Após viver 110 anos, ele teve o cérebro doado para cientistas estudarem os segredos dos superidosos


Morrie Markoff se recuperou de um derrame aos 99 anos, escrevia regularmente e lia notícias todos os dias; suas habilidades poderão ser analisadas graças a um projeto americano de doação de cérebros

Por Paula Span

Mais ou menos um mês atrás, Judith Hansen acordou de madrugada, pensando no cérebro de seu pai. Morrie Markoff era um sujeito incomum. Aos 110 anos, era considerado o homem mais velho dos Estados Unidos. Seu cérebro também era incomum, mesmo depois de ter se recuperado de um derrame aos 99 anos.

Embora tenha abandonado a escola depois da oitava série para trabalhar, Markoff se tornou um empresário bem-sucedido. Mais tarde, sua curiosidade e criatividade o levaram às artes, como fotografia e esculturas feitas com sucata.

Ele era um centenário saudável quando expôs suas obras em uma galeria de Los Angeles, onde morava. Aos 103 anos, publicou um livro de memórias chamado Keep Breathing (Continue respirando, em tradução livre). Ele escrevia regularmente, lia o Los Angeles Times todos os dias, discutia artigos da Scientific American e acompanhava as notícias nacionais na CNN e no 60 Minutes, programas da TV americana.

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Morrie Markoff morreu aos 110 anos e teve o cérebro doado para pesquisas científicas Foto: Markoff Family via The New York Time

Agora ele estava perto da morte, inscrito em um serviço de cuidados paliativos domiciliares. “No meio da noite, pensei: ‘O cérebro do papai é tão bom’”, disse Hansen, de 82 anos, bibliotecária aposentada em Seattle. “Entrei na internet e procurei por ‘doação de cérebro’”.

A pesquisa levou-a ao site dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), que explicava que o NeuroBioBank, criado em 2013, coletava tecido cerebral humano post-mortem para pesquisa neurológica.

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Por meio do site, Hansen entrou em contato com a organização sem fins lucrativos Brain Donor Project. Esse projeto promove e simplifica as doações por meio de uma rede de bancos de cérebros de universidades, que distribuem tecidos preservados para equipes de pesquisa.

Tish Hevel, a fundadora do projeto, respondeu rapidamente, colocando Hansen e o irmão dela em contato com o banco de cérebros da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Os doadores de cérebros podem ter problemas neurológicos e outras doenças, ou podem ter cérebros saudáveis, como o de Markoff.

“Vamos aprender muito com ele”, disse Hevel. “O que há nesses superidosos que lhes permite funcionar tão bem por tanto tempo?”

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Muitos americanos mais velhos responderam “sim” na carteira de motorista, para permitir a doação de órgãos para transplantes; alguns também pesquisaram ou providenciaram doações de corpos inteiros para faculdades de medicina. Poucos sabem sobre a doação de cérebros, disse Hevel.

A campanha para incentivá-la começou cerca de uma década atrás, quando “surgiram novas técnicas que permitiam uma análise quantitativa incrível” das células cerebrais, disse Walter Koroshetz, diretor do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e AVC dos Estados Unidos, que administra o NeuroBioBank. Os pesquisadores usam esse material para estudar uma série de doenças cerebrais e distúrbios psiquiátricos.

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Mas “essas novas técnicas exigem que os cérebros sejam retirados rapidamente e depois congelados”, porque “o tecido cerebral começa a se deteriorar em questão de horas”, disse Koroshetz.

Antes da criação do NeuroBioBank, algumas universidades já coletavam cérebros doados, mas o processo “era fragmentado por todo o país”, disse ele. “O acesso ao tecido não era centralizado”.

Hevel se deparou com esses obstáculos quando seu pai estava morrendo de demência por corpos de Lewy, em 2015. “Na época, foi um processo terrivelmente complicado”, disse ela. O Brain Donor Project agora trabalha para informar o público sobre a importância da doação de cérebros e a melhor maneira de organizá-la.

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Embora algumas pesquisas neurológicas se baseiem em exames e simulações de computador, não há nada igual ao tecido humano, disse Koroshetz: “É como a diferença entre olhar para um desenho animado e um Rembrandt”.

Agora, cada um dos seis bancos de cérebros de universidades afiliadas ao NeuroBioBank tem uma média de cem doações anuais, possibilitando pesquisas sobre tópicos que vão desde a doença de Parkinson e a esquizofrenia até os efeitos de explosões militares. O Brain Donor Project, trabalhando com o NIH, registrou 23 mil doadores desde sua criação, em 2016. “Mas precisamos de mais”, disse Koroshetz.

