Bets e Tigrinho: Quase 450 milhões no mundo sofrem danos relacionados a jogos de azar


46,2% dos adultos e 17,9% dos adolescentes apostaram no último ano, alertam cientistas em relatório global

Por Leon Ferrari
Atualização:

Os danos dos jogos de azar são mais substanciais e abrangentes do que se imaginava e configuram grave problema de saúde pública, de acordo com o relatório de uma comissão de especialistas reunidos pela revista científica The Lancet Public Health.

Os estudiosos avaliaram centenas de estudos e analisaram os resultados deles — o que é chamado de meta-análise, o padrão-ouro da evidência científica — para chegar a estimativas globais do impacto do jogo de azar na saúde pública.

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Eles estimaram que aproximadamente 448,7 milhões de adultos em todo o mundo experimentam algum risco de jogo (any risk gambling, em inglês). Pessoas nessa categoria enfrentam pelo menos um sintoma comportamental ou consequência pessoal, social ou de saúde adversa do jogo de azar, sem necessariamente completar os requisitos diagnósticos para transtorno do jogo.

Desses, 80 milhões possuem transtorno do jogo, reconhecido em manuais de psiquiatria e descrito como um padrão de apostas repetidas e que continuam apesar de criar múltiplos problemas em várias áreas da vida.

Apesar de plataformas terem idade mínima, adolescentes integram o grupo de jogadores Foto: AA+W/Adobe Stock
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De acordo com os pesquisadores, esses danos incluem problemas de saúde física e mental, ruptura de relacionamentos, aumento do risco de suicídio e violência doméstica — tanto de ser o agressor, quanto de ser a vítima —, aumento da criminalidade, perda de emprego e prejuízos financeiros. E eles não se restringem ao apostador em si. Pelo menos seis outras pessoas, em média, são negativamente afetadas por um indivíduo com transtorno do jogo.

Os pesquisadores destacam, porém, que essas estimativas são conservadoras, já que muitos países não têm sequer dados sobre o assunto — em especial os de baixa e média renda, que tendem a ser desproporcionalmente afetados por problemas como esse.

É por isso que o relatório pede aos governos, que cada vez mais têm legalizado os jogos de azar, que assumam o compromisso de financiar estudos e fornecer dados.

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“Um sistema de monitoramento sofisticado teria métricas integradas de diversas fontes. Por exemplo, teríamos dados de sistemas de saúde sobre o número de pessoas que procuram apoio por danos relacionados ao jogo; dados rotineiros sobre o quanto o jogo está implicado em suicídios; dados do sistema de justiça sobre se o jogo é um fator entre aqueles envolvidos no sistema de justiça criminal”, fala Heather Wardle, professora da Universidade de Glasgow, na Escócia, e uma das autoras do relatório da Lancet, publicado na noite de quinta-feira, 24.

“Também seria necessário um mecanismo para acessar dados da indústria de forma independente, sem que ela tenha influência sobre quais pesquisas são realizadas”, diz Heather, em entrevista por e-mail ao Estadão.

Alerta para o mundo

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“A necessidade de mais pesquisas pode ser explorada pela indústria para fins táticos, principalmente para atrasar a ação. Os atores da saúde pública precisam aprimorar seu próprio manual para combater essa tática”, alerta Antonio Carlos Cruz Freire, professor do departamento de Neurociências e Saúde Mental da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Freire lembra ainda dos princípios de precaução que devem reger a saúde pública: “Tomar medidas preventivas diante da incerteza; transferir o ônus da prova para os proponentes de uma atividade; explorar uma ampla gama de alternativas a ações possivelmente prejudiciais; e aumentar a participação pública na tomada de decisões”. Ele não participou do relatório.

Para o psiquiatra Rodrigo Machado, médico colaborador do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), o relatório é “um grande sinalizador de alerta” ao mostrar que os jogos de azar são um problema global e que a maneira como têm sido enfrentados é insuficiente.

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Machado, que não esteve envolvido na produção do documento, defende que as políticas de prevenção têm de focar toda a população, não mais um grupo aparentemente nichado. “O que o relatório fala é que toda a população do globo está suscetível e vulnerável (a danos do jogo de azar).”

