Beber com moderação faz bem à saúde? Entenda se vale confiar em estudos sobre benefícios do álcool


Pesquisas já falaram que beber uma taça de vinho protege o coração ou previne demências, mas especialistas alertam que substância é nociva à saúde e muitos trabalhos são preliminares

Por Raisa Toledo
Atualização:

Já é senso comum acreditar que o consumo de uma taça de vinho por dia pode ser benéfico para o coração. Essa informação — que une o útil ao agradável — tem como base estudos que apontaram possíveis vantagens da bebida para a saúde cardíaca — e não são raras os trabalhos científicos que tentam avaliar se há algum efeito positivo do álcool para o nosso organismo. Mas será que dá para confiar nessas pesquisas?

Entre especialistas, há consenso de que provar definitivamente efeitos positivos da bebida para nosso organismo, sobretudo diante dos graves riscos da substância, ainda é algo distante. No início deste ano, a Federação Mundial de Cardiologia, por exemplo, divulgou documento em que alerta não haver nível seguro de álcool para o coração.

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo nocivo de álcool é apontado como fator causal de mais de 200 doenças e lesões. Além disso, a substância está por trás de mais de 3 milhões de mortes por ano ao redor do mundo, além de efeitos sociais e ligados à violência,

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Especialistas ouvidos pelo Estadão ajudam a entender a discussão sobre possíveis benefícios e riscos das bebidas alcoólicas. Parte dos estudos, destacam, é preliminar, com número restrito de participantes ou até mesmo incluíram testes só com animais. Há ainda um problema comum que envolve a metodologia científica: é possível que outros hábitos do grupo pesquisado, e não o consumo de álcool, sejam responsáveis por um efeito protetivo ou positivo para a saúde.

Efeito protetor do vinho sobre o coração?

Muitos são os estudos que mencionam esse efeito nas últimas décadas. Em pesquisa publicada na revista científica Molecules em 2019, por exemplo, os autores sugerem que o vinho tinto poderia estar relacionado a um risco menor de desenvolver doença arterial coronária (DAC).

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As evidências, descritas em estudos experimentais e meta-análises (técnica estatística que combina os resultados de estudos diferentes sobre um mesmo objeto de pesquisa), atribuem a ação protetora à presença de polifenóis como o resveratrol, molécula que tem ação antioxidante. Entre os benefícios estariam a redução da resistência à insulina e a diminuição do LDL, o “colesterol ruim”.

Antioxidantes, como o resveratrol, têm papel importante na ação contra os radicais livres produzidos pelo corpo que, em excesso, podem causar lesões celulares e favorecer o desenvolvimento de doenças como o Alzheimer e a aterosclerose. Apesar disso, relacionar o consumo de vinho a uma proteção significativa e garantida contra esses problemas pode ser um exagero.

“Há outras moléculas antioxidantes; por exemplo, sabemos que a vitamina C tem esse efeito, mas não dá para dizer que tudo se resolve com acerola”, exemplifica William Peres, conselheiro federal de Farmácia pelo Rio Grande do Sul e professor do Centro de Ciências Químicas, Farmacêuticas e de Alimentos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

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Substâncias antioxidantes presentes no vinho são apontadas em alguns estudos como responsáveis por benefícios para a saúde. Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Afirmações sobre os benefícios do vinho também contam com efeitos confundidores, já que hábitos e alimentação saudáveis podem ser responsáveis pela proteção cardiovascular atribuída ao consumo da bebida. Em países como França e Itália, de onde vem boa parte dos estudos que fazem essa associação, a dieta mediterrânea é conhecida por ser rica em alimentos frescos e antioxidantes, como azeite de oliva, oleaginosas, uvas e peixes.

“Como cardiologista, a gente nunca pode sugerir beber para ter um efeito benéfico”, destaca Fábio Fernandes, membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e diretor do grupo de miocardiopatias do Instituto do Coração (Incor HCFMUSP).

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Artigo publicado no JAMA Network Open no início de 2022 apontou que não há nível de consumo de álcool totalmente seguro para o coração. O risco é pequeno quando as pessoas consomem, em média sete doses por semana, em comparação com nenhuma.

Mas, claro, a quantidade importa muito e, “na medida em que vai além das faixas mais moderadas, o risco aumenta bastante”, conforme Krishna G. Aragam, cardiologista do Massachusetts General Hospital (EUA) e um dos autores do estudo. O trabalho envolveu análises dos genes e dados médicos de quase 400 mil pessoas do UK Biobank, um repositório britânico, com idade média de 57 anos e consumo médio de 9,2 doses por semana.

Alguns cientistas relataram que o consumo com moderação protege o coração porque bebedores moderados, tomados em conjunto, têm menos doenças cardíacas do que quem bebe muito ou não bebe. Mas não é que o vinho ou a cerveja do fim de semana protege o coração.

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Bebedores leves a moderados — até 14 doses por semana — tendem a ter outras características que diminuem seu risco, como fumar menos, se exercitar mais e pesar menos do que aqueles que bebem mais e os que não bebem. Segundo Aragam, porém, não se sabe por que bebedores moderados tendem a ser mais saudáveis do que as pessoas que não bebem.

Vinho contra covid-19?

A ação dos polifenóis presentes em vinhos também já foi relacionada à inibição das funções de vírus diferentes, incluindo o causador da covid-19. Estudo publicado no início do ano no periódico Frontiers of Nutrition apontou que pessoas que bebem vinho tinto, branco ou champanhe teriam menos riscos de contrair a doença. Em 2020, cientistas taiwaneses publicaram na American Journal of Cancer Research pesquisa que identificou que o polifenol tanino poderia ajudar a controlar a carga viral do Sars-CoV-2 comprometendo a atividade enzimática e impedindo sua entrada nas células.

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De acordo com Alessandra Diehl, psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (Abead), é preciso ficar atento aos critérios usados pelos cientistas. Muitas vezes, explica, a metodologia não é especificada, deixando dúvidas sobre as medidas de controle, randomização (quando os elementos da amostra são selecionados aleatoriamente), fatores confundidores e sobre a existência de viés de confirmação (diferenças entre os grupos de comparação do estudo).

