Baixo investimento em pesquisa e pouca estrutura limitam desenvolvimento de vacina no Brasil


Universidades recorrem a parcerias e até vaquinhas online para avançar em pesquisas; situação obriga País a ficar na fila global de insumos

Por Camila Santos, Guilherme Lara da Rosa, Layla Shasta e Thais Porsch
Atualização:

“Em uma nova emergência, nós vamos ficar à míngua em relação à vacina. Foi o que aconteceu com a covid-19. Entramos em uma fila global para conseguir insumos.” O alerta é do virologista Flávio Guimarães da Fonseca, coordenador do Centro de Tecnologia em Vacinas (CTVacinas) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que trabalha no desenvolvimento de imunizantes para doenças como covid e varíola dos macacos. A preocupação é compartilhada por outros cientistas e pesquisadores de vacinas ouvidos pelo Estadão, que defendem a necessidade de investir na produção local de vacinas e retomar o caminho da autossuficiência.

À frente da primeira vacina totalmente brasileira contra covid, Fonseca aliou-se à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para chegar ao estágio atual do imunizante, que começou a ser testada em humanos nesta sexta-feira, dia 25. Mas ele reconhece que suas pesquisas se beneficiaram da urgência imposta pela pandemia, enquanto o desenvolvimento de imunizantes para combater outras doenças segue em passos lentos por falta de equipamentos e incentivo aos profissionais. “A UFMG foi extremamente impactada pela falta de investimento. Tenho colegas, que trabalham com leishmaniose, doença de Chagas e outros vírus, que estão trabalhando com escassez”, lamenta.

continua após a publicidade

Desenvolvida na Universidade Federal do Paraná (UFPR), outra vacina contra a covid-19 está aguardando a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para também iniciar os testes em humanos. A pesquisa chegou a ficar ameaçada pela falta de estrutura e de verba, mas o bioquímico Emanuel Maltempi - responsável pelo imunizante - recorreu a uma vaquinha online para manter o projeto em andamento. O cientista conseguiu R$ 76 milhões, apenas 3% do que pretendia. Apesar de estar abaixo da meta, o valor evitou a interrupção dos trabalhos. “Houve um período em que não tínhamos muito o que fazer e, sinceramente, a campanha de doação permitiu que continuássemos andando até que a verba do Estado chegasse”, diz.

Com R$ 11 milhões canalizados para o projeto por meio de emenda parlamentar de bancada, a equipe de Maltempi espera cumprir a fase clínica 1 (início da testagem em humanos, que prevê o teste da vacina em no máximo cem pessoas). “Os recursos acabam de chegar. Agora estamos trabalhando duro para atender aos requisitos da Anvisa”, contou Maltempi. Há, ainda, R$ 1,3 milhões destinados pelo Governo do Paraná e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

continua após a publicidade
Para continuar desenvolvimento de pesquisa para vacina contra covid-19, cientistas da UFPR realizaram vaquinha online Foto: Sucom UFPR

Para a farmacêutica Soraya Smaili, do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Brasil acumula conhecimento suficiente para produzir as próprias vacinas e matéria-prima, mas carece de investimentos. “O ideal é que o País seja autossuficiente e autônomo em todo o processo, o que é possível, pois o Brasil tem cientistas capazes de fazer isso”, afirma.

Nos últimos anos, no entanto, o orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) encolheu em um terço. De um pico de R$ 15 bilhões em 2017, o orçamento do MCTI foi reduzido para R$ 10 bilhões em 2022, segundo dados da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados. Mas é o valor executado do orçamento - ou seja, o que foi efetivamente gasto - que mostra a perda de prioridade dos investimentos em ciência nos últimos anos, com liberação efetiva de recursos passando de 55% em 2019 para 50,8% em 2020, 40% em 2021 e apenas 30% até junho de 2022.

continua após a publicidade

O Estadão procurou o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) para questionar a redução nos investimentos, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

Retrocesso na produção

Há mais de 40 anos, o Brasil produzia suas vacinas e contava inclusive com um parque farmoquímico para a produção do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), substância que garante a eficácia e o efeito desejado dos fármacos. Na década de 1980, essa estrutura foi capaz de mais de 50% do IFA necessário, em comparação com a produção atual de apenas 5%, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).