Nesse sentido, a introdução do conceito de any risk gambling passa uma mensagem importante: os danos não se restringem a pessoas com transtorno do jogo, e estão presentes ao longo de todo o espectro de consumo. Isso coloca em xeque as legislações pelo mundo, que, conforme mostrou o Estadão, têm um foco excessivamente individual, baseado na narrativa do “jogo responsável”.

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Projetados para o risco

O relatório também aponta que olhar para estimativas populacionais do transtorno de jogo pode mascarar a real dimensão do problema. Os estudiosos propõem um olhar mais específico para os diferentes tipos de jogo de azar e como eles afetam seus consumidores. Por essa análise, 15,8% dos adultos e 26,4% dos adolescentes que estiveram envolvidos em atividades de cassino online, como o Jogo do Tigrinho, no ano passado experienciaram transtorno do jogo. Para as bets ou apostas esportivas, essas taxas são de 8,9% dos adultos e 16,3% dos adolescentes.

Em relação ao impacto, os pesquisadores alertam que a digitalização da indústria de apostas mudou o jogo — literal e metaforicamente — e agora as pessoas podem ter uma caça-níquel 24h por dia, sete dias por semana, no bolso. Os riscos disso ainda não são totalmente conhecidos, mas alguns já vieram à tona: “Os produtos de jogos de azar online são projetados para serem rápidos e intensivos, características associadas a um maior risco de danos aos consumidores”, diz o documento.

“Aproveitando as infraestruturas digitais online e os dados de vigilância, as empresas de jogos de azar agora possuem capacidades sem precedentes para direcionar consumidores, incluindo o uso de redes sociais e influenciadores para engajar indivíduos, além de dados de usuários online para personalizar o marketing, vender produtos cruzados e prolongar o engajamento dos usuários”, acrescenta.

Esse engajamento dialoga com o recrutamento excessivo do sistema de recompensa, outro fator preocupante das dependências comportamentais — os comportamentos geradores de prazer que podem adoecer o cérebro—, como as apostas online.

“As pessoas que têm compulsão alimentar não vão ter compulsão por brócolis, mas por carboidrato simples, como o açúcar, que traz muito mais ativação do sistema de recompensa cerebral. O mesmo se refere ao jogo de azar”, compara Machado.

“A gente pode ficar dependente da loteria tradicional? Até pode, mas sabemos que os comportamentos mais sedutores dentro do espectro dos jogos de azar são os que trazem uma frequência de apostas maior, ou seja, o espaçamento entre o ato de apostar e resultado final é encurtado, o que traz uma hiperestimulação do sistema de recompensa.”

Adolescentes e ‘um famoso jogador brasileiro’

Enquanto 46,2% dos adultos no mundo se envolveram em atividades de jogo no período de 12 meses, de acordo com o relatório, 17,9% dos adolescentes fizeram o mesmo, apesar de os produtos teoricamente serem restritos por idade. Isso equivaleria a aproximadamente 159,6 milhões de jovens jogando no último ano. Deles, 10,3% relataram ter jogado online e 9,1% relataram apostar em esportes.

Devido à escassez de estudos, os pesquisadores não apresentam estimativas globais para qualquer dano de jogo ou transtorno do jogo em adolescentes. “As taxas de jogo problemático ou transtorno do jogo variaram de 0,5% para meninas e 4,7% para meninos na Europa Ocidental, a 4,9% para meninas e 14,5% para meninos na América do Norte”, afirmam.

Para eles, a exposição às mensagens da indústria e à publicidade de produtos influencia a propensão dos jovens a jogar e normaliza o jogo dentro de seus grupos. “O efeito é especialmente forte entre os fãs de esportes”, escrevem.

46,2% dos adultos no mundo se envolveram em atividades de jogo em um período de 12 meses, segundo o relatório Foto: REDPIXEL/Adobe Stock

Além das parcerias com o setor esportivo, os cientistas apontam uma estratégia de patrocínio com influenciadores digitais, “particularmente visíveis para crianças e jovens”. “O marketing de influenciadores é particularmente prevalente na promoção de apostas esportivas, onde os limites entre conteúdo promocional e de entretenimento são frequentemente obscuros.”