A pesquisa taiwanesa, por exemplo, foi realizada in vitro, com polifenóis isolados colocados em contato com o vírus no laboratório. “Isso acaba não sendo controlado. Aí alguns artigos têm falado que o uso em pequena quantidade, moderado, pode levar a um efeito protetor. Sou cética em acreditar que isso ocorra. Como sabemos, não existe nenhum consumo de álcool totalmente isento de riscos”, reforça.

Peres, da UFPel, destaca que muitos dos trabalhos envolvem somente testes com animais. “São trabalhos que precisam de muita pesquisa pela frente, uma análise continuada. Tem muito estudo que você vai ler e ele foi feito em moscas, por exemplo”, complementa.

O cardiologista Fábio Fernandes adiciona outro fator a ser considerado: a genética. “As pessoas metabolizam o álcool de formas diferentes. Um paciente diabético ou que tenha níveis de triglicérides altos terá alterações metabólicas importantes. Tem de individualizar cada caso”, pondera.

As pessoas metabolizam o álcool de formas diferentes. Um paciente diabético ou que tenha níveis de triglicérides altos terá alterações metabólicas importantes. Tem de individualizar cada caso”

Fábio Fernandes, cardiologista

Consumo diário reduz risco de demência?

Em setembro, a revista Addiction publicou um estudo australiano, que indica que beber até 40 g de álcool diariamente pode diminuir os riscos de demência em até 40%. Para se ter ideia, uma lata de cerveja contém cerca de 17 g de etanol.

Segundo os resultados, os grupos de indivíduos que disseram consumir bebidas alcoólicas do nível leve a moderado e moderado a pesado foram os que menos apresentaram doenças como o Alzheimer no decorrer do estudo.

Estudo feito por pesquisadores australianos associou o consumo diário de álcool à menor probabilidade de desenvolver demência em pessoas com mais de 60 anos. Foto: Todd Heisler/The New York Times

Para Alessandra Diehl, presidente da Abead, são dados controversos quando comparados com aqueles obtidos no cotidiano da medicina. Na prática clínica, ela afirma que os efeitos neurotóxicos do álcool têm sido, na verdade, um fator de risco para quadros como demência e declínio cognitivo, associado a alterações estruturais do cérebro. “Esse consumo também pode piorar outras comorbidades como depressão, ansiedade e até evoluir para um padrão de alcoolismo propriamente dito, que tem suas repercussões sociais, psicológicas, familiares e intrapessoais”, destaca.

Esse consumo também pode piorar outras comorbidades como depressão, ansiedade e até evoluir para um padrão de alcoolismo propriamente dito, que tem suas repercussões sociais, psicológicas, familiares e intrapessoais”

Alessandra Diehl, presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas

Problemas de saúde influenciados pelo consumo de álcool:

  • Doenças cardiovasculares como insuficiência cardíaca, hipertensão, arritmia, diabete, cardiopatia alcoólica (que enfraquece o músculo cardíaco e sua capacidade de bombear sangue) e síndrome metabólica;
  • Cirrose hepática;
  • Pancreatite crônica;
  • Desnutrição e falta de substâncias como vitamina B1, fosfato e zinco;
  • Perda de memória recente;
  • Dependência química (alcoolismo);
  • Síndrome alcoólica fetal, que desencadeia alterações neurocognitivas e físicas para a criança, como atrofia muscular, perda de coordenação motora, paralisia cerebral e microcefalia;
  • Agravamento de condições como depressão e ansiedade;
  • Aumento dos riscos de desenvolver câncer;
  • Ferimentos e mortes derivados de acidentes automobilísticos ou violência interpessoal.

Não se pode confiar em estudos?

Os especialistas concordam que, diferentemente do que às vezes é divulgado, não é recomendado ver o consumo de bebidas alcoólicas como um aliado da longevidade. William Peres explica que os fatores que podem fazer com que uma pessoa viva mais estão principalmente atrelados a sua carga genética, comportamento alimentar, prática de exercício, estilo de vida e a maneira com que maneja o estresse.

Para a psiquiatra Alessandra Diehl, é preocupante usar informações científicas fora de contexto ou situações episódicas como modelo. Segundo ela, muitas vezes circulam na mídia “exemplos isolados como o da rainha (britânica) Elizabeth, que bebeu um cálice de certa bebida durante toda a sua vida”, mas isso não significa que isso seja uma receita para viver tanto quanto ela, que morreu em setembro aos 96 anos.

Em pessoas com hábitos saudáveis, atribuir as boas condições de saúde ao consumo diário de álcool pode distorcer a relação entre a longevidade e os fatores que a favorecem Foto: Reuters

O aumento do consumo entre mulheres, inclusive, tem preocupado especialistas. De 2010 a 2019, a proporção de mulheres de 18 a 24 anos que disseram fazer uso abusivo de álcool no Brasil aumentou de 14,9% para 23%, segundo o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel).

E, para piorar, o País tem visto esse contato com as bebidas começar cada vez mais cedo. Conforme a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019, que ouviu estudantes do 7º ano do ensino fundamental ao 3º ano do médio, 63,3% dos alunos já haviam consumido bebidas alcoólicas – 34,6% quando tinham menos de 14 anos.

Diante disso, o diretor do grupo de miocardiopatias do InCor, Fábio Fernandes, classifica como preocupante dizer que o álcool em quantidade pode prevenir problemas de saúde. “Menos de 100 ml de vinho por dia em indivíduos com mais de 40 anos não causam um fator negativo, mas é melhor deixar para o fim de semana”, recomenda.

Hábitos que podem contribuir para a saúde e a longevidade:

  • Montar pratos sempre coloridos, com mais frutas e verduras e menos alimentos ultraprocessados e ricos em gorduras saturadas;
  • Inserir oleaginosas como as nozes e amêndoas e azeite de oliva na dieta, que contém gorduras consideradas mais saudáveis;
  • Praticar exercícios regularmente;
  • Consumo moderado de bebidas alcoólicas;
  • Ter mecanismos alternativos de manejo do estresse, como horário fixo para parar de trabalhar e pausas previstas na rotina.