Ele reconhece que a doação de cérebro continua sendo um tema delicado: “Para algumas famílias, é muito desconfortável falar sobre o assunto”, e alguns grupos religiosos e étnicos consideram-na condenável. Quando ele liderou a pesquisa sobre a doença de Huntington, décadas atrás, e levantou a questão com os pacientes, “levava anos para que as pessoas fizessem perguntas antes de se sentirem à vontade para assinar um formulário”.

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Como funciona?

O Brain Donor Project conecta possíveis doadores a bancos de cérebros de universidades afiliadas ao NIH. “Não tente escolher um banco de cérebros por conta própria”, disse Hevel. Eles têm requisitos e protocolos diferentes, e o projeto sabe conectar o doador ao banco certo.

O doador assina a documentação necessária – ou um parente ou membro da equipe médica pode assinar em nome do doador. A família ou a equipe médica deve alertar o banco imediatamente após a morte do doador.

Na casa funerária ou no necrotério, um “especialista em recuperação”, geralmente um patologista ou médico legista, remove o cérebro pela parte de trás do crânio, para evitar desfiguração (assim, o falecido ainda pode ter um velório de caixão aberto), e entrega a um banco de cérebros para congelamento e distribuição a laboratórios de pesquisa.

“Ouvi de muitas famílias que, mesmo diante de uma grande perda, há uma sensação de consolo e conforto, por saber que algo positivo pode resultar da morte”, disse Hevel.

Não há custo para as famílias, que podem optar por receber um relatório neuropatológico alguns meses depois. Esse documento pode ser útil para alertar os parentes sobre possíveis distúrbios ou anormalidades.

Há outras maneiras de ver o próprio corpo como um legado, é claro. De acordo com a Lei de Doação Anatômica dos Estados Unidos, praticamente qualquer adulto pode se tornar doador de órgãos ao tirar ou renovar a carteira de motorista ou ao se inscrever em um registro estadual online (concordar em doar órgãos para transplante não inclui a doação do cérebro para pesquisa em neurociência).

Mais de 100 mil americanos estão em listas de espera para transplantes, sendo que a maioria espera por um rim.

É “um mundo diferente” quando as pessoas querem doar corpos a faculdades de medicina para ajudar a formar profissionais de saúde, disse Sheldon Kurtz, que leciona direito na Universidade de Iowa e ajudou a redigir a atual legislação sobre doação de órgãos.

Nesse caso, os doadores devem contatar diretamente as escolas, que podem ser exigentes quanto aos organismos que vão aceitar e em que termos. Algumas instituições não trabalham com doadores de fora do Estado, por exemplo, nem aceitam “doações de parentes próximos” organizadas pelas famílias, se o doador não tiver assinado pessoalmente a papelada.

Às vezes, é possível doar tanto o cérebro quanto o corpo inteiro. “Não há legislação definida para esses arranjos”, disse Kurtz. “É um contrato entre o doador e a instituição”.

‘Presente para outras pessoas’

Em 2021, Joy Balta, presidente do comitê de doação de corpos da Associação Americana de Anatomia, e seus colegas fizeram uma pesquisa com 72 faculdades de medicina que recebiam anualmente mais de 26 mil doações de corpos inteiros. Cerca de 70% dos entrevistados relataram ter recebido doações suficientes para pesquisa; alguns tinham mais do que precisavam.

Mas suas necessidades estão aumentando, disse Balta em entrevista. O aprimoramento das técnicas de preservação significa que os cadáveres humanos agora são usados não apenas para ensinar anatomia, sua finalidade tradicional, mas também para ajudar a treinar cirurgiões e outros profissionais.

Mas, no caso de Markoff, o homem de 110 anos, seus filhos viram seu cérebro como um presente que poderia beneficiar outras pessoas.

“Será que tem algum segredo ali?”, disse Koroshetz. “Nas pessoas muito idosas, é raro que um cérebro não tenha patologia neurológica, mas 38% deles não têm dificuldades cognitivas. Os circuitos ainda estão funcionando, mesmo quando a patologia é grave. Qual é a causa dessa resiliência?”

Markoff faleceu em casa no dia 3 de junho, apenas dois dias depois de sua filha acordar de madrugada com a ideia da doação. Como o Brain Donor Project conectou Hansen imediatamente à UCLA, “esse cérebro precioso foi armazenado adequadamente quatro horas” após a morte, disse Hevel.