continua após a publicidade

Com essa produção local de IFA restrita, o País depende cada vez mais de importações. “Alguns anos atrás, a Saúde tinha uma participação nas importações brasileiras em torno de 6%, e hoje ela se aproxima de 10%. É um aumento explosivo”, diz o economista Carlos Gadelha, que coordena o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

Laboratório da Fiocruz: coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da fundação, Carlos Gadelha alerta para o aumento da dependência de importações na Saúde. Foto: Fiocruz/Divulgação

Para mudar esse quadro, é preciso definir quais são as prioridades para o País, afirma Eduardo Calderari, presidente-executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). “É preciso passar para uma estratégia em que a mudança de governos não vai resultar na mudança da política”, diz o representante da indústria farmacêutica, que defende uma revisão nas políticas tributárias e no arcabouço legal para investimento e incentivo no setor.

continua após a publicidade

Segundo o Guia Interfarma 2022, o Brasil ocupa hoje a décima posição no ranking de nações com maior investimento voltado à pesquisa e desenvolvimento no mundo. Ainda de acordo com a publicação, 70% do valor é de investimento do setor privado em indústrias de transformação, responsáveis pela transformação física, química e biológica de materiais, substâncias e componentes para se obter produtos novos. Ou seja, grande parte do investimento vem do sistema privado.

“Essas companhias investem mais em pesquisa em desenvolvimento do que o Brasil. Nós somos totalmente dependentes, 95% dos ingredientes ativos são todos importados. Além de sermos pequenos produtores, somos importadores de vacinas”, resumiu Dimas Covas, presidente do Instituto Butantan, em seminário para autoridades sanitárias, cientistas e empresários da saúde realizado em outubro, em São Paulo.

Brasil vive migração de talentos na pesquisa

continua após a publicidade

Para o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, a diminuição do investimento em ciência e pesquisa é um obstáculo também à atuação de profissionais brasileiros altamente qualificados. A consequência é o deslocamento dos especialistas para outros lugares do mundo. “Estamos fornecendo uma mão de obra de alta qualidade, mas privando-a do desenvolvimento que pode proporcionar ao País”, diz o ex-ministro da Educação.

O cientista Paulo Verardi, que está à frente de estudos pré-clínicos para o desenvolvimento de uma vacina contra o vírus da zika, retrata as consequências das dificuldades de fazer pesquisa com imunizantes no Brasil. Chefe do Departamento de Virologia e Vacinologia na Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, ele decidiu ficar no país norte-americano. “A situação no Brasil não estava fácil, especialmente na área de pesquisa e vacinas. Até voltei por um tempo, mas era muito difícil um bom cargo em uma universidade federal ou em algum outro tipo de indústria”, explica. (Colaboraram Camila Pergentino, Guilherme Santiago, Isabela Abalen, Letícia Pille e Pedro Nakamura)

Expediente

Reportagem | Alunos do 1º Curso Estadão de Jornalismo de Saúde: Aline Albuquerque, Ana Luiza Antunes, Beatriz Bulhões, Beatriz Leite, Camila Pergentino, Camila Santos, Fernanda Freire, Flávia Terres, Francielle Oliveira, Giovanna Castro, Guilherme Lara da Rosa, Guilherme Santiago, Isabel Gomes, Isabela Abalen, Iuri Santos, Kally Momesso, Katharina Cruz, Layla Shasta, Letícia Pille, Mariana Macedo, Matheus Metzker, Milena Félix, Pedro Miranda, Pedro Nakamura, Rafaela Rasera, Sofia Lungui, Stéphanie Araújo, Thais Porsch, Victória Ribeiro e Vitor Hugo Batista Coordenação e edição | Carla Miranda, Andréia Lago e Ítalo Rômany

“Em uma nova emergência, nós vamos ficar à míngua em relação à vacina. Foi o que aconteceu com a covid-19. Entramos em uma fila global para conseguir insumos.” O alerta é do virologista Flávio Guimarães da Fonseca, coordenador do Centro de Tecnologia em Vacinas (CTVacinas) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que trabalha no desenvolvimento de imunizantes para doenças como covid e varíola dos macacos. A preocupação é compartilhada por outros cientistas e pesquisadores de vacinas ouvidos pelo Estadão, que defendem a necessidade de investir na produção local de vacinas e retomar o caminho da autossuficiência.