Já é senso comum acreditar que o consumo de uma taça de vinho por dia pode ser benéfico para o coração. Essa informação — que une o útil ao agradável — tem como base estudos que apontaram possíveis vantagens da bebida para a saúde cardíaca — e não são raras os trabalhos científicos que tentam avaliar se há algum efeito positivo do álcool para o nosso organismo. Mas será que dá para confiar nessas pesquisas?

Entre especialistas, há consenso de que provar definitivamente efeitos positivos da bebida para nosso organismo, sobretudo diante dos graves riscos da substância, ainda é algo distante. No início deste ano, a Federação Mundial de Cardiologia, por exemplo, divulgou documento em que alerta não haver nível seguro de álcool para o coração.

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo nocivo de álcool é apontado como fator causal de mais de 200 doenças e lesões. Além disso, a substância está por trás de mais de 3 milhões de mortes por ano ao redor do mundo, além de efeitos sociais e ligados à violência,

Especialistas ouvidos pelo Estadão ajudam a entender a discussão sobre possíveis benefícios e riscos das bebidas alcoólicas. Parte dos estudos, destacam, é preliminar, com número restrito de participantes ou até mesmo incluíram testes só com animais. Há ainda um problema comum que envolve a metodologia científica: é possível que outros hábitos do grupo pesquisado, e não o consumo de álcool, sejam responsáveis por um efeito protetivo ou positivo para a saúde.

Efeito protetor do vinho sobre o coração?

Muitos são os estudos que mencionam esse efeito nas últimas décadas. Em pesquisa publicada na revista científica Molecules em 2019, por exemplo, os autores sugerem que o vinho tinto poderia estar relacionado a um risco menor de desenvolver doença arterial coronária (DAC).

As evidências, descritas em estudos experimentais e meta-análises (técnica estatística que combina os resultados de estudos diferentes sobre um mesmo objeto de pesquisa), atribuem a ação protetora à presença de polifenóis como o resveratrol, molécula que tem ação antioxidante. Entre os benefícios estariam a redução da resistência à insulina e a diminuição do LDL, o “colesterol ruim”.

Antioxidantes, como o resveratrol, têm papel importante na ação contra os radicais livres produzidos pelo corpo que, em excesso, podem causar lesões celulares e favorecer o desenvolvimento de doenças como o Alzheimer e a aterosclerose. Apesar disso, relacionar o consumo de vinho a uma proteção significativa e garantida contra esses problemas pode ser um exagero.

“Há outras moléculas antioxidantes; por exemplo, sabemos que a vitamina C tem esse efeito, mas não dá para dizer que tudo se resolve com acerola”, exemplifica William Peres, conselheiro federal de Farmácia pelo Rio Grande do Sul e professor do Centro de Ciências Químicas, Farmacêuticas e de Alimentos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Substâncias antioxidantes presentes no vinho são apontadas em alguns estudos como responsáveis por benefícios para a saúde. Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Afirmações sobre os benefícios do vinho também contam com efeitos confundidores, já que hábitos e alimentação saudáveis podem ser responsáveis pela proteção cardiovascular atribuída ao consumo da bebida. Em países como França e Itália, de onde vem boa parte dos estudos que fazem essa associação, a dieta mediterrânea é conhecida por ser rica em alimentos frescos e antioxidantes, como azeite de oliva, oleaginosas, uvas e peixes.

“Como cardiologista, a gente nunca pode sugerir beber para ter um efeito benéfico”, destaca Fábio Fernandes, membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e diretor do grupo de miocardiopatias do Instituto do Coração (Incor HCFMUSP).

Artigo publicado no JAMA Network Open no início de 2022 apontou que não há nível de consumo de álcool totalmente seguro para o coração. O risco é pequeno quando as pessoas consomem, em média sete doses por semana, em comparação com nenhuma.

Mas, claro, a quantidade importa muito e, “na medida em que vai além das faixas mais moderadas, o risco aumenta bastante”, conforme Krishna G. Aragam, cardiologista do Massachusetts General Hospital (EUA) e um dos autores do estudo. O trabalho envolveu análises dos genes e dados médicos de quase 400 mil pessoas do UK Biobank, um repositório britânico, com idade média de 57 anos e consumo médio de 9,2 doses por semana.

Alguns cientistas relataram que o consumo com moderação protege o coração porque bebedores moderados, tomados em conjunto, têm menos doenças cardíacas do que quem bebe muito ou não bebe. Mas não é que o vinho ou a cerveja do fim de semana protege o coração.

Bebedores leves a moderados — até 14 doses por semana — tendem a ter outras características que diminuem seu risco, como fumar menos, se exercitar mais e pesar menos do que aqueles que bebem mais e os que não bebem. Segundo Aragam, porém, não se sabe por que bebedores moderados tendem a ser mais saudáveis do que as pessoas que não bebem.

Vinho contra covid-19?

A ação dos polifenóis presentes em vinhos também já foi relacionada à inibição das funções de vírus diferentes, incluindo o causador da covid-19. Estudo publicado no início do ano no periódico Frontiers of Nutrition apontou que pessoas que bebem vinho tinto, branco ou champanhe teriam menos riscos de contrair a doença. Em 2020, cientistas taiwaneses publicaram na American Journal of Cancer Research pesquisa que identificou que o polifenol tanino poderia ajudar a controlar a carga viral do Sars-CoV-2 comprometendo a atividade enzimática e impedindo sua entrada nas células.

De acordo com Alessandra Diehl, psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (Abead), é preciso ficar atento aos critérios usados pelos cientistas. Muitas vezes, explica, a metodologia não é especificada, deixando dúvidas sobre as medidas de controle, randomização (quando os elementos da amostra são selecionados aleatoriamente), fatores confundidores e sobre a existência de viés de confirmação (diferenças entre os grupos de comparação do estudo).

