui, entram as bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos, por exemplo.

Como falar de alimentação

Além dos aprendizados nutricionais e culinários, os professores da Unicamp também ensinam como ter conversas sobre mudança de hábitos. Eles recorrem a dois métodos. O primeiro é a entrevista motivacional, com perguntas abertas e centradas no paciente, que permite entender mais sobre quem ele é e o que comer representa ele. Isso permite dar indicações mais individualizadas e respeitando realidades culturais e regionais diferentes.

O segundo método é baseado nas metas SMART, palavra que em inglês significa “inteligente” ou “esperto”. Significa que a meta precisa ser específica, mensurável, atingível, realista e temporal. Um exemplo dado pelos professores é de, ao invés de o médico combinar com o paciente que ele coma legumes, sugerir que a pessoa compre os legumes no final de semana e reserve duas horas para cozinhá-los e cozinhá-los. Assim, esses itens podem compor pratos ao longo da semana.

Aula de Medicina Culinária na cozinha-escola da Unicamp Foto: Léo Souza/Estadão

A receptividade dos alunos

Seja na USP ou na Unicamp, a matéria é um sucesso, segundo os professores. E isso fica estampado na cara dos alunos. “Muito, muito bom. A gente aproveitou bastante. Eu comi bastante, a tarde toda”, brinca Maria Clara Rossi, de 24 anos, sobre o resultado final das receitas que fizemos juntos.

A turma dela já está no quinto ano de medicina, ou seja, já deram o ponta pé nos atendimentos ambulatoriais que fazem parte da formação. Na aula, eles compartilham os momentos em que foram confrontados com dúvidas alimentares e não souberam responder e também falam das vezes em que conseguiram passar instruções com o que já tinham aprendido anteriormente, como o desenho de um prato mais balanceado.

“Eu tinha bastante dificuldade de responder (para o paciente). Acredito que ainda tenho. Mas, depois dessa aula, sinto que ficou um pouco mais organizado na minha cabeça, ficou um pouco mais concreto”, diz.

“Entendi um pouco mais das nuances da questão alimentar, que é muito ampla. Agora tenho um pouco mais de ideia de cada área, quais os tipos de alimento existem, as maneiras que você pode fazer para tornar isso um processo mais tranquilo e palpável no dia a dia, que não precisa ser tão demorado. Dá para ser mais simples”, completa.

João Felipe Agostini, de 22, concorda com a colega. “Sempre tive alguma insegurança, e vou continuar com ela, porque sempre vai ter alguma coisa a mais para aprender. Mas vou levar (ao consultório) o que já sei, como a diminuição do consumo de ultraprocessados, uma alimentação minimamente equilibrada, sem tentar fazer um papel de um nutricionista ou de um especialista no assunto.”

O Projeto MeNu promove as aulas de Medicina Culinária na Unicamp Foto: Léo Souza/Estadão

Educação médica

Assim como não há um conceito fechado para Medicina Culinária, o formato das aulas pode variar. Mas, em geral, alguns elementos estão sempre presentes, pelo menos no Brasil: o uso do “Guia Alimentar para a População Brasileira”, do Ministério da Saúde, como base; uma equipe transdisciplinar, envolvendo médicos e nutricionistas, principalmente; e a valorização dos módulos práticos.

Além disso, há uma grande valorização da biodiversidade brasileira, por meio da escolha de ingredientes frescos, assim como um apelo à sustentabilidade. Na USP, por exemplo, eles pesam os resíduos produzidos após a aula prática.

Agora, ela aparece tanto como disciplina optativa, como na USP, ou dentro de outras matérias da grade, como na Unicamp. Internacionalmente, há experiências remotas, em que o aluno usa a própria cozinha. Mas os professores tendem a preferir a experiência presencial. “Nada é igual a você estar do lado da pessoa ensinando a cozinhar”, fala Thais Mauad.