À frente da primeira vacina totalmente brasileira contra covid, Fonseca aliou-se à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para chegar ao estágio atual do imunizante, que começou a ser testada em humanos nesta sexta-feira, dia 25. Mas ele reconhece que suas pesquisas se beneficiaram da urgência imposta pela pandemia, enquanto o desenvolvimento de imunizantes para combater outras doenças segue em passos lentos por falta de equipamentos e incentivo aos profissionais. “A UFMG foi extremamente impactada pela falta de investimento. Tenho colegas, que trabalham com leishmaniose, doença de Chagas e outros vírus, que estão trabalhando com escassez”, lamenta.

Desenvolvida na Universidade Federal do Paraná (UFPR), outra vacina contra a covid-19 está aguardando a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para também iniciar os testes em humanos. A pesquisa chegou a ficar ameaçada pela falta de estrutura e de verba, mas o bioquímico Emanuel Maltempi - responsável pelo imunizante - recorreu a uma vaquinha online para manter o projeto em andamento. O cientista conseguiu R$ 76 milhões, apenas 3% do que pretendia. Apesar de estar abaixo da meta, o valor evitou a interrupção dos trabalhos. “Houve um período em que não tínhamos muito o que fazer e, sinceramente, a campanha de doação permitiu que continuássemos andando até que a verba do Estado chegasse”, diz.

Com R$ 11 milhões canalizados para o projeto por meio de emenda parlamentar de bancada, a equipe de Maltempi espera cumprir a fase clínica 1 (início da testagem em humanos, que prevê o teste da vacina em no máximo cem pessoas). “Os recursos acabam de chegar. Agora estamos trabalhando duro para atender aos requisitos da Anvisa”, contou Maltempi. Há, ainda, R$ 1,3 milhões destinados pelo Governo do Paraná e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Para continuar desenvolvimento de pesquisa para vacina contra covid-19, cientistas da UFPR realizaram vaquinha online Foto: Sucom UFPR

Para a farmacêutica Soraya Smaili, do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Brasil acumula conhecimento suficiente para produzir as próprias vacinas e matéria-prima, mas carece de investimentos. “O ideal é que o País seja autossuficiente e autônomo em todo o processo, o que é possível, pois o Brasil tem cientistas capazes de fazer isso”, afirma.

Nos últimos anos, no entanto, o orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) encolheu em um terço. De um pico de R$ 15 bilhões em 2017, o orçamento do MCTI foi reduzido para R$ 10 bilhões em 2022, segundo dados da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados. Mas é o valor executado do orçamento - ou seja, o que foi efetivamente gasto - que mostra a perda de prioridade dos investimentos em ciência nos últimos anos, com liberação efetiva de recursos passando de 55% em 2019 para 50,8% em 2020, 40% em 2021 e apenas 30% até junho de 2022.

O Estadão procurou o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) para questionar a redução nos investimentos, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

Retrocesso na produção

Há mais de 40 anos, o Brasil produzia suas vacinas e contava inclusive com um parque farmoquímico para a produção do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), substância que garante a eficácia e o efeito desejado dos fármacos. Na década de 1980, essa estrutura foi capaz de mais de 50% do IFA necessário, em comparação com a produção atual de apenas 5%, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).

Com essa produção local de IFA restrita, o País depende cada vez mais de importações. “Alguns anos atrás, a Saúde tinha uma participação nas importações brasileiras em torno de 6%, e hoje ela se aproxima de 10%. É um aumento explosivo”, diz o economista Carlos Gadelha, que coordena o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

Laboratório da Fiocruz: coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da fundação, Carlos Gadelha alerta para o aumento da dependência de importações na Saúde. Foto: Fiocruz/Divulgação

Para mudar esse quadro, é preciso definir quais são as prioridades para o País, afirma Eduardo Calderari, presidente-executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). “É preciso passar para uma estratégia em que a mudança de governos não vai resultar na mudança da política”, diz o representante da indústria farmacêutica, que defende uma revisão nas políticas tributárias e no arcabouço legal para investimento e incentivo no setor.

Segundo o Guia Interfarma 2022, o Brasil ocupa hoje a décima posição no ranking de nações com maior investimento voltado à pesquisa e desenvolvimento no mundo. Ainda de acordo com a publicação, 70% do valor é de investimento do setor privado em indústrias de transformação, responsáveis pela transformação física, química e biológica de materiais, substâncias e componentes para se obter produtos novos. Ou seja, grande parte do investimento vem do sistema privado.