A pesquisa taiwanesa, por exemplo, foi realizada in vitro, com polifenóis isolados colocados em contato com o vírus no laboratório. “Isso acaba não sendo controlado. Aí alguns artigos têm falado que o uso em pequena quantidade, moderado, pode levar a um efeito protetor. Sou cética em acreditar que isso ocorra. Como sabemos, não existe nenhum consumo de álcool totalmente isento de riscos”, reforça.

Peres, da UFPel, destaca que muitos dos trabalhos envolvem somente testes com animais. “São trabalhos que precisam de muita pesquisa pela frente, uma análise continuada. Tem muito estudo que você vai ler e ele foi feito em moscas, por exemplo”, complementa.

O cardiologista Fábio Fernandes adiciona outro fator a ser considerado: a genética. “As pessoas metabolizam o álcool de formas diferentes. Um paciente diabético ou que tenha níveis de triglicérides altos terá alterações metabólicas importantes. Tem de individualizar cada caso”, pondera.

As pessoas metabolizam o álcool de formas diferentes. Um paciente diabético ou que tenha níveis de triglicérides altos terá alterações metabólicas importantes. Tem de individualizar cada caso”

Fábio Fernandes, cardiologista

Consumo diário reduz risco de demência?

Em setembro, a revista Addiction publicou um estudo australiano, que indica que beber até 40 g de álcool diariamente pode diminuir os riscos de demência em até 40%. Para se ter ideia, uma lata de cerveja contém cerca de 17 g de etanol.

Segundo os resultados, os grupos de indivíduos que disseram consumir bebidas alcoólicas do nível leve a moderado e moderado a pesado foram os que menos apresentaram doenças como o Alzheimer no decorrer do estudo.

Estudo feito por pesquisadores australianos associou o consumo diário de álcool à menor probabilidade de desenvolver demência em pessoas com mais de 60 anos. Foto: Todd Heisler/The New York Times

Para Alessandra Diehl, presidente da Abead, são dados controversos quando comparados com aqueles obtidos no cotidiano da medicina. Na prática clínica, ela afirma que os efeitos neurotóxicos do álcool têm sido, na verdade, um fator de risco para quadros como demência e declínio cognitivo, associado a alterações estruturais do cérebro. “Esse consumo também pode piorar outras comorbidades como depressão, ansiedade e até evoluir para um padrão de alcoolismo propriamente dito, que tem suas repercussões sociais, psicológicas, familiares e intrapessoais”, destaca.

Esse consumo também pode piorar outras comorbidades como depressão, ansiedade e até evoluir para um padrão de alcoolismo propriamente dito, que tem suas repercussões sociais, psicológicas, familiares e intrapessoais”

Alessandra Diehl, presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas

Problemas de saúde influenciados pelo consumo de álcool:

  • Doenças cardiovasculares como insuficiência cardíaca, hipertensão, arritmia, diabete, cardiopatia alcoólica (que enfraquece o músculo cardíaco e sua capacidade de bombear sangue) e síndrome metabólica;
  • Cirrose hepática;
  • Pancreatite crônica;
  • Desnutrição e falta de substâncias como vitamina B1, fosfato e zinco;
  • Perda de memória recente;
  • Dependência química (alcoolismo);
  • Síndrome alcoólica fetal, que desencadeia alterações neurocognitivas e físicas para a criança, como atrofia muscular, perda de coordenação motora, paralisia cerebral e microcefalia;
  • Agravamento de condições como depressão e ansiedade;
  • Aumento dos riscos de desenvolver câncer;
  • Ferimentos e mortes derivados de acidentes automobilísticos ou violência interpessoal.

Não se pode confiar em estudos?

Os especialistas concordam que, diferentemente do que às vezes é divulgado, não é recomendado ver o consumo de bebidas alcoólicas como um aliado da longevidade. William Peres explica que os fatores que podem fazer com que uma pessoa viva mais estão principalmente atrelados a sua carga genética, comportamento alimentar, prática de exercício, estilo de vida e a maneira com que maneja o estresse.

Para a psiquiatra Alessandra Diehl, é preocupante usar informações científicas fora de contexto ou situações episódicas como modelo. Segundo ela, muitas vezes circulam na mídia “exemplos isolados como o da rainha (britânica) Elizabeth, que bebeu um cálice de certa bebida durante toda a sua vida”, mas isso não significa que isso seja uma receita para viver tanto quanto ela, que morreu em setembro aos 96 anos.

Em pessoas com hábitos saudáveis, atribuir as boas condições de saúde ao consumo diário de álcool pode distorcer a relação entre a longevidade e os fatores que a favorecem Foto: Reuters

O aumento do consumo entre mulheres, inclusive, tem preocupado especialistas. De 2010 a 2019, a proporção de mulheres de 18 a 24 anos que disseram fazer uso abusivo de álcool no Brasil aumentou de 14,9% para 23%, segundo o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel).

E, para piorar, o País tem visto esse contato com as bebidas começar cada vez mais cedo. Conforme a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019, que ouviu estudantes do 7º ano do ensino fundamental ao 3º ano do médio, 63,3% dos alunos já haviam consumido bebidas alcoólicas – 34,6% quando tinham menos de 14 anos.

Diante disso, o diretor do grupo de miocardiopatias do InCor, Fábio Fernandes, classifica como preocupante dizer que o álcool em quantidade pode prevenir problemas de saúde. “Menos de 100 ml de vinho por dia em indivíduos com mais de 40 anos não causam um fator negativo, mas é melhor deixar para o fim de semana”, recomenda.

Hábitos que podem contribuir para a saúde e a longevidade:

  • Montar pratos sempre coloridos, com mais frutas e verduras e menos alimentos ultraprocessados e ricos em gorduras saturadas;
  • Inserir oleaginosas como as nozes e amêndoas e azeite de oliva na dieta, que contém gorduras consideradas mais saudáveis;
  • Praticar exercícios regularmente;
  • Consumo moderado de bebidas alcoólicas;
  • Ter mecanismos alternativos de manejo do estresse, como horário fixo para parar de trabalhar e pausas previstas na rotina.