Foi um consolo. “Ficamos muito felizes, porque papai poderá ser útil”, disse Hansen. “Não é isso que todos nós queremos? Ter um propósito?”/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

Mais ou menos um mês atrás, Judith Hansen acordou de madrugada, pensando no cérebro de seu pai. Morrie Markoff era um sujeito incomum. Aos 110 anos, era considerado o homem mais velho dos Estados Unidos. Seu cérebro também era incomum, mesmo depois de ter se recuperado de um derrame aos 99 anos.

Embora tenha abandonado a escola depois da oitava série para trabalhar, Markoff se tornou um empresário bem-sucedido. Mais tarde, sua curiosidade e criatividade o levaram às artes, como fotografia e esculturas feitas com sucata.

Ele era um centenário saudável quando expôs suas obras em uma galeria de Los Angeles, onde morava. Aos 103 anos, publicou um livro de memórias chamado Keep Breathing (Continue respirando, em tradução livre). Ele escrevia regularmente, lia o Los Angeles Times todos os dias, discutia artigos da Scientific American e acompanhava as notícias nacionais na CNN e no 60 Minutes, programas da TV americana.

Morrie Markoff morreu aos 110 anos e teve o cérebro doado para pesquisas científicas Foto: Markoff Family via The New York Time

Agora ele estava perto da morte, inscrito em um serviço de cuidados paliativos domiciliares. “No meio da noite, pensei: ‘O cérebro do papai é tão bom’”, disse Hansen, de 82 anos, bibliotecária aposentada em Seattle. “Entrei na internet e procurei por ‘doação de cérebro’”.

A pesquisa levou-a ao site dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), que explicava que o NeuroBioBank, criado em 2013, coletava tecido cerebral humano post-mortem para pesquisa neurológica.

Por meio do site, Hansen entrou em contato com a organização sem fins lucrativos Brain Donor Project. Esse projeto promove e simplifica as doações por meio de uma rede de bancos de cérebros de universidades, que distribuem tecidos preservados para equipes de pesquisa.

Tish Hevel, a fundadora do projeto, respondeu rapidamente, colocando Hansen e o irmão dela em contato com o banco de cérebros da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Os doadores de cérebros podem ter problemas neurológicos e outras doenças, ou podem ter cérebros saudáveis, como o de Markoff.

“Vamos aprender muito com ele”, disse Hevel. “O que há nesses superidosos que lhes permite funcionar tão bem por tanto tempo?”

Muitos americanos mais velhos responderam “sim” na carteira de motorista, para permitir a doação de órgãos para transplantes; alguns também pesquisaram ou providenciaram doações de corpos inteiros para faculdades de medicina. Poucos sabem sobre a doação de cérebros, disse Hevel.

A campanha para incentivá-la começou cerca de uma década atrás, quando “surgiram novas técnicas que permitiam uma análise quantitativa incrível” das células cerebrais, disse Walter Koroshetz, diretor do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e AVC dos Estados Unidos, que administra o NeuroBioBank. Os pesquisadores usam esse material para estudar uma série de doenças cerebrais e distúrbios psiquiátricos.

Mas “essas novas técnicas exigem que os cérebros sejam retirados rapidamente e depois congelados”, porque “o tecido cerebral começa a se deteriorar em questão de horas”, disse Koroshetz.

Antes da criação do NeuroBioBank, algumas universidades já coletavam cérebros doados, mas o processo “era fragmentado por todo o país”, disse ele. “O acesso ao tecido não era centralizado”.

Hevel se deparou com esses obstáculos quando seu pai estava morrendo de demência por corpos de Lewy, em 2015. “Na época, foi um processo terrivelmente complicado”, disse ela. O Brain Donor Project agora trabalha para informar o público sobre a importância da doação de cérebros e a melhor maneira de organizá-la.

Embora algumas pesquisas neurológicas se baseiem em exames e simulações de computador, não há nada igual ao tecido humano, disse Koroshetz: “É como a diferença entre olhar para um desenho animado e um Rembrandt”.

Agora, cada um dos seis bancos de cérebros de universidades afiliadas ao NeuroBioBank tem uma média de cem doações anuais, possibilitando pesquisas sobre tópicos que vão desde a doença de Parkinson e a esquizofrenia até os efeitos de explosões militares. O Brain Donor Project, trabalhando com o NIH, registrou 23 mil doadores desde sua criação, em 2016. “Mas precisamos de mais”, disse Koroshetz.