“Essas companhias investem mais em pesquisa em desenvolvimento do que o Brasil. Nós somos totalmente dependentes, 95% dos ingredientes ativos são todos importados. Além de sermos pequenos produtores, somos importadores de vacinas”, resumiu Dimas Covas, presidente do Instituto Butantan, em seminário para autoridades sanitárias, cientistas e empresários da saúde realizado em outubro, em São Paulo.

Brasil vive migração de talentos na pesquisa

Para o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, a diminuição do investimento em ciência e pesquisa é um obstáculo também à atuação de profissionais brasileiros altamente qualificados. A consequência é o deslocamento dos especialistas para outros lugares do mundo. “Estamos fornecendo uma mão de obra de alta qualidade, mas privando-a do desenvolvimento que pode proporcionar ao País”, diz o ex-ministro da Educação.

O cientista Paulo Verardi, que está à frente de estudos pré-clínicos para o desenvolvimento de uma vacina contra o vírus da zika, retrata as consequências das dificuldades de fazer pesquisa com imunizantes no Brasil. Chefe do Departamento de Virologia e Vacinologia na Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, ele decidiu ficar no país norte-americano. “A situação no Brasil não estava fácil, especialmente na área de pesquisa e vacinas. Até voltei por um tempo, mas era muito difícil um bom cargo em uma universidade federal ou em algum outro tipo de indústria”, explica. (Colaboraram Camila Pergentino, Guilherme Santiago, Isabela Abalen, Letícia Pille e Pedro Nakamura)

Expediente

Reportagem | Alunos do 1º Curso Estadão de Jornalismo de Saúde: Aline Albuquerque, Ana Luiza Antunes, Beatriz Bulhões, Beatriz Leite, Camila Pergentino, Camila Santos, Fernanda Freire, Flávia Terres, Francielle Oliveira, Giovanna Castro, Guilherme Lara da Rosa, Guilherme Santiago, Isabel Gomes, Isabela Abalen, Iuri Santos, Kally Momesso, Katharina Cruz, Layla Shasta, Letícia Pille, Mariana Macedo, Matheus Metzker, Milena Félix, Pedro Miranda, Pedro Nakamura, Rafaela Rasera, Sofia Lungui, Stéphanie Araújo, Thais Porsch, Victória Ribeiro e Vitor Hugo Batista Coordenação e edição | Carla Miranda, Andréia Lago e Ítalo Rômany

“Em uma nova emergência, nós vamos ficar à míngua em relação à vacina. Foi o que aconteceu com a covid-19. Entramos em uma fila global para conseguir insumos.” O alerta é do virologista Flávio Guimarães da Fonseca, coordenador do Centro de Tecnologia em Vacinas (CTVacinas) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que trabalha no desenvolvimento de imunizantes para doenças como covid e varíola dos macacos. A preocupação é compartilhada por outros cientistas e pesquisadores de vacinas ouvidos pelo Estadão, que defendem a necessidade de investir na produção local de vacinas e retomar o caminho da autossuficiência.

À frente da primeira vacina totalmente brasileira contra covid, Fonseca aliou-se à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para chegar ao estágio atual do imunizante, que começou a ser testada em humanos nesta sexta-feira, dia 25. Mas ele reconhece que suas pesquisas se beneficiaram da urgência imposta pela pandemia, enquanto o desenvolvimento de imunizantes para combater outras doenças segue em passos lentos por falta de equipamentos e incentivo aos profissionais. “A UFMG foi extremamente impactada pela falta de investimento. Tenho colegas, que trabalham com leishmaniose, doença de Chagas e outros vírus, que estão trabalhando com escassez”, lamenta.

Desenvolvida na Universidade Federal do Paraná (UFPR), outra vacina contra a covid-19 está aguardando a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para também iniciar os testes em humanos. A pesquisa chegou a ficar ameaçada pela falta de estrutura e de verba, mas o bioquímico Emanuel Maltempi - responsável pelo imunizante - recorreu a uma vaquinha online para manter o projeto em andamento. O cientista conseguiu R$ 76 milhões, apenas 3% do que pretendia. Apesar de estar abaixo da meta, o valor evitou a interrupção dos trabalhos. “Houve um período em que não tínhamos muito o que fazer e, sinceramente, a campanha de doação permitiu que continuássemos andando até que a verba do Estado chegasse”, diz.