Já é senso comum acreditar que o consumo de uma taça de vinho por dia pode ser benéfico para o coração. Essa informação — que une o útil ao agradável — tem como base estudos que apontaram possíveis vantagens da bebida para a saúde cardíaca — e não são raras os trabalhos científicos que tentam avaliar se há algum efeito positivo do álcool para o nosso organismo. Mas será que dá para confiar nessas pesquisas?

Entre especialistas, há consenso de que provar definitivamente efeitos positivos da bebida para nosso organismo, sobretudo diante dos graves riscos da substância, ainda é algo distante. No início deste ano, a Federação Mundial de Cardiologia, por exemplo, divulgou documento em que alerta não haver nível seguro de álcool para o coração.

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo nocivo de álcool é apontado como fator causal de mais de 200 doenças e lesões. Além disso, a substância está por trás de mais de 3 milhões de mortes por ano ao redor do mundo, além de efeitos sociais e ligados à violência,

Especialistas ouvidos pelo Estadão ajudam a entender a discussão sobre possíveis benefícios e riscos das bebidas alcoólicas. Parte dos estudos, destacam, é preliminar, com número restrito de participantes ou até mesmo incluíram testes só com animais. Há ainda um problema comum que envolve a metodologia científica: é possível que outros hábitos do grupo pesquisado, e não o consumo de álcool, sejam responsáveis por um efeito protetivo ou positivo para a saúde.

Efeito protetor do vinho sobre o coração?

Muitos são os estudos que mencionam esse efeito nas últimas décadas. Em pesquisa publicada na revista científica Molecules em 2019, por exemplo, os autores sugerem que o vinho tinto poderia estar relacionado a um risco menor de desenvolver doença arterial coronária (DAC).

As evidências, descritas em estudos experimentais e meta-análises (técnica estatística que combina os resultados de estudos diferentes sobre um mesmo objeto de pesquisa), atribuem a ação protetora à presença de polifenóis como o resveratrol, molécula que tem ação antioxidante. Entre os benefícios estariam a redução da resistência à insulina e a diminuição do LDL, o “colesterol ruim”.

Antioxidantes, como o resveratrol, têm papel importante na ação contra os radicais livres produzidos pelo corpo que, em excesso, podem causar lesões celulares e favorecer o desenvolvimento de doenças como o Alzheimer e a aterosclerose. Apesar disso, relacionar o consumo de vinho a uma proteção significativa e garantida contra esses problemas pode ser um exagero.

“Há outras moléculas antioxidantes; por exemplo, sabemos que a vitamina C tem esse efeito, mas não dá para dizer que tudo se resolve com acerola”, exemplifica William Peres, conselheiro federal de Farmácia pelo Rio Grande do Sul e professor do Centro de Ciências Químicas, Farmacêuticas e de Alimentos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Substâncias antioxidantes presentes no vinho são apontadas em alguns estudos como responsáveis por benefícios para a saúde. Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Afirmações sobre os benefícios do vinho também contam com efeitos confundidores, já que hábitos e alimentação saudáveis podem ser responsáveis pela proteção cardiovascular atribuída ao consumo da bebida. Em países como França e Itália, de onde vem boa parte dos estudos que fazem essa associação, a dieta mediterrânea é conhecida por ser rica em alimentos frescos e antioxidantes, como azeite de oliva, oleaginosas, uvas e peixes.

“Como cardiologista, a gente nunca pode sugerir beber para ter um efeito benéfico”, destaca Fábio Fernandes, membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e diretor do grupo de miocardiopatias do Instituto do Coração (Incor HCFMUSP).

Artigo publicado no JAMA Network Open no início de 2022 apontou que não há nível de consumo de álcool totalmente seguro para o coração. O risco é pequeno quando as pessoas consomem, em média sete doses por semana, em comparação com nenhuma.

Mas, claro, a quantidade importa muito e, “na medida em que vai além das faixas mais moderadas, o risco aumenta bastante”, conforme Krishna G. Aragam, cardiologista do Massachusetts General Hospital (EUA) e um dos autores do estudo. O trabalho envolveu análises dos genes e dados médicos de quase 400 mil pessoas do UK Biobank, um repositório britânico, com idade média de 57 anos e consumo médio de 9,2 doses por semana.

Alguns cientistas relataram que o consumo com moderação protege o coração porque bebedores moderados, tomados em conjunto, têm menos doenças cardíacas do que quem bebe muito ou não bebe. Mas não é que o vinho ou a cerveja do fim de semana protege o coração.

Bebedores leves a moderados — até 14 doses por semana — tendem a ter outras características que diminuem seu risco, como fumar menos, se exercitar mais e pesar menos do que aqueles que bebem mais e os que não bebem. Segundo Aragam, porém, não se sabe por que bebedores moderados tendem a ser mais saudáveis do que as pessoas que não bebem.

Vinho contra covid-19?

A ação dos polifenóis presentes em vinhos também já foi relacionada à inibição das funções de vírus diferentes, incluindo o causador da covid-19. Estudo publicado no início do ano no periódico Frontiers of Nutrition apontou que pessoas que bebem vinho tinto, branco ou champanhe teriam menos riscos de contrair a doença. Em 2020, cientistas taiwaneses publicaram na American Journal of Cancer Research pesquisa que identificou que o polifenol tanino poderia ajudar a controlar a carga viral do Sars-CoV-2 comprometendo a atividade enzimática e impedindo sua entrada nas células.

De acordo com Alessandra Diehl, psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (Abead), é preciso ficar atento aos critérios usados pelos cientistas. Muitas vezes, explica, a metodologia não é especificada, deixando dúvidas sobre as medidas de controle, randomização (quando os elementos da amostra são selecionados aleatoriamente), fatores confundidores e sobre a existência de viés de confirmação (diferenças entre os grupos de comparação do estudo).