A professora da USP conta que, por lá, a disciplina envolve cinco encontros, e, em geral, antes de cozinhar, é apresentado um caso clínico fictício, de um paciente que pode se beneficiar de uma mudança do hábito alimentar. Além da Thais, a matéria envolve pelo menos mais onze profissionais, e tem apoio didático do Laboratório do Lee: Gastronomia de Inclusão e do Laboratório e Cozinha Didática de Procedimento e Técnica Culinária Aplicada à Nutrição (PTCAN).

De acordo com o recente artigo dos professores da Unicamp, ainda não publicado, as diretrizes curriculares brasileiras para o ensino médico não incluem as palavras “nutrição”, “alimento” ou “dieta”. No entanto, o Ministério da Saúde, em uma publicação de 2022, destaca que a responsabilidade pelos cuidados nutricionais precisa ser um esforço coletivo dos profissionais da saúde, principalmente na atenção primária.

Os professores em disciplinas do tipo defendem que haja uma matéria específica de Medicina Culinária dentro da grade da graduação, de preferência como uma matéria obrigatória. Eles destacam que também pode ser interessante que, dentro de disciplinas já consolidadas, usem-se módulos com a metodologia da nova área, afinal, há entrecruzamentos, como uma aula sobre o uso do sal dentro de uma matéria que aborde cardiologia.

Mas essa é uma discussão que ainda deve avançar e amadurecer. O Estadão buscou o Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) para questionar as avaliações sobre a nova disciplina.

O conselheiro Júlio Braga, coordenador da Comissão de Ensino Médico do CFM, falou que as diretrizes curriculares da Medicina falam em “prevenção de doenças e orientações dietéticas como algumas das intervenções utilizadas com essa finalidade terapêutica”. “O médico recebe essas informações durante o curso.”

Sobre a introdução das disciplinas de Medicina Culinária no Brasil, ele disse que é “possível estudar temas específicos”. Apenas alertou que isso não configura uma especialidade médica. Ou seja, “o médico não pode se anunciar como especialista, pois poderia induzir pacientes a acreditarem que há uma área muito especializada.”

Ele avalia que uma disciplina do tipo deveria ser eletiva, não obrigatória, ou uma atividade de extensão. “Trata-se de uma abordagem também interessante na atuação multiprofissional.”

“É importante que os profissionais de saúde conheçam as ações e as ferramentas que utilizamos para a educação alimentar e nutricional”, fala o nutricionista Alexsandro Wosniaki, diretor do CFN, citando o guia do Ministério da Saúde e também o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional (EAN).

“Porque eles desempenham um papel crucial, quando pensamos em prevenção e promoção da saúde dentro da atenção primária, que é a porta de entrada para o SUS”, completa. Ainda sobre a Medicina Culinária, ele destaca a importância de que os promotores das disciplinas tomem cuidado para não ultrapassar as atividades privativas dos nutricionistas, como a prescrição de dietoterapia.

Evidências

A Medicina Culinária é baseada em evidências científicas, mas, como qualquer área emergente, está “engatinhando”, nas palavras da professora Caroline, para mostrar que quando aplicada pelo profissional da saúde, isso se reverte em melhorias ao paciente, segundo ela.

“Os estudos mostram que os profissionais da saúde que recebem essa capacitação se sentem mais conscientes, mais preparados e há uma melhora de comunicação com o paciente. E a alimentação dos profissionais muda, e eles passam a ter um padrão alimentar mais saudável”, fala a professora.

Um desses estudos avaliou o impacto de uma das edições da conferência Healthy Kitchens, Healthy Lives–Caring for Our Patients and Ourselves, um parceria da Harvard University e do The Culinary Institute of America, considerada um dos marcos iniciais da Medicina Culinária e uma das promotoras da nova disciplina. Os participantes, a maioria médicos, relataram mudanças positivas: passaram a cozinhar mais suas próprias refeições e a comer mais vegetais, oleaginosas e grãos integrais.

“No mínimo, queremos que os alunos se tornem mais saudáveis”, diz Geloneze.

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