Eles destacam a cultura do streaming em espaços como o Twitch, no qual jovens assistem a transmissões de influenciadores jogando, e citam um “famoso jogador de futebol brasileiro” que fazia lives de apostas, apesar de a plataforma ter dito não permitir esse tipo de atividade. Os jogos não são necessariamente de azar, dizem os cientistas, mas as distinções estão cada dia mais difíceis (leia mais abaixo).

Também em outras redes sociais, os jovens costumam interagir com as marcas e influenciadores ligados a elas. Um estudo no Reino Unido descobriu que 317 (28%) das 1.132 crianças com menos de 16 anos interagiram com a publicidade de jogos de e-sports no Twitter, por exemplo.

Minoria crucial

Outro destaque do relatório é o que os pesquisadores chamam de “vital few” (minoria crucial, numa tradução livre): o modelo de negócio da indústria do azar depende desproporcionalmente de uma pequena parcela de usuários que consome uma porção substancial dos produtos e gera a maior parte dos lucros.

“O chamado ‘excedente da dependência’ é particularmente evidente em relação aos produtos e formatos de jogo mais prejudiciais, incluindo, mas não se limitando a, máquinas de jogo eletrônicas e jogos de estilo cassino — especialmente as versões online”, apontam.

Segundo o relatório, no Canadá, os 20% mais ativos entre os apostadores representam 92% das apostas esportivas ou 90% da atividade de cassino online. Nos EUA, 5,7% das pessoas que apostam em bets e 4,9% dos jogadores em cassinos online representam 80% da receita nos dois ramos.

As pessoas desse “vital few”, em geral, são indivíduos socioeconomicamente desfavorecidos, com menos condições financeiras de suportar perdas, afirmam os cientistas.

“Governos que apoiam a expansão do jogo comercial raramente reconhecem as possíveis desigualdades regressivas na geração de receitas de jogo de azar e tendem a ignorar como o crescimento do jogo pode agravar a desigualdade social ao gerar lucros corporativos às custas dos indivíduos mais propensos a sofrer danos”, critica o relatório, em linha com outros pesquisadores que denunciam a irresponsabilidade das corporações.

O documento menciona ainda um “paradoxo dos danos do jogo de azar”, no qual grupos específicos, menos propensos a se envolver com apostas, são mais propensos a sofrer consequências adversas se o fizerem. “No Reino Unido, esse paradoxo potencial foi destacado para indivíduos em grupos etários jovens, incluindo indivíduos de 18 a 24 anos, indivíduos de grupos étnicos não brancos, incluindo migrantes, e indivíduos com saúde mental e bem-estar precários”, comentam.

Linha tênue

Os pesquisadores alertam que a distinção entre os videogames ou jogos online e os jogos de azar se tornou “nebulosa”. “Elementos de jogos de azar foram incorporados em jogos online, expondo ainda mais crianças e adolescentes a atividades de jogo ou similares a jogo.”

Eles apresentam dois exemplos. O primeiro são as loot boxes, comuns em jogos de celular, em que é possível usar dinheiro real ou “moedas” coletadas no universo do jogo em troca de uma caixa-surpresa com uma recompensa aleatória.

O outro recurso é o de “aposta em skins”, que envolve itens de personalização de uma personagem do jogo (skins). “Um estudo longitudinal de jovens adultos descobriu que a aposta em skins estava fortemente associada à continuidade no longo prazo de comportamentos problemáticos de jogo.”

Recomendações

O relatório é permeado de recomendações. Abaixo, estão as principais para países onde os jogos de azar estão sendo regulamentados:

  • As jurisdições que permitem o jogo de azar precisam de um órgão regulador bem financiado, independente e devidamente capacitado, focado na proteção da saúde pública e do bem-estar;
  • Proteção de crianças e adolescentes contra o jogo de azar;
  • Implementação de medidas eficazes de proteção ao consumidor, como sistemas universais de autoexclusão e registro de usuários;
  • Regulamentação de produtos de forma proporcional ao risco de danos, com base em suas características;
  • Adoção de medidas obrigatórias para limitar o consumo de jogos de azar, como limites de depósito e apostas aplicáveis e sistemas de pré-compromisso universais.

O relatório tem um foco global, mas as medidas também devem respeitar e considerar diferenças culturais e regionais.