A pesquisa taiwanesa, por exemplo, foi realizada in vitro, com polifenóis isolados colocados em contato com o vírus no laboratório. “Isso acaba não sendo controlado. Aí alguns artigos têm falado que o uso em pequena quantidade, moderado, pode levar a um efeito protetor. Sou cética em acreditar que isso ocorra. Como sabemos, não existe nenhum consumo de álcool totalmente isento de riscos”, reforça.

Peres, da UFPel, destaca que muitos dos trabalhos envolvem somente testes com animais. “São trabalhos que precisam de muita pesquisa pela frente, uma análise continuada. Tem muito estudo que você vai ler e ele foi feito em moscas, por exemplo”, complementa.

O cardiologista Fábio Fernandes adiciona outro fator a ser considerado: a genética. “As pessoas metabolizam o álcool de formas diferentes. Um paciente diabético ou que tenha níveis de triglicérides altos terá alterações metabólicas importantes. Tem de individualizar cada caso”, pondera.

As pessoas metabolizam o álcool de formas diferentes. Um paciente diabético ou que tenha níveis de triglicérides altos terá alterações metabólicas importantes. Tem de individualizar cada caso”

Fábio Fernandes, cardiologista

Consumo diário reduz risco de demência?

Em setembro, a revista Addiction publicou um estudo australiano, que indica que beber até 40 g de álcool diariamente pode diminuir os riscos de demência em até 40%. Para se ter ideia, uma lata de cerveja contém cerca de 17 g de etanol.

Segundo os resultados, os grupos de indivíduos que disseram consumir bebidas alcoólicas do nível leve a moderado e moderado a pesado foram os que menos apresentaram doenças como o Alzheimer no decorrer do estudo.

Estudo feito por pesquisadores australianos associou o consumo diário de álcool à menor probabilidade de desenvolver demência em pessoas com mais de 60 anos. Foto: Todd Heisler/The New York Times

Para Alessandra Diehl, presidente da Abead, são dados controversos quando comparados com aqueles obtidos no cotidiano da medicina. Na prática clínica, ela afirma que os efeitos neurotóxicos do álcool têm sido, na verdade, um fator de risco para quadros como demência e declínio cognitivo, associado a alterações estruturais do cérebro. “Esse consumo também pode piorar outras comorbidades como depressão, ansiedade e até evoluir para um padrão de alcoolismo propriamente dito, que tem suas repercussões sociais, psicológicas, familiares e intrapessoais”, destaca.

Esse consumo também pode piorar outras comorbidades como depressão, ansiedade e até evoluir para um padrão de alcoolismo propriamente dito, que tem suas repercussões sociais, psicológicas, familiares e intrapessoais”

Alessandra Diehl, presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas

Problemas de saúde influenciados pelo consumo de álcool:

  • Doenças cardiovasculares como insuficiência cardíaca, hipertensão, arritmia, diabete, cardiopatia alcoólica (que enfraquece o músculo cardíaco e sua capacidade de bombear sangue) e síndrome metabólica;
  • Cirrose hepática;
  • Pancreatite crônica;
  • Desnutrição e falta de substâncias como vitamina B1, fosfato e zinco;
  • Perda de memória recente;
  • Dependência química (alcoolismo);
  • Síndrome alcoólica fetal, que desencadeia alterações neurocognitivas e físicas para a criança, como atrofia muscular, perda de coordenação motora, paralisia cerebral e microcefalia;
  • Agravamento de condições como depressão e ansiedade;
  • Aumento dos riscos de desenvolver câncer;
  • Ferimentos e mortes derivados de acidentes automobilísticos ou violência interpessoal.

Não se pode confiar em estudos?

Os especialistas concordam que, diferentemente do que às vezes é divulgado, não é recomendado ver o consumo de bebidas alcoólicas como um aliado da longevidade. William Peres explica que os fatores que podem fazer com que uma pessoa viva mais estão principalmente atrelados a sua carga genética, comportamento alimentar, prática de exercício, estilo de vida e a maneira com que maneja o estresse.

Para a psiquiatra Alessandra Diehl, é preocupante usar informações científicas fora de contexto ou situações episódicas como modelo. Segundo ela, muitas vezes circulam na mídia “exemplos isolados como o da rainha (britânica) Elizabeth, que bebeu um cálice de certa bebida durante toda a sua vida”, mas isso não significa que isso seja uma receita para viver tanto quanto ela, que morreu em setembro aos 96 anos.

Em pessoas com hábitos saudáveis, atribuir as boas condições de saúde ao consumo diário de álcool pode distorcer a relação entre a longevidade e os fatores que a favorecem Foto: Reuters

O aumento do consumo entre mulheres, inclusive, tem preocupado especialistas. De 2010 a 2019, a proporção de mulheres de 18 a 24 anos que disseram fazer uso abusivo de álcool no Brasil aumentou de 14,9% para 23%, segundo o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel).

E, para piorar, o País tem visto esse contato com as bebidas começar cada vez mais cedo. Conforme a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019, que ouviu estudantes do 7º ano do ensino fundamental ao 3º ano do médio, 63,3% dos alunos já haviam consumido bebidas alcoólicas – 34,6% quando tinham menos de 14 anos.

Diante disso, o diretor do grupo de miocardiopatias do InCor, Fábio Fernandes, classifica como preocupante dizer que o álcool em quantidade pode prevenir problemas de saúde. “Menos de 100 ml de vinho por dia em indivíduos com mais de 40 anos não causam um fator negativo, mas é melhor deixar para o fim de semana”, recomenda.

Hábitos que podem contribuir para a saúde e a longevidade:

  • Montar pratos sempre coloridos, com mais frutas e verduras e menos alimentos ultraprocessados e ricos em gorduras saturadas;
  • Inserir oleaginosas como as nozes e amêndoas e azeite de oliva na dieta, que contém gorduras consideradas mais saudáveis;
  • Praticar exercícios regularmente;
  • Consumo moderado de bebidas alcoólicas;
  • Ter mecanismos alternativos de manejo do estresse, como horário fixo para parar de trabalhar e pausas previstas na rotina.

