BRASÍLIA - A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu mudar regras para que empresas peçam o uso emergencial de vacinas para covid-19 no Brasil, o que pode facilitar a entrada da Sputnik V. A agência informou nesta quarta-feira, 3, que retirou a exigência de que estudos de fase 3 estejam em andamento no País para conceder este aval, passando a se valer de dados de estudos conduzidos internacionalmente.
A Anvisa informou nesta quarta que o prazo para análise de uso emergencial nessas condições deverá ser de 30 dias. Para as vacinas com estudos nacionais, o prazo da agência é de dez dias, como nos casos da Coronavac e do imunizante de Oxford/AstraZeneca, que obtiveram autorização em janeiro.
A justificativa para o aumento do prazo é que, no caso dos estudos nacionais, houve acompanhamento mais próximo, o que facilitou a análise. Para os estudos conduzidos fora do País, será necessário analisar dados de pesquisas desde a fase inicial até o estágio mais avançado, que não tiveram acompanhamento prévio.
A discussão ocorre no momento em que a Anvisa é pressionada para liberar o uso do imunizante, desenvolvido pelo Instituto Gamaleya, da Rússia. No Brasil, a União Química afirma que pode receber 10 milhões de doses prontas do imunizante até março. Além disso, entregar 150 milhões de unidades em 2021, somando a produção que seria feita no Brasil.
A retirada desta exigência também pode facilitar a entrada de outras vacinas no País. O laboratório indiano Bharat Biotech, por exemplo, já mostrou interesse em trazer a Covaxin ao setor público e privado brasileiro. A diretoria da Anvisa lembrou que o Brasil é elegível para receber diferentes vacinas pelo consórcio Covax Facility. Assim, a mudança na exigência da análise pode passar a englobar eventualmente imunizantes como o da Moderna e a Novavax.
A Sputnik V tem eficácia de 91,6% contra casos sintomáticos da covid-19. Os dados, avaliados por pesquisadores independentes, foram publicados na terça-feira, 2, na revista científica The Lancet. A vacina já está sendo aplicada na Rússia e em outros países, como Argentina e Argélia.
Questionada sobre a motivação para a mudança nos critérios diante da aparente pressão pela Sputnik V, a diretora da Anvisa Meiruze Freitas disse que a alteração "não tem nada a ver com a decisão de publicação do Lancet, diria que foi coincidência". "O processo está sendo discutido há mais tempo. Não foi pleito de nenhuma empresa, do governo, do Ministério da Saúde", acrescentou.
Mesmo sem a exigência da fase 3 de pesquisa, a Anvisa ainda aguarda dados de segurança e eficácia da Sputnik V. Ao Supremo Tribunal Federal (STF), a agência aponta a falta de dados básicos da vacina. Já a União Química chama, na mesma ação, as cobranças da Anvisa de "exageradas". O governo federal tem apostado na compra da Sputnik V, que nos bastidores tem sido vista como uma possível "vacina de Bolsonaro.
A agência cobrava até esta terça-feira, 2, em seu guia para submissão do pedido de uso emergencial que estudos finais da vacina estejam pelo menos sendo conduzidos no Brasil. Por esta regra, apenas as vacinas de Oxford/AstraZeneca, a Coronavac e os imunizantes da Janssen e da Pfizer podem solicitar o uso emergencial.
A mudança promovida nesta quarta-feira foi justificada pela Anvisa também sob o argumento de que a pandemia promove aprendizados e que seguiu a experiência internacional sobre o assunto. Meiruze Freitas lembrou que Estados Unidos e Reino Unido também só permitiam aval emergencial a vacinas testadas no próprio território. "A decisão anterior ocorreu no sentido de tomar precaução. Mas a estratégia de aprimoramento regulatório é contínua e já temos o conhecimento para entender que é possível ampliar o uso emergencial", disse.
O gerente-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos da Anvisa, Gustavo Mendes, lembrou que os estudos no exterior precisam ser conduzidos de acordo com as diretrizes internacionais, cujas regras são discutidas entre as agências reguladoras em fóruns especializados. "Isso significa que é um estudo confiável, para o qual podemos olhar e obter respostas sobre eficácia, qualidade e segurança da vacina", afirmou.
O diretor reforçou que, nos casos dos estudos estrangeiros de fase 3, a Anvisa pedirá acesso aos dados brutos e que haja acompanhamento das empresas sobre os participantes da pesquisa por um ano.
"Nossa função é garantir que a pessoa quando sai de casa para ir ao posto de vacinação, e oferece seu braço a alguém que vai injetar líquido em você, vai receber uma vacina segura, eficaz e com qualidade. Essa tranquilidade é o nosso objetivo e por isso que precisamos de todos os passos previstos e informações para tomar a decisão (de liberação do uso emergencial)", acrescentou Mendes.
Sobre a possibilidade de a medida facilitar o pedido de liberação emergencial da Sputnik V, Mendes disse que estará aberto a conversar com a União Química e ver os próximos passos. A expectativa, disse ele, é que haja reuniões pré-submissão para que sejam alinhados interesses e necessidades do processo.
Como o Estadão mostrou, porém, os diretores da Anvisa já apontavam a cobrança da fase 3 como uma barreira que pode ser dissolvida, caso os imunizantes recebam alguma qualificação de agências reguladoras de peso ou entreguem dados robustos de segurança e eficácia.
O Congresso também tem pressionado a Anvisa. Como mostrou a Coluna do Estadão, o líder do governo na Câmara e ex-ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR), trabalha em projeto para suspender a exigência de pesquisa no Brasil.
Além disso, o Congresso deve inserir em medida provisória a possibilidade de a Anvisa aceitar autorização excepcional para importação e distribuição no Brasil de vacinas aprovadas pelas agências sanitárias da Rússia e da Argentina. O governo da Bahia também foi ao Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar liberar a Sputnik V.
Decisão da Anvisa que facilita uso emergencial é bem recebida
A decisão da Anvisa foi bem recebida por profissionais da saúde por se tratar de uma medida que pode agilizar a vacinação e frear o número de mortes por coronavírus, ainda mais em um momento em que há mutações mais transmissíveis da covid-19 circulando entre a população.
“A ideia de que o estudo seja feito na nossa população é porque existem diferenças de respostas imunológicas entre grupos étnicos. É importante ter o resultado de uma vacina para a nossa população, é o ideal. A gente viu a mesma vacina (Coronavac) ter resultados de eficácia diferentes aqui e na Turquia”, explicou Mônica Levi, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
“Só que não estamos em uma situação normal. Estamos vendo grande número de mortes todos os dias, sistemas de saúde colapsados. Não podemos nos dar ao luxo de cumprir todos os requisitos e as muitas burocracias. Se a gente pensar no benefício que isso pode trazer em termos de facilitar o licenciamento para mais vacinas serem utilizadas precocemente, neste momento, vejo como uma forma positiva.”
A coordenadora da Rede Análise Covid-19, Mellanie Fontes-Dutra, acredita que a Anvisa deva ficar mais atenta para que os testes clínicos realizados em outros países tenham boa representatividade entre os participantes. “É importante que tenham participantes com similaridades demográficas com o Brasil. Trazer uma vacina testada só no hemisfério norte fica complicado porque não tem tanta representatividade para nós. Imagino que a Anvisa deva se atentar a isso muito mais agora que a determinação foi revogada para poder observar toda a diversidade de participantes de estudos que contemplam características populacionais e geográficas.”/COLABORARAM ÉRIKA MOTODA E MARCO ANTÔNIO CARVALHO