“No Brasil, o avanço na proteção da saúde mental da população frente aos jogos de azar é bastante incipiente. Apesar de algumas autoridades políticas começarem a abordar o tema como um problema de saúde pública, na prática a responsabilização recai sobre o indivíduo”, avalia Freire.

Machado também considera que o Brasil está “atrasado” na discussão do jogo de azar enquanto problema de saúde pública. Para ele, o mais urgente é reunir uma comissão com representantes de várias esferas, incluindo especialistas em saúde, para avaliar e eleger medidas para lidar com o tema.

Embora o problema seja grave, ele aponta que a resolução é possível e lembra o sucesso do Brasil na redução do tabagismo. “É um exemplo muito claro do quanto políticas populacionais de saúde, de maneira macro, como essas que o relatório discute, foram bem-sucedidas, o quanto a gente conseguiu desidratar o acesso da população ao cigarro e diminuir o adoecimento.”

Os danos dos jogos de azar são mais substanciais e abrangentes do que se imaginava e configuram grave problema de saúde pública, de acordo com o relatório de uma comissão de especialistas reunidos pela revista científica The Lancet Public Health.

Os estudiosos avaliaram centenas de estudos e analisaram os resultados deles — o que é chamado de meta-análise, o padrão-ouro da evidência científica — para chegar a estimativas globais do impacto do jogo de azar na saúde pública.

Eles estimaram que aproximadamente 448,7 milhões de adultos em todo o mundo experimentam algum risco de jogo (any risk gambling, em inglês). Pessoas nessa categoria enfrentam pelo menos um sintoma comportamental ou consequência pessoal, social ou de saúde adversa do jogo de azar, sem necessariamente completar os requisitos diagnósticos para transtorno do jogo.

Desses, 80 milhões possuem transtorno do jogo, reconhecido em manuais de psiquiatria e descrito como um padrão de apostas repetidas e que continuam apesar de criar múltiplos problemas em várias áreas da vida.

Apesar de plataformas terem idade mínima, adolescentes integram o grupo de jogadores Foto: AA+W/Adobe Stock

De acordo com os pesquisadores, esses danos incluem problemas de saúde física e mental, ruptura de relacionamentos, aumento do risco de suicídio e violência doméstica — tanto de ser o agressor, quanto de ser a vítima —, aumento da criminalidade, perda de emprego e prejuízos financeiros. E eles não se restringem ao apostador em si. Pelo menos seis outras pessoas, em média, são negativamente afetadas por um indivíduo com transtorno do jogo.

Os pesquisadores destacam, porém, que essas estimativas são conservadoras, já que muitos países não têm sequer dados sobre o assunto — em especial os de baixa e média renda, que tendem a ser desproporcionalmente afetados por problemas como esse.

É por isso que o relatório pede aos governos, que cada vez mais têm legalizado os jogos de azar, que assumam o compromisso de financiar estudos e fornecer dados.

“Um sistema de monitoramento sofisticado teria métricas integradas de diversas fontes. Por exemplo, teríamos dados de sistemas de saúde sobre o número de pessoas que procuram apoio por danos relacionados ao jogo; dados rotineiros sobre o quanto o jogo está implicado em suicídios; dados do sistema de justiça sobre se o jogo é um fator entre aqueles envolvidos no sistema de justiça criminal”, fala Heather Wardle, professora da Universidade de Glasgow, na Escócia, e uma das autoras do relatório da Lancet, publicado na noite de quinta-feira, 24.

“Também seria necessário um mecanismo para acessar dados da indústria de forma independente, sem que ela tenha influência sobre quais pesquisas são realizadas”, diz Heather, em entrevista por e-mail ao Estadão.

Alerta para o mundo

“A necessidade de mais pesquisas pode ser explorada pela indústria para fins táticos, principalmente para atrasar a ação. Os atores da saúde pública precisam aprimorar seu próprio manual para combater essa tática”, alerta Antonio Carlos Cruz Freire, professor do departamento de Neurociências e Saúde Mental da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Freire lembra ainda dos princípios de precaução que devem reger a saúde pública: “Tomar medidas preventivas diante da incerteza; transferir o ônus da prova para os proponentes de uma atividade; explorar uma ampla gama de alternativas a ações possivelmente prejudiciais; e aumentar a participação pública na tomada de decisões”. Ele não participou do relatório.