Já é senso comum acreditar que o consumo de uma taça de vinho por dia pode ser benéfico para o coração. Essa informação — que une o útil ao agradável — tem como base estudos que apontaram possíveis vantagens da bebida para a saúde cardíaca — e não são raras os trabalhos científicos que tentam avaliar se há algum efeito positivo do álcool para o nosso organismo. Mas será que dá para confiar nessas pesquisas?

Entre especialistas, há consenso de que provar definitivamente efeitos positivos da bebida para nosso organismo, sobretudo diante dos graves riscos da substância, ainda é algo distante. No início deste ano, a Federação Mundial de Cardiologia, por exemplo, divulgou documento em que alerta não haver nível seguro de álcool para o coração.

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo nocivo de álcool é apontado como fator causal de mais de 200 doenças e lesões. Além disso, a substância está por trás de mais de 3 milhões de mortes por ano ao redor do mundo, além de efeitos sociais e ligados à violência,

Especialistas ouvidos pelo Estadão ajudam a entender a discussão sobre possíveis benefícios e riscos das bebidas alcoólicas. Parte dos estudos, destacam, é preliminar, com número restrito de participantes ou até mesmo incluíram testes só com animais. Há ainda um problema comum que envolve a metodologia científica: é possível que outros hábitos do grupo pesquisado, e não o consumo de álcool, sejam responsáveis por um efeito protetivo ou positivo para a saúde.

Efeito protetor do vinho sobre o coração?

Muitos são os estudos que mencionam esse efeito nas últimas décadas. Em pesquisa publicada na revista científica Molecules em 2019, por exemplo, os autores sugerem que o vinho tinto poderia estar relacionado a um risco menor de desenvolver doença arterial coronária (DAC).

As evidências, descritas em estudos experimentais e meta-análises (técnica estatística que combina os resultados de estudos diferentes sobre um mesmo objeto de pesquisa), atribuem a ação protetora à presença de polifenóis como o resveratrol, molécula que tem ação antioxidante. Entre os benefícios estariam a redução da resistência à insulina e a diminuição do LDL, o “colesterol ruim”.

Antioxidantes, como o resveratrol, têm papel importante na ação contra os radicais livres produzidos pelo corpo que, em excesso, podem causar lesões celulares e favorecer o desenvolvimento de doenças como o Alzheimer e a aterosclerose. Apesar disso, relacionar o consumo de vinho a uma proteção significativa e garantida contra esses problemas pode ser um exagero.

“Há outras moléculas antioxidantes; por exemplo, sabemos que a vitamina C tem esse efeito, mas não dá para dizer que tudo se resolve com acerola”, exemplifica William Peres, conselheiro federal de Farmácia pelo Rio Grande do Sul e professor do Centro de Ciências Químicas, Farmacêuticas e de Alimentos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Substâncias antioxidantes presentes no vinho são apontadas em alguns estudos como responsáveis por benefícios para a saúde. Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Afirmações sobre os benefícios do vinho também contam com efeitos confundidores, já que hábitos e alimentação saudáveis podem ser responsáveis pela proteção cardiovascular atribuída ao consumo da bebida. Em países como França e Itália, de onde vem boa parte dos estudos que fazem essa associação, a dieta mediterrânea é conhecida por ser rica em alimentos frescos e antioxidantes, como azeite de oliva, oleaginosas, uvas e peixes.

“Como cardiologista, a gente nunca pode sugerir beber para ter um efeito benéfico”, destaca Fábio Fernandes, membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e diretor do grupo de miocardiopatias do Instituto do Coração (Incor HCFMUSP).

Artigo publicado no JAMA Network Open no início de 2022 apontou que não há nível de consumo de álcool totalmente seguro para o coração. O risco é pequeno quando as pessoas consomem, em média sete doses por semana, em comparação com nenhuma.

Mas, claro, a quantidade importa muito e, “na medida em que vai além das faixas mais moderadas, o risco aumenta bastante”, conforme Krishna G. Aragam, cardiologista do Massachusetts General Hospital (EUA) e um dos autores do estudo. O trabalho envolveu análises dos genes e dados médicos de quase 400 mil pessoas do UK Biobank, um repositório britânico, com idade média de 57 anos e consumo médio de 9,2 doses por semana.

Alguns cientistas relataram que o consumo com moderação protege o coração porque bebedores moderados, tomados em conjunto, têm menos doenças cardíacas do que quem bebe muito ou não bebe. Mas não é que o vinho ou a cerveja do fim de semana protege o coração.

Bebedores leves a moderados — até 14 doses por semana — tendem a ter outras características que diminuem seu risco, como fumar menos, se exercitar mais e pesar menos do que aqueles que bebem mais e os que não bebem. Segundo Aragam, porém, não se sabe por que bebedores moderados tendem a ser mais saudáveis do que as pessoas que não bebem.

Vinho contra covid-19?

A ação dos polifenóis presentes em vinhos também já foi relacionada à inibição das funções de vírus diferentes, incluindo o causador da covid-19. Estudo publicado no início do ano no periódico Frontiers of Nutrition apontou que pessoas que bebem vinho tinto, branco ou champanhe teriam menos riscos de contrair a doença. Em 2020, cientistas taiwaneses publicaram na American Journal of Cancer Research pesquisa que identificou que o polifenol tanino poderia ajudar a controlar a carga viral do Sars-CoV-2 comprometendo a atividade enzimática e impedindo sua entrada nas células.

De acordo com Alessandra Diehl, psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (Abead), é preciso ficar atento aos critérios usados pelos cientistas. Muitas vezes, explica, a metodologia não é especificada, deixando dúvidas sobre as medidas de controle, randomização (quando os elementos da amostra são selecionados aleatoriamente), fatores confundidores e sobre a existência de viés de confirmação (diferenças entre os grupos de comparação do estudo).