Com R$ 11 milhões canalizados para o projeto por meio de emenda parlamentar de bancada, a equipe de Maltempi espera cumprir a fase clínica 1 (início da testagem em humanos, que prevê o teste da vacina em no máximo cem pessoas). “Os recursos acabam de chegar. Agora estamos trabalhando duro para atender aos requisitos da Anvisa”, contou Maltempi. Há, ainda, R$ 1,3 milhões destinados pelo Governo do Paraná e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Para continuar desenvolvimento de pesquisa para vacina contra covid-19, cientistas da UFPR realizaram vaquinha online Foto: Sucom UFPR

Para a farmacêutica Soraya Smaili, do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Brasil acumula conhecimento suficiente para produzir as próprias vacinas e matéria-prima, mas carece de investimentos. “O ideal é que o País seja autossuficiente e autônomo em todo o processo, o que é possível, pois o Brasil tem cientistas capazes de fazer isso”, afirma.

Nos últimos anos, no entanto, o orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) encolheu em um terço. De um pico de R$ 15 bilhões em 2017, o orçamento do MCTI foi reduzido para R$ 10 bilhões em 2022, segundo dados da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados. Mas é o valor executado do orçamento - ou seja, o que foi efetivamente gasto - que mostra a perda de prioridade dos investimentos em ciência nos últimos anos, com liberação efetiva de recursos passando de 55% em 2019 para 50,8% em 2020, 40% em 2021 e apenas 30% até junho de 2022.

O Estadão procurou o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) para questionar a redução nos investimentos, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

Retrocesso na produção

Há mais de 40 anos, o Brasil produzia suas vacinas e contava inclusive com um parque farmoquímico para a produção do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), substância que garante a eficácia e o efeito desejado dos fármacos. Na década de 1980, essa estrutura foi capaz de mais de 50% do IFA necessário, em comparação com a produção atual de apenas 5%, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).

Com essa produção local de IFA restrita, o País depende cada vez mais de importações. “Alguns anos atrás, a Saúde tinha uma participação nas importações brasileiras em torno de 6%, e hoje ela se aproxima de 10%. É um aumento explosivo”, diz o economista Carlos Gadelha, que coordena o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

Laboratório da Fiocruz: coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da fundação, Carlos Gadelha alerta para o aumento da dependência de importações na Saúde. Foto: Fiocruz/Divulgação

Para mudar esse quadro, é preciso definir quais são as prioridades para o País, afirma Eduardo Calderari, presidente-executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). “É preciso passar para uma estratégia em que a mudança de governos não vai resultar na mudança da política”, diz o representante da indústria farmacêutica, que defende uma revisão nas políticas tributárias e no arcabouço legal para investimento e incentivo no setor.

Segundo o Guia Interfarma 2022, o Brasil ocupa hoje a décima posição no ranking de nações com maior investimento voltado à pesquisa e desenvolvimento no mundo. Ainda de acordo com a publicação, 70% do valor é de investimento do setor privado em indústrias de transformação, responsáveis pela transformação física, química e biológica de materiais, substâncias e componentes para se obter produtos novos. Ou seja, grande parte do investimento vem do sistema privado.

“Essas companhias investem mais em pesquisa em desenvolvimento do que o Brasil. Nós somos totalmente dependentes, 95% dos ingredientes ativos são todos importados. Além de sermos pequenos produtores, somos importadores de vacinas”, resumiu Dimas Covas, presidente do Instituto Butantan, em seminário para autoridades sanitárias, cientistas e empresários da saúde realizado em outubro, em São Paulo.

Brasil vive migração de talentos na pesquisa

Para o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, a diminuição do investimento em ciência e pesquisa é um obstáculo também à atuação de profissionais brasileiros altamente qualificados. A consequência é o deslocamento dos especialistas para outros lugares do mundo. “Estamos fornecendo uma mão de obra de alta qualidade, mas privando-a do desenvolvimento que pode proporcionar ao País”, diz o ex-ministro da Educação.