Ele reconhece que a doação de cérebro continua sendo um tema delicado: “Para algumas famílias, é muito desconfortável falar sobre o assunto”, e alguns grupos religiosos e étnicos consideram-na condenável. Quando ele liderou a pesquisa sobre a doença de Huntington, décadas atrás, e levantou a questão com os pacientes, “levava anos para que as pessoas fizessem perguntas antes de se sentirem à vontade para assinar um formulário”.

Como funciona?

O Brain Donor Project conecta possíveis doadores a bancos de cérebros de universidades afiliadas ao NIH. “Não tente escolher um banco de cérebros por conta própria”, disse Hevel. Eles têm requisitos e protocolos diferentes, e o projeto sabe conectar o doador ao banco certo.

O doador assina a documentação necessária – ou um parente ou membro da equipe médica pode assinar em nome do doador. A família ou a equipe médica deve alertar o banco imediatamente após a morte do doador.

Na casa funerária ou no necrotério, um “especialista em recuperação”, geralmente um patologista ou médico legista, remove o cérebro pela parte de trás do crânio, para evitar desfiguração (assim, o falecido ainda pode ter um velório de caixão aberto), e entrega a um banco de cérebros para congelamento e distribuição a laboratórios de pesquisa.

“Ouvi de muitas famílias que, mesmo diante de uma grande perda, há uma sensação de consolo e conforto, por saber que algo positivo pode resultar da morte”, disse Hevel.

Não há custo para as famílias, que podem optar por receber um relatório neuropatológico alguns meses depois. Esse documento pode ser útil para alertar os parentes sobre possíveis distúrbios ou anormalidades.

Há outras maneiras de ver o próprio corpo como um legado, é claro. De acordo com a Lei de Doação Anatômica dos Estados Unidos, praticamente qualquer adulto pode se tornar doador de órgãos ao tirar ou renovar a carteira de motorista ou ao se inscrever em um registro estadual online (concordar em doar órgãos para transplante não inclui a doação do cérebro para pesquisa em neurociência).

Mais de 100 mil americanos estão em listas de espera para transplantes, sendo que a maioria espera por um rim.

É “um mundo diferente” quando as pessoas querem doar corpos a faculdades de medicina para ajudar a formar profissionais de saúde, disse Sheldon Kurtz, que leciona direito na Universidade de Iowa e ajudou a redigir a atual legislação sobre doação de órgãos.

Nesse caso, os doadores devem contatar diretamente as escolas, que podem ser exigentes quanto aos organismos que vão aceitar e em que termos. Algumas instituições não trabalham com doadores de fora do Estado, por exemplo, nem aceitam “doações de parentes próximos” organizadas pelas famílias, se o doador não tiver assinado pessoalmente a papelada.

Às vezes, é possível doar tanto o cérebro quanto o corpo inteiro. “Não há legislação definida para esses arranjos”, disse Kurtz. “É um contrato entre o doador e a instituição”.

‘Presente para outras pessoas’

Em 2021, Joy Balta, presidente do comitê de doação de corpos da Associação Americana de Anatomia, e seus colegas fizeram uma pesquisa com 72 faculdades de medicina que recebiam anualmente mais de 26 mil doações de corpos inteiros. Cerca de 70% dos entrevistados relataram ter recebido doações suficientes para pesquisa; alguns tinham mais do que precisavam.

Mas suas necessidades estão aumentando, disse Balta em entrevista. O aprimoramento das técnicas de preservação significa que os cadáveres humanos agora são usados não apenas para ensinar anatomia, sua finalidade tradicional, mas também para ajudar a treinar cirurgiões e outros profissionais.

Mas, no caso de Markoff, o homem de 110 anos, seus filhos viram seu cérebro como um presente que poderia beneficiar outras pessoas.

“Será que tem algum segredo ali?”, disse Koroshetz. “Nas pessoas muito idosas, é raro que um cérebro não tenha patologia neurológica, mas 38% deles não têm dificuldades cognitivas. Os circuitos ainda estão funcionando, mesmo quando a patologia é grave. Qual é a causa dessa resiliência?”

Markoff faleceu em casa no dia 3 de junho, apenas dois dias depois de sua filha acordar de madrugada com a ideia da doação. Como o Brain Donor Project conectou Hansen imediatamente à UCLA, “esse cérebro precioso foi armazenado adequadamente quatro horas” após a morte, disse Hevel.