A pesquisa taiwanesa, por exemplo, foi realizada in vitro, com polifenóis isolados colocados em contato com o vírus no laboratório. “Isso acaba não sendo controlado. Aí alguns artigos têm falado que o uso em pequena quantidade, moderado, pode levar a um efeito protetor. Sou cética em acreditar que isso ocorra. Como sabemos, não existe nenhum consumo de álcool totalmente isento de riscos”, reforça.

Peres, da UFPel, destaca que muitos dos trabalhos envolvem somente testes com animais. “São trabalhos que precisam de muita pesquisa pela frente, uma análise continuada. Tem muito estudo que você vai ler e ele foi feito em moscas, por exemplo”, complementa.

O cardiologista Fábio Fernandes adiciona outro fator a ser considerado: a genética. “As pessoas metabolizam o álcool de formas diferentes. Um paciente diabético ou que tenha níveis de triglicérides altos terá alterações metabólicas importantes. Tem de individualizar cada caso”, pondera.

As pessoas metabolizam o álcool de formas diferentes. Um paciente diabético ou que tenha níveis de triglicérides altos terá alterações metabólicas importantes. Tem de individualizar cada caso”

Fábio Fernandes, cardiologista

Consumo diário reduz risco de demência?

Em setembro, a revista Addiction publicou um estudo australiano, que indica que beber até 40 g de álcool diariamente pode diminuir os riscos de demência em até 40%. Para se ter ideia, uma lata de cerveja contém cerca de 17 g de etanol.

Segundo os resultados, os grupos de indivíduos que disseram consumir bebidas alcoólicas do nível leve a moderado e moderado a pesado foram os que menos apresentaram doenças como o Alzheimer no decorrer do estudo.

Estudo feito por pesquisadores australianos associou o consumo diário de álcool à menor probabilidade de desenvolver demência em pessoas com mais de 60 anos. Foto: Todd Heisler/The New York Times

Para Alessandra Diehl, presidente da Abead, são dados controversos quando comparados com aqueles obtidos no cotidiano da medicina. Na prática clínica, ela afirma que os efeitos neurotóxicos do álcool têm sido, na verdade, um fator de risco para quadros como demência e declínio cognitivo, associado a alterações estruturais do cérebro. “Esse consumo também pode piorar outras comorbidades como depressão, ansiedade e até evoluir para um padrão de alcoolismo propriamente dito, que tem suas repercussões sociais, psicológicas, familiares e intrapessoais”, destaca.

Esse consumo também pode piorar outras comorbidades como depressão, ansiedade e até evoluir para um padrão de alcoolismo propriamente dito, que tem suas repercussões sociais, psicológicas, familiares e intrapessoais”

Alessandra Diehl, presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas

Problemas de saúde influenciados pelo consumo de álcool:

  • Doenças cardiovasculares como insuficiência cardíaca, hipertensão, arritmia, diabete, cardiopatia alcoólica (que enfraquece o músculo cardíaco e sua capacidade de bombear sangue) e síndrome metabólica;
  • Cirrose hepática;
  • Pancreatite crônica;
  • Desnutrição e falta de substâncias como vitamina B1, fosfato e zinco;
  • Perda de memória recente;
  • Dependência química (alcoolismo);
  • Síndrome alcoólica fetal, que desencadeia alterações neurocognitivas e físicas para a criança, como atrofia muscular, perda de coordenação motora, paralisia cerebral e microcefalia;
  • Agravamento de condições como depressão e ansiedade;
  • Aumento dos riscos de desenvolver câncer;
  • Ferimentos e mortes derivados de acidentes automobilísticos ou violência interpessoal.

Não se pode confiar em estudos?

Os especialistas concordam que, diferentemente do que às vezes é divulgado, não é recomendado ver o consumo de bebidas alcoólicas como um aliado da longevidade. William Peres explica que os fatores que podem fazer com que uma pessoa viva mais estão principalmente atrelados a sua carga genética, comportamento alimentar, prática de exercício, estilo de vida e a maneira com que maneja o estresse.

Para a psiquiatra Alessandra Diehl, é preocupante usar informações científicas fora de contexto ou situações episódicas como modelo. Segundo ela, muitas vezes circulam na mídia “exemplos isolados como o da rainha (britânica) Elizabeth, que bebeu um cálice de certa bebida durante toda a sua vida”, mas isso não significa que isso seja uma receita para viver tanto quanto ela, que morreu em setembro aos 96 anos.

Em pessoas com hábitos saudáveis, atribuir as boas condições de saúde ao consumo diário de álcool pode distorcer a relação entre a longevidade e os fatores que a favorecem Foto: Reuters

O aumento do consumo entre mulheres, inclusive, tem preocupado especialistas. De 2010 a 2019, a proporção de mulheres de 18 a 24 anos que disseram fazer uso abusivo de álcool no Brasil aumentou de 14,9% para 23%, segundo o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel).

E, para piorar, o País tem visto esse contato com as bebidas começar cada vez mais cedo. Conforme a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019, que ouviu estudantes do 7º ano do ensino fundamental ao 3º ano do médio, 63,3% dos alunos já haviam consumido bebidas alcoólicas – 34,6% quando tinham menos de 14 anos.

Diante disso, o diretor do grupo de miocardiopatias do InCor, Fábio Fernandes, classifica como preocupante dizer que o álcool em quantidade pode prevenir problemas de saúde. “Menos de 100 ml de vinho por dia em indivíduos com mais de 40 anos não causam um fator negativo, mas é melhor deixar para o fim de semana”, recomenda.

Hábitos que podem contribuir para a saúde e a longevidade:

  • Montar pratos sempre coloridos, com mais frutas e verduras e menos alimentos ultraprocessados e ricos em gorduras saturadas;
  • Inserir oleaginosas como as nozes e amêndoas e azeite de oliva na dieta, que contém gorduras consideradas mais saudáveis;
  • Praticar exercícios regularmente;
  • Consumo moderado de bebidas alcoólicas;
  • Ter mecanismos alternativos de manejo do estresse, como horário fixo para parar de trabalhar e pausas previstas na rotina.

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