Para o psiquiatra Rodrigo Machado, médico colaborador do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), o relatório é “um grande sinalizador de alerta” ao mostrar que os jogos de azar são um problema global e que a maneira como têm sido enfrentados é insuficiente.

Machado, que não esteve envolvido na produção do documento, defende que as políticas de prevenção têm de focar toda a população, não mais um grupo aparentemente nichado. “O que o relatório fala é que toda a população do globo está suscetível e vulnerável (a danos do jogo de azar).”

Nesse sentido, a introdução do conceito de any risk gambling passa uma mensagem importante: os danos não se restringem a pessoas com transtorno do jogo, e estão presentes ao longo de todo o espectro de consumo. Isso coloca em xeque as legislações pelo mundo, que, conforme mostrou o Estadão, têm um foco excessivamente individual, baseado na narrativa do “jogo responsável”.

Projetados para o risco

O relatório também aponta que olhar para estimativas populacionais do transtorno de jogo pode mascarar a real dimensão do problema. Os estudiosos propõem um olhar mais específico para os diferentes tipos de jogo de azar e como eles afetam seus consumidores. Por essa análise, 15,8% dos adultos e 26,4% dos adolescentes que estiveram envolvidos em atividades de cassino online, como o Jogo do Tigrinho, no ano passado experienciaram transtorno do jogo. Para as bets ou apostas esportivas, essas taxas são de 8,9% dos adultos e 16,3% dos adolescentes.

Em relação ao impacto, os pesquisadores alertam que a digitalização da indústria de apostas mudou o jogo — literal e metaforicamente — e agora as pessoas podem ter uma caça-níquel 24h por dia, sete dias por semana, no bolso. Os riscos disso ainda não são totalmente conhecidos, mas alguns já vieram à tona: “Os produtos de jogos de azar online são projetados para serem rápidos e intensivos, características associadas a um maior risco de danos aos consumidores”, diz o documento.

“Aproveitando as infraestruturas digitais online e os dados de vigilância, as empresas de jogos de azar agora possuem capacidades sem precedentes para direcionar consumidores, incluindo o uso de redes sociais e influenciadores para engajar indivíduos, além de dados de usuários online para personalizar o marketing, vender produtos cruzados e prolongar o engajamento dos usuários”, acrescenta.

Esse engajamento dialoga com o recrutamento excessivo do sistema de recompensa, outro fator preocupante das dependências comportamentais — os comportamentos geradores de prazer que podem adoecer o cérebro—, como as apostas online.

“As pessoas que têm compulsão alimentar não vão ter compulsão por brócolis, mas por carboidrato simples, como o açúcar, que traz muito mais ativação do sistema de recompensa cerebral. O mesmo se refere ao jogo de azar”, compara Machado.

“A gente pode ficar dependente da loteria tradicional? Até pode, mas sabemos que os comportamentos mais sedutores dentro do espectro dos jogos de azar são os que trazem uma frequência de apostas maior, ou seja, o espaçamento entre o ato de apostar e resultado final é encurtado, o que traz uma hiperestimulação do sistema de recompensa.”

Adolescentes e ‘um famoso jogador brasileiro’

Enquanto 46,2% dos adultos no mundo se envolveram em atividades de jogo no período de 12 meses, de acordo com o relatório, 17,9% dos adolescentes fizeram o mesmo, apesar de os produtos teoricamente serem restritos por idade. Isso equivaleria a aproximadamente 159,6 milhões de jovens jogando no último ano. Deles, 10,3% relataram ter jogado online e 9,1% relataram apostar em esportes.

Devido à escassez de estudos, os pesquisadores não apresentam estimativas globais para qualquer dano de jogo ou transtorno do jogo em adolescentes. “As taxas de jogo problemático ou transtorno do jogo variaram de 0,5% para meninas e 4,7% para meninos na Europa Ocidental, a 4,9% para meninas e 14,5% para meninos na América do Norte”, afirmam.

Para eles, a exposição às mensagens da indústria e à publicidade de produtos influencia a propensão dos jovens a jogar e normaliza o jogo dentro de seus grupos. “O efeito é especialmente forte entre os fãs de esportes”, escrevem.

