Com três anos Raquel Nery já sabia ler e, aos 20, entrou em Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Estudante com autismo e superdotação, a inteligência sempre esteve presente em sua vida, mas o diagnóstico, não. Esse só veio aos 16 anos, como um alívio para ela e para a família.
“O autismo é uma síndrome incurável, não tem como sair do espectro. Mas tem como intervir e melhorar. Por exemplo, no ensino médio, eu era completamente desmotivada, porque não me sentia bem ali. Agora, com o laudo, tenho um acompanhamento pela secretaria de inclusão e acessibilidade, no qual semanalmente me perguntam se há algum problema que eles possam me ajudar”, explica ela em entrevista por telefone ao Estadão.
“Eu vou ser boa médica sim, porque sei que me esforço para isso. Muitas vezes, duvido se vou ser uma das melhores da turma ou ter o desempenho que quero. Mas, que vou ser uma boa médica, disso não duvido nem por um instante”, afirma a estudante de Medicina Raquel Nery.
Aos 16 anos ela recebeu o diagnóstico de autismo grau 2, considerado pelos especialistas como moderado. Mas muito antes de o termo ser constante em sua vida, Raquel já se percebia diferente dos outros. “Quando eu era pequena, inteligência não era um conceito que eu conhecia, mas me perguntava por que os meus colegas demoravam tanto para aprender algumas coisas e também me questionava porque não sabia o que falar ou como ser amiga direito”, reflete ela.
“Eu tentava fazer a tarefa das pessoas, tentava ser legal com todo mundo, mas em certo momento percebi que não importava o que fizesse ninguém ia gostar de mim.”
Sem muitos colegas por perto, Raquel decidiu focar nos estudos – ainda que fosse superdotada. “Meu QI é superior a 99% da população. Na escola isso era muito evidente. Tanto em raciocínio e memória quanto em conseguir fixar conhecimento, por isso fui adiantada em dois anos. Mas mesmo assim me sentia entediada”, diz.
Tudo mudou, porém, no ensino médio, quando passou a estudar para entrar em uma universidade federal – o que para muitos pode ser um sonho, para Raquel foi quase rotina.
Aos 15 anos, passou em Fisioterapia, mas pela idade não pôde dar continuidade ao processo. Aos 17, prestou Enem e foi aprovada em Biomedicina, mas depois decidiu trocar para Medicina, curso para o qual prestou vestibular aos 20 anos – e continua estudando.
“As pessoas acham que tenho vantagem por ser autista, mas eu tive as mesmas questões e o mesmo tempo que elas. Só não tive o sino”, conta ela, que tem hipersensibilidade na audição, por isso leva sempre seu fone antirruído.
“Isso é algo que escuto muito das pessoas, porque elas falam que hospitais são barulhentos. Mas a Medicina é muito ampla. Posso ficar em laboratório, no consultório, na sala de cirurgia, na emergência. Quando for médica me preocupo com isso.”
Com todas as mudanças de sua vida, Raquel decidiu falar nas suas redes sociais sobre como era ser autista e cursar Medicina. “Tive a minha primeira rede social em março de 2020, quando as aulas pararam. Fazia Biomedicina na época e todo mundo falava sobre o TikTok”, lembra. “Em agosto de 2021, bem no dia em que fui tomar a vacina da covid, pensei em mostrar como era. Fiz um vídeo e postei.”
Vida online
A proposta deu certo. Hoje, Raquel tem mais de 1,5 milhão de seguidores (somando Instagram e TikTok) e posta vídeos, editados por ela e pelo irmão, dos conteúdos mais variados. De relacionamento à rotina de estudos, sempre mesclando o seu dia a dia com aspectos do transtorno autista.
Apesar de muitos vídeos serem educativos, Raquel não teme abordar assuntos íntimos, mostrando situações constrangedoras ou até falando sobre crises que teve. Dessa forma, expõe o que passa na cabeça dos autistas em determinados contextos, além de explicar como as outras pessoas podem ajudar.
Raquel Nery, estudante
“Não sei se tenho um objetivo com isso. Mas acho que ajuda as pessoas a conhecerem mais a vida de um autista”, diz. Um motivo parecido pelo qual, inclusive, optou por Medicina. “Quando estava sendo diagnosticada, encontrei médicos ruins e isso me despertou a vontade de ser médica, não especificamente para autista, mas vi como pode ser limitado à neurologia e à psiquiatria em geral.”
Para o futuro, Raquel pensa em fazer a residência em seu Estado de origem, Rio Grande do Norte, além de sonhar com mestrado e doutorado. “Quero pesquisar muito e, quem sabe, ter uma clínica para neurodivergentes”, sonha.