Foi um consolo. “Ficamos muito felizes, porque papai poderá ser útil”, disse Hansen. “Não é isso que todos nós queremos? Ter um propósito?”/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

Mais ou menos um mês atrás, Judith Hansen acordou de madrugada, pensando no cérebro de seu pai. Morrie Markoff era um sujeito incomum. Aos 110 anos, era considerado o homem mais velho dos Estados Unidos. Seu cérebro também era incomum, mesmo depois de ter se recuperado de um derrame aos 99 anos.

Embora tenha abandonado a escola depois da oitava série para trabalhar, Markoff se tornou um empresário bem-sucedido. Mais tarde, sua curiosidade e criatividade o levaram às artes, como fotografia e esculturas feitas com sucata.

Ele era um centenário saudável quando expôs suas obras em uma galeria de Los Angeles, onde morava. Aos 103 anos, publicou um livro de memórias chamado Keep Breathing (Continue respirando, em tradução livre). Ele escrevia regularmente, lia o Los Angeles Times todos os dias, discutia artigos da Scientific American e acompanhava as notícias nacionais na CNN e no 60 Minutes, programas da TV americana.

Morrie Markoff morreu aos 110 anos e teve o cérebro doado para pesquisas científicas Foto: Markoff Family via The New York Time

Agora ele estava perto da morte, inscrito em um serviço de cuidados paliativos domiciliares. “No meio da noite, pensei: ‘O cérebro do papai é tão bom’”, disse Hansen, de 82 anos, bibliotecária aposentada em Seattle. “Entrei na internet e procurei por ‘doação de cérebro’”.

A pesquisa levou-a ao site dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), que explicava que o NeuroBioBank, criado em 2013, coletava tecido cerebral humano post-mortem para pesquisa neurológica.

Por meio do site, Hansen entrou em contato com a organização sem fins lucrativos Brain Donor Project. Esse projeto promove e simplifica as doações por meio de uma rede de bancos de cérebros de universidades, que distribuem tecidos preservados para equipes de pesquisa.

Tish Hevel, a fundadora do projeto, respondeu rapidamente, colocando Hansen e o irmão dela em contato com o banco de cérebros da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Os doadores de cérebros podem ter problemas neurológicos e outras doenças, ou podem ter cérebros saudáveis, como o de Markoff.

“Vamos aprender muito com ele”, disse Hevel. “O que há nesses superidosos que lhes permite funcionar tão bem por tanto tempo?”

Muitos americanos mais velhos responderam “sim” na carteira de motorista, para permitir a doação de órgãos para transplantes; alguns também pesquisaram ou providenciaram doações de corpos inteiros para faculdades de medicina. Poucos sabem sobre a doação de cérebros, disse Hevel.

A campanha para incentivá-la começou cerca de uma década atrás, quando “surgiram novas técnicas que permitiam uma análise quantitativa incrível” das células cerebrais, disse Walter Koroshetz, diretor do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e AVC dos Estados Unidos, que administra o NeuroBioBank. Os pesquisadores usam esse material para estudar uma série de doenças cerebrais e distúrbios psiquiátricos.

Mas “essas novas técnicas exigem que os cérebros sejam retirados rapidamente e depois congelados”, porque “o tecido cerebral começa a se deteriorar em questão de horas”, disse Koroshetz.

Antes da criação do NeuroBioBank, algumas universidades já coletavam cérebros doados, mas o processo “era fragmentado por todo o país”, disse ele. “O acesso ao tecido não era centralizado”.

Hevel se deparou com esses obstáculos quando seu pai estava morrendo de demência por corpos de Lewy, em 2015. “Na época, foi um processo terrivelmente complicado”, disse ela. O Brain Donor Project agora trabalha para informar o público sobre a importância da doação de cérebros e a melhor maneira de organizá-la.

Embora algumas pesquisas neurológicas se baseiem em exames e simulações de computador, não há nada igual ao tecido humano, disse Koroshetz: “É como a diferença entre olhar para um desenho animado e um Rembrandt”.

Agora, cada um dos seis bancos de cérebros de universidades afiliadas ao NeuroBioBank tem uma média de cem doações anuais, possibilitando pesquisas sobre tópicos que vão desde a doença de Parkinson e a esquizofrenia até os efeitos de explosões militares. O Brain Donor Project, trabalhando com o NIH, registrou 23 mil doadores desde sua criação, em 2016. “Mas precisamos de mais”, disse Koroshetz.