46,2% dos adultos no mundo se envolveram em atividades de jogo em um período de 12 meses, segundo o relatório Foto: REDPIXEL/Adobe Stock

Além das parcerias com o setor esportivo, os cientistas apontam uma estratégia de patrocínio com influenciadores digitais, “particularmente visíveis para crianças e jovens”. “O marketing de influenciadores é particularmente prevalente na promoção de apostas esportivas, onde os limites entre conteúdo promocional e de entretenimento são frequentemente obscuros.”

Eles destacam a cultura do streaming em espaços como o Twitch, no qual jovens assistem a transmissões de influenciadores jogando, e citam um “famoso jogador de futebol brasileiro” que fazia lives de apostas, apesar de a plataforma ter dito não permitir esse tipo de atividade. Os jogos não são necessariamente de azar, dizem os cientistas, mas as distinções estão cada dia mais difíceis (leia mais abaixo).

Também em outras redes sociais, os jovens costumam interagir com as marcas e influenciadores ligados a elas. Um estudo no Reino Unido descobriu que 317 (28%) das 1.132 crianças com menos de 16 anos interagiram com a publicidade de jogos de e-sports no Twitter, por exemplo.

Minoria crucial

Outro destaque do relatório é o que os pesquisadores chamam de “vital few” (minoria crucial, numa tradução livre): o modelo de negócio da indústria do azar depende desproporcionalmente de uma pequena parcela de usuários que consome uma porção substancial dos produtos e gera a maior parte dos lucros.

“O chamado ‘excedente da dependência’ é particularmente evidente em relação aos produtos e formatos de jogo mais prejudiciais, incluindo, mas não se limitando a, máquinas de jogo eletrônicas e jogos de estilo cassino — especialmente as versões online”, apontam.

Segundo o relatório, no Canadá, os 20% mais ativos entre os apostadores representam 92% das apostas esportivas ou 90% da atividade de cassino online. Nos EUA, 5,7% das pessoas que apostam em bets e 4,9% dos jogadores em cassinos online representam 80% da receita nos dois ramos.

As pessoas desse “vital few”, em geral, são indivíduos socioeconomicamente desfavorecidos, com menos condições financeiras de suportar perdas, afirmam os cientistas.

“Governos que apoiam a expansão do jogo comercial raramente reconhecem as possíveis desigualdades regressivas na geração de receitas de jogo de azar e tendem a ignorar como o crescimento do jogo pode agravar a desigualdade social ao gerar lucros corporativos às custas dos indivíduos mais propensos a sofrer danos”, critica o relatório, em linha com outros pesquisadores que denunciam a irresponsabilidade das corporações.

O documento menciona ainda um “paradoxo dos danos do jogo de azar”, no qual grupos específicos, menos propensos a se envolver com apostas, são mais propensos a sofrer consequências adversas se o fizerem. “No Reino Unido, esse paradoxo potencial foi destacado para indivíduos em grupos etários jovens, incluindo indivíduos de 18 a 24 anos, indivíduos de grupos étnicos não brancos, incluindo migrantes, e indivíduos com saúde mental e bem-estar precários”, comentam.

Linha tênue

Os pesquisadores alertam que a distinção entre os videogames ou jogos online e os jogos de azar se tornou “nebulosa”. “Elementos de jogos de azar foram incorporados em jogos online, expondo ainda mais crianças e adolescentes a atividades de jogo ou similares a jogo.”

Eles apresentam dois exemplos. O primeiro são as loot boxes, comuns em jogos de celular, em que é possível usar dinheiro real ou “moedas” coletadas no universo do jogo em troca de uma caixa-surpresa com uma recompensa aleatória.

O outro recurso é o de “aposta em skins”, que envolve itens de personalização de uma personagem do jogo (skins). “Um estudo longitudinal de jovens adultos descobriu que a aposta em skins estava fortemente associada à continuidade no longo prazo de comportamentos problemáticos de jogo.”