O cientista Paulo Verardi, que está à frente de estudos pré-clínicos para o desenvolvimento de uma vacina contra o vírus da zika, retrata as consequências das dificuldades de fazer pesquisa com imunizantes no Brasil. Chefe do Departamento de Virologia e Vacinologia na Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, ele decidiu ficar no país norte-americano. “A situação no Brasil não estava fácil, especialmente na área de pesquisa e vacinas. Até voltei por um tempo, mas era muito difícil um bom cargo em uma universidade federal ou em algum outro tipo de indústria”, explica. (Colaboraram Camila Pergentino, Guilherme Santiago, Isabela Abalen, Letícia Pille e Pedro Nakamura)

Expediente

Reportagem | Alunos do 1º Curso Estadão de Jornalismo de Saúde: Aline Albuquerque, Ana Luiza Antunes, Beatriz Bulhões, Beatriz Leite, Camila Pergentino, Camila Santos, Fernanda Freire, Flávia Terres, Francielle Oliveira, Giovanna Castro, Guilherme Lara da Rosa, Guilherme Santiago, Isabel Gomes, Isabela Abalen, Iuri Santos, Kally Momesso, Katharina Cruz, Layla Shasta, Letícia Pille, Mariana Macedo, Matheus Metzker, Milena Félix, Pedro Miranda, Pedro Nakamura, Rafaela Rasera, Sofia Lungui, Stéphanie Araújo, Thais Porsch, Victória Ribeiro e Vitor Hugo Batista Coordenação e edição | Carla Miranda, Andréia Lago e Ítalo Rômany

“Em uma nova emergência, nós vamos ficar à míngua em relação à vacina. Foi o que aconteceu com a covid-19. Entramos em uma fila global para conseguir insumos.” O alerta é do virologista Flávio Guimarães da Fonseca, coordenador do Centro de Tecnologia em Vacinas (CTVacinas) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que trabalha no desenvolvimento de imunizantes para doenças como covid e varíola dos macacos. A preocupação é compartilhada por outros cientistas e pesquisadores de vacinas ouvidos pelo Estadão, que defendem a necessidade de investir na produção local de vacinas e retomar o caminho da autossuficiência.

À frente da primeira vacina totalmente brasileira contra covid, Fonseca aliou-se à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para chegar ao estágio atual do imunizante, que começou a ser testada em humanos nesta sexta-feira, dia 25. Mas ele reconhece que suas pesquisas se beneficiaram da urgência imposta pela pandemia, enquanto o desenvolvimento de imunizantes para combater outras doenças segue em passos lentos por falta de equipamentos e incentivo aos profissionais. “A UFMG foi extremamente impactada pela falta de investimento. Tenho colegas, que trabalham com leishmaniose, doença de Chagas e outros vírus, que estão trabalhando com escassez”, lamenta.

Desenvolvida na Universidade Federal do Paraná (UFPR), outra vacina contra a covid-19 está aguardando a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para também iniciar os testes em humanos. A pesquisa chegou a ficar ameaçada pela falta de estrutura e de verba, mas o bioquímico Emanuel Maltempi - responsável pelo imunizante - recorreu a uma vaquinha online para manter o projeto em andamento. O cientista conseguiu R$ 76 milhões, apenas 3% do que pretendia. Apesar de estar abaixo da meta, o valor evitou a interrupção dos trabalhos. “Houve um período em que não tínhamos muito o que fazer e, sinceramente, a campanha de doação permitiu que continuássemos andando até que a verba do Estado chegasse”, diz.

Com R$ 11 milhões canalizados para o projeto por meio de emenda parlamentar de bancada, a equipe de Maltempi espera cumprir a fase clínica 1 (início da testagem em humanos, que prevê o teste da vacina em no máximo cem pessoas). “Os recursos acabam de chegar. Agora estamos trabalhando duro para atender aos requisitos da Anvisa”, contou Maltempi. Há, ainda, R$ 1,3 milhões destinados pelo Governo do Paraná e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Para continuar desenvolvimento de pesquisa para vacina contra covid-19, cientistas da UFPR realizaram vaquinha online Foto: Sucom UFPR

Para a farmacêutica Soraya Smaili, do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Brasil acumula conhecimento suficiente para produzir as próprias vacinas e matéria-prima, mas carece de investimentos. “O ideal é que o País seja autossuficiente e autônomo em todo o processo, o que é possível, pois o Brasil tem cientistas capazes de fazer isso”, afirma.

