Um estudo conduzido na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, revela que conviver com a apneia obstrutiva do sono após os 50 anos pode aumentar o risco de desenvolver demência mais tarde na vida. Aos 80 anos, a incidência do quadro era 4,7% maior entre mulheres e 2,5% maior entre homens com diagnóstico ou suspeita de apneia, em comparação a indivíduos saudáveis. Esse distúrbio do sono é caracterizado por interrupções na respiração durante o repouso.
O trabalho, publicado no jornal científico Sleep Advances, foi realizado por meio de dados da pesquisa contínua Health and Retirement Study (HRS) e acompanhou mais de 18 mil mulheres e homens norte-americanos ao longo de 10 anos. Eles não tinham demência no início do estudo. A apneia foi avaliada por diagnóstico autorrelatado ou uma triagem adaptada. A demência também foi considerada por autodeclaração ou avaliação em testes cognitivos.
Embora a diferença geral nos diagnósticos de demência nunca tenha ultrapassado 5%, a associação permaneceu estatisticamente significativa mesmo depois que os pesquisadores levaram em consideração diversos outros fatores que podem afetar o risco de demência, como raça e nível de escolaridade.
“Precisamos de mais dados para entender por que as mulheres têm um risco maior de demência em comparação aos homens, e se as alterações hormonais durante a menopausa interagem com problemas de sono para piorar o declínio cognitivo”, comentou a neurologista Tiffany J. Braley, principal autora do trabalho, em entrevista por e-mail ao Estadão.
Outra hipótese é o fato de que mulheres com apneia moderada são mais propensas a ter insônia, problema capaz de impactar negativamente na função cognitiva.
A médica Dalva Poyares, neurologista especialista em medicina do sono e pesquisadora do Instituto do Sono, da Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa (AFIP), coloca mais um fator em cena: “Além de insônia, a mulher tende a ter mais depressão. Sabe-se que a depressão, em longo prazo, é fator de risco de demência. Então, nós temos aqui duas variáveis que ocorrem menos em homens”, ressalta.
Tiffany aponta a necessidade de mais investigações para compreender ainda se o risco de demência em longo prazo varia de acordo com a gravidade da apneia e confirmar se o tratamento para esse distúrbio do sono é capaz de reduzir a probabilidade de desenvolver demência.
O que é apneia?
A palavra “apneia” descreve, isoladamente, qualquer interrupção da respiração. “Por exemplo, é possível realizar uma apneia voluntariamente ao nadar”, explica Dalva. No entanto, quando essa interrupção ocorre de forma intermitente durante o sono, denomina-se apneia obstrutiva do sono, que é o tipo mais frequente.
Esse distúrbio está ligado à obstrução autolimitada na via aérea superior, localizada atrás do palato e da língua, na região da faringe. “Isso pode ocorrer várias vezes e levar a alterações na oxigenação”, descreve a neurologista. Quando há queda de oxigênio no sangue, o corpo inteiro sofre. “Esse é um dos fatores que contribui para o aumento da inflamação no organismo”, comenta a neurologista.
No Brasil, o quadro afeta principalmente homens acima de 40 anos e mulheres após a menopausa. “Se o ronco é alto e frequente, há uma grande probabilidade de ser apneia”, alerta Dalva sobre os principais sintomas. Cansaço persistente e sonolência diurna também merecem ser investigados.
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A relação entre apneia e demência
Durante o sono profundo, o cérebro realiza uma limpeza crucial de resíduos metabólicos, como a proteína beta-amilóide, cujo acúmulo está associado ao desenvolvimento do Alzheimer. Dalva destaca que distúrbios como a apneia e a insônia prejudicam essa faxina devido à fragmentação do sono, aumentando o risco de concentração desses resíduos.
E não falamos só de beta-amiloide. “Estudos indicam um acúmulo maior de novelos neurofibrilares, especialmente no hipocampo, região crucial para a memória e fortemente ligada ao Alzheimer”, acrescenta a neurologista Sonia Brucki, coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP). A especialista ainda cita a relação entre apneia e neuroinflamação.
“Além disso, a presença do alelo ApoE4 [um gene], comum tanto na apneia quanto na demência, sugere uma possível ligação genética entre essas condições, embora não determine o surgimento de Alzheimer”, ressalta Dalva.
Fator de risco modificável
Dalva ressalta que, embora a apneia não tenha cura, há tratamentos capazes de controlar a condição.
Sonia informa que o uso de um dispositivo chamado CPAP (sigla em inglês para pressão positiva contínua em vias aéreas), por exemplo, é eficiente contra a apneia e, consequentemente, reduz o risco de demência. Trata-se de uma máscara que lança ar no nariz durante o sono, normalizando a respiração.
Uma revisão de 11 estudos avaliou o impacto desse recurso na incidência de distúrbios cognitivos e declínio cognitivo entre adultos de meia-idade e idosos com apneia obstrutiva. De acordo com o trabalho, nove desses estudos relataram que o CPAP teve um efeito protetor em relação à incidência de comprometimento cognitivo leve (CCL) e Alzheimer.
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Para tratar, é preciso identificar
Apesar de ser possível controlar a apneia, o desafio é diagnosticar o quadro. Na visão de Dalva, há três principais obstáculos para o diagnóstico desse tipo de distúrbio: “Primeiro, falta conhecimento suficiente sobre o problema. Segundo, os médicos de atenção primária raramente perguntam sobre o sono dos pacientes. E, terceiro, muitas vezes quem percebe os sinais do problema é um parceiro ou parceira [por dormir no mesmo ambiente], e não o próprio paciente”.
“Se você tem uma busca mais ativa, você consegue identificar mais casos. Mas, no caso da apneia, essa busca ativa não existe”, conclui.