Ele reconhece que a doação de cérebro continua sendo um tema delicado: “Para algumas famílias, é muito desconfortável falar sobre o assunto”, e alguns grupos religiosos e étnicos consideram-na condenável. Quando ele liderou a pesquisa sobre a doença de Huntington, décadas atrás, e levantou a questão com os pacientes, “levava anos para que as pessoas fizessem perguntas antes de se sentirem à vontade para assinar um formulário”.

Como funciona?

O Brain Donor Project conecta possíveis doadores a bancos de cérebros de universidades afiliadas ao NIH. “Não tente escolher um banco de cérebros por conta própria”, disse Hevel. Eles têm requisitos e protocolos diferentes, e o projeto sabe conectar o doador ao banco certo.

O doador assina a documentação necessária – ou um parente ou membro da equipe médica pode assinar em nome do doador. A família ou a equipe médica deve alertar o banco imediatamente após a morte do doador.

Na casa funerária ou no necrotério, um “especialista em recuperação”, geralmente um patologista ou médico legista, remove o cérebro pela parte de trás do crânio, para evitar desfiguração (assim, o falecido ainda pode ter um velório de caixão aberto), e entrega a um banco de cérebros para congelamento e distribuição a laboratórios de pesquisa.

“Ouvi de muitas famílias que, mesmo diante de uma grande perda, há uma sensação de consolo e conforto, por saber que algo positivo pode resultar da morte”, disse Hevel.

Não há custo para as famílias, que podem optar por receber um relatório neuropatológico alguns meses depois. Esse documento pode ser útil para alertar os parentes sobre possíveis distúrbios ou anormalidades.

Há outras maneiras de ver o próprio corpo como um legado, é claro. De acordo com a Lei de Doação Anatômica dos Estados Unidos, praticamente qualquer adulto pode se tornar doador de órgãos ao tirar ou renovar a carteira de motorista ou ao se inscrever em um registro estadual online (concordar em doar órgãos para transplante não inclui a doação do cérebro para pesquisa em neurociência).

Mais de 100 mil americanos estão em listas de espera para transplantes, sendo que a maioria espera por um rim.

É “um mundo diferente” quando as pessoas querem doar corpos a faculdades de medicina para ajudar a formar profissionais de saúde, disse Sheldon Kurtz, que leciona direito na Universidade de Iowa e ajudou a redigir a atual legislação sobre doação de órgãos.

Nesse caso, os doadores devem contatar diretamente as escolas, que podem ser exigentes quanto aos organismos que vão aceitar e em que termos. Algumas instituições não trabalham com doadores de fora do Estado, por exemplo, nem aceitam “doações de parentes próximos” organizadas pelas famílias, se o doador não tiver assinado pessoalmente a papelada.

Às vezes, é possível doar tanto o cérebro quanto o corpo inteiro. “Não há legislação definida para esses arranjos”, disse Kurtz. “É um contrato entre o doador e a instituição”.

‘Presente para outras pessoas’

Em 2021, Joy Balta, presidente do comitê de doação de corpos da Associação Americana de Anatomia, e seus colegas fizeram uma pesquisa com 72 faculdades de medicina que recebiam anualmente mais de 26 mil doações de corpos inteiros. Cerca de 70% dos entrevistados relataram ter recebido doações suficientes para pesquisa; alguns tinham mais do que precisavam.

Mas suas necessidades estão aumentando, disse Balta em entrevista. O aprimoramento das técnicas de preservação significa que os cadáveres humanos agora são usados não apenas para ensinar anatomia, sua finalidade tradicional, mas também para ajudar a treinar cirurgiões e outros profissionais.

Mas, no caso de Markoff, o homem de 110 anos, seus filhos viram seu cérebro como um presente que poderia beneficiar outras pessoas.

“Será que tem algum segredo ali?”, disse Koroshetz. “Nas pessoas muito idosas, é raro que um cérebro não tenha patologia neurológica, mas 38% deles não têm dificuldades cognitivas. Os circuitos ainda estão funcionando, mesmo quando a patologia é grave. Qual é a causa dessa resiliência?”

Markoff faleceu em casa no dia 3 de junho, apenas dois dias depois de sua filha acordar de madrugada com a ideia da doação. Como o Brain Donor Project conectou Hansen imediatamente à UCLA, “esse cérebro precioso foi armazenado adequadamente quatro horas” após a morte, disse Hevel.

Foi um consolo. “Ficamos muito felizes, porque papai poderá ser útil”, disse Hansen. “Não é isso que todos nós queremos? Ter um propósito?”/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

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