Recomendações

O relatório é permeado de recomendações. Abaixo, estão as principais para países onde os jogos de azar estão sendo regulamentados:

  • As jurisdições que permitem o jogo de azar precisam de um órgão regulador bem financiado, independente e devidamente capacitado, focado na proteção da saúde pública e do bem-estar;
  • Proteção de crianças e adolescentes contra o jogo de azar;
  • Implementação de medidas eficazes de proteção ao consumidor, como sistemas universais de autoexclusão e registro de usuários;
  • Regulamentação de produtos de forma proporcional ao risco de danos, com base em suas características;
  • Adoção de medidas obrigatórias para limitar o consumo de jogos de azar, como limites de depósito e apostas aplicáveis e sistemas de pré-compromisso universais.

O relatório tem um foco global, mas as medidas também devem respeitar e considerar diferenças culturais e regionais.

“No Brasil, o avanço na proteção da saúde mental da população frente aos jogos de azar é bastante incipiente. Apesar de algumas autoridades políticas começarem a abordar o tema como um problema de saúde pública, na prática a responsabilização recai sobre o indivíduo”, avalia Freire.

Machado também considera que o Brasil está “atrasado” na discussão do jogo de azar enquanto problema de saúde pública. Para ele, o mais urgente é reunir uma comissão com representantes de várias esferas, incluindo especialistas em saúde, para avaliar e eleger medidas para lidar com o tema.

Embora o problema seja grave, ele aponta que a resolução é possível e lembra o sucesso do Brasil na redução do tabagismo. “É um exemplo muito claro do quanto políticas populacionais de saúde, de maneira macro, como essas que o relatório discute, foram bem-sucedidas, o quanto a gente conseguiu desidratar o acesso da população ao cigarro e diminuir o adoecimento.”

Os danos dos jogos de azar são mais substanciais e abrangentes do que se imaginava e configuram grave problema de saúde pública, de acordo com o relatório de uma comissão de especialistas reunidos pela revista científica The Lancet Public Health.

Os estudiosos avaliaram centenas de estudos e analisaram os resultados deles — o que é chamado de meta-análise, o padrão-ouro da evidência científica — para chegar a estimativas globais do impacto do jogo de azar na saúde pública.

Eles estimaram que aproximadamente 448,7 milhões de adultos em todo o mundo experimentam algum risco de jogo (any risk gambling, em inglês). Pessoas nessa categoria enfrentam pelo menos um sintoma comportamental ou consequência pessoal, social ou de saúde adversa do jogo de azar, sem necessariamente completar os requisitos diagnósticos para transtorno do jogo.

Desses, 80 milhões possuem transtorno do jogo, reconhecido em manuais de psiquiatria e descrito como um padrão de apostas repetidas e que continuam apesar de criar múltiplos problemas em várias áreas da vida.

Apesar de plataformas terem idade mínima, adolescentes integram o grupo de jogadores Foto: AA+W/Adobe Stock

De acordo com os pesquisadores, esses danos incluem problemas de saúde física e mental, ruptura de relacionamentos, aumento do risco de suicídio e violência doméstica — tanto de ser o agressor, quanto de ser a vítima —, aumento da criminalidade, perda de emprego e prejuízos financeiros. E eles não se restringem ao apostador em si. Pelo menos seis outras pessoas, em média, são negativamente afetadas por um indivíduo com transtorno do jogo.

Os pesquisadores destacam, porém, que essas estimativas são conservadoras, já que muitos países não têm sequer dados sobre o assunto — em especial os de baixa e média renda, que tendem a ser desproporcionalmente afetados por problemas como esse.

É por isso que o relatório pede aos governos, que cada vez mais têm legalizado os jogos de azar, que assumam o compromisso de financiar estudos e fornecer dados.

“Um sistema de monitoramento sofisticado teria métricas integradas de diversas fontes. Por exemplo, teríamos dados de sistemas de saúde sobre o número de pessoas que procuram apoio por danos relacionados ao jogo; dados rotineiros sobre o quanto o jogo está implicado em suicídios; dados do sistema de justiça sobre se o jogo é um fator entre aqueles envolvidos no sistema de justiça criminal”, fala Heather Wardle, professora da Universidade de Glasgow, na Escócia, e uma das autoras do relatório da Lancet, publicado na noite de quinta-feira, 24.

“Também seria necessário um mecanismo para acessar dados da indústria de forma independente, sem que ela tenha influência sobre quais pesquisas são realizadas”, diz Heather, em entrevista por e-mail ao Estadão.

Alerta para o mundo

“A necessidade de mais pesquisas pode ser explorada pela indústria para fins táticos, principalmente para atrasar a ação. Os atores da saúde pública precisam aprimorar seu próprio manual para combater essa tática”, alerta Antonio Carlos Cruz Freire, professor do departamento de Neurociências e Saúde Mental da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Freire lembra ainda dos princípios de precaução que devem reger a saúde pública: “Tomar medidas preventivas diante da incerteza; transferir o ônus da prova para os proponentes de uma atividade; explorar uma ampla gama de alternativas a ações possivelmente prejudiciais; e aumentar a participação pública na tomada de decisões”. Ele não participou do relatório.

Para o psiquiatra Rodrigo Machado, médico colaborador do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), o relatório é “um grande sinalizador de alerta” ao mostrar que os jogos de azar são um problema global e que a maneira como têm sido enfrentados é insuficiente.

Machado, que não esteve envolvido na produção do documento, defende que as políticas de prevenção têm de focar toda a população, não mais um grupo aparentemente nichado. “O que o relatório fala é que toda a população do globo está suscetível e vulnerável (a danos do jogo de azar).”

Nesse sentido, a introdução do conceito de any risk gambling passa uma mensagem importante: os danos não se restringem a pessoas com transtorno do jogo, e estão presentes ao longo de todo o espectro de consumo. Isso coloca em xeque as legislações pelo mundo, que, conforme mostrou o Estadão, têm um foco excessivamente individual, baseado na narrativa do “jogo responsável”.

Projetados para o risco

O relatório também aponta que olhar para estimativas populacionais do transtorno de jogo pode mascarar a real dimensão do problema. Os estudiosos propõem um olhar mais específico para os diferentes tipos de jogo de azar e como eles afetam seus consumidores. Por essa análise, 15,8% dos adultos e 26,4% dos adolescentes que estiveram envolvidos em atividades de cassino online, como o Jogo do Tigrinho, no ano passado experienciaram transtorno do jogo. Para as bets ou apostas esportivas, essas taxas são de 8,9% dos adultos e 16,3% dos adolescentes.

Em relação ao impacto, os pesquisadores alertam que a digitalização da indústria de apostas mudou o jogo — literal e metaforicamente — e agora as pessoas podem ter uma caça-níquel 24h por dia, sete dias por semana, no bolso. Os riscos disso ainda não são totalmente conhecidos, mas alguns já vieram à tona: “Os produtos de jogos de azar online são projetados para serem rápidos e intensivos, características associadas a um maior risco de danos aos consumidores”, diz o documento.

“Aproveitando as infraestruturas digitais online e os dados de vigilância, as empresas de jogos de azar agora possuem capacidades sem precedentes para direcionar consumidores, incluindo o uso de redes sociais e influenciadores para engajar indivíduos, além de dados de usuários online para personalizar o marketing, vender produtos cruzados e prolongar o engajamento dos usuários”, acrescenta.

Esse engajamento dialoga com o recrutamento excessivo do sistema de recompensa, outro fator preocupante das dependências comportamentais — os comportamentos geradores de prazer que podem adoecer o cérebro—, como as apostas online.

“As pessoas que têm compulsão alimentar não vão ter compulsão por brócolis, mas por carboidrato simples, como o açúcar, que traz muito mais ativação do sistema de recompensa cerebral. O mesmo se refere ao jogo de azar”, compara Machado.

“A gente pode ficar dependente da loteria tradicional? Até pode, mas sabemos que os comportamentos mais sedutores dentro do espectro dos jogos de azar são os que trazem uma frequência de apostas maior, ou seja, o espaçamento entre o ato de apostar e resultado final é encurtado, o que traz uma hiperestimulação do sistema de recompensa.”

Adolescentes e ‘um famoso jogador brasileiro’

Enquanto 46,2% dos adultos no mundo se envolveram em atividades de jogo no período de 12 meses, de acordo com o relatório, 17,9% dos adolescentes fizeram o mesmo, apesar de os produtos teoricamente serem restritos por idade. Isso equivaleria a aproximadamente 159,