Nos últimos anos, no entanto, o orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) encolheu em um terço. De um pico de R$ 15 bilhões em 2017, o orçamento do MCTI foi reduzido para R$ 10 bilhões em 2022, segundo dados da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados. Mas é o valor executado do orçamento - ou seja, o que foi efetivamente gasto - que mostra a perda de prioridade dos investimentos em ciência nos últimos anos, com liberação efetiva de recursos passando de 55% em 2019 para 50,8% em 2020, 40% em 2021 e apenas 30% até junho de 2022.

O Estadão procurou o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) para questionar a redução nos investimentos, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

Retrocesso na produção

Há mais de 40 anos, o Brasil produzia suas vacinas e contava inclusive com um parque farmoquímico para a produção do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), substância que garante a eficácia e o efeito desejado dos fármacos. Na década de 1980, essa estrutura foi capaz de mais de 50% do IFA necessário, em comparação com a produção atual de apenas 5%, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).

Com essa produção local de IFA restrita, o País depende cada vez mais de importações. “Alguns anos atrás, a Saúde tinha uma participação nas importações brasileiras em torno de 6%, e hoje ela se aproxima de 10%. É um aumento explosivo”, diz o economista Carlos Gadelha, que coordena o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

Laboratório da Fiocruz: coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da fundação, Carlos Gadelha alerta para o aumento da dependência de importações na Saúde. Foto: Fiocruz/Divulgação

Para mudar esse quadro, é preciso definir quais são as prioridades para o País, afirma Eduardo Calderari, presidente-executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). “É preciso passar para uma estratégia em que a mudança de governos não vai resultar na mudança da política”, diz o representante da indústria farmacêutica, que defende uma revisão nas políticas tributárias e no arcabouço legal para investimento e incentivo no setor.

Segundo o Guia Interfarma 2022, o Brasil ocupa hoje a décima posição no ranking de nações com maior investimento voltado à pesquisa e desenvolvimento no mundo. Ainda de acordo com a publicação, 70% do valor é de investimento do setor privado em indústrias de transformação, responsáveis pela transformação física, química e biológica de materiais, substâncias e componentes para se obter produtos novos. Ou seja, grande parte do investimento vem do sistema privado.

“Essas companhias investem mais em pesquisa em desenvolvimento do que o Brasil. Nós somos totalmente dependentes, 95% dos ingredientes ativos são todos importados. Além de sermos pequenos produtores, somos importadores de vacinas”, resumiu Dimas Covas, presidente do Instituto Butantan, em seminário para autoridades sanitárias, cientistas e empresários da saúde realizado em outubro, em São Paulo.

Brasil vive migração de talentos na pesquisa

Para o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, a diminuição do investimento em ciência e pesquisa é um obstáculo também à atuação de profissionais brasileiros altamente qualificados. A consequência é o deslocamento dos especialistas para outros lugares do mundo. “Estamos fornecendo uma mão de obra de alta qualidade, mas privando-a do desenvolvimento que pode proporcionar ao País”, diz o ex-ministro da Educação.

O cientista Paulo Verardi, que está à frente de estudos pré-clínicos para o desenvolvimento de uma vacina contra o vírus da zika, retrata as consequências das dificuldades de fazer pesquisa com imunizantes no Brasil. Chefe do Departamento de Virologia e Vacinologia na Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, ele decidiu ficar no país norte-americano. “A situação no Brasil não estava fácil, especialmente na área de pesquisa e vacinas. Até voltei por um tempo, mas era muito difícil um bom cargo em uma universidade federal ou em algum outro tipo de indústria”, explica. (Colaboraram Camila Pergentino, Guilherme Santiago, Isabela Abalen, Letícia Pille e Pedro Nakamura)

Expediente

Reportagem | Alunos do 1º Curso Estadão de Jornalismo de Saúde: Aline Albuquerque, Ana Luiza Antunes, Beatriz Bulhões, Beatriz Leite, Camila Pergentino, Camila Santos, Fernanda Freire, Flávia Terres, Francielle Oliveira, Giovanna Castro, Guilherme Lara da Rosa, Guilherme Santiago, Isabel Gomes, Isabela Abalen, Iuri Santos, Kally Momesso, Katharina Cruz, Layla Shasta, Letícia Pille, Mariana Macedo, Matheus Metzker, Milena Félix, Pedro Miranda, Pedro Nakamura, Rafaela Rasera, Sofia Lungui, Stéphanie Araújo, Thais Porsch, Victória Ribeiro e Vitor Hugo Batista Coordenação e edição | Carla Miranda, Andréia Lago e Ítalo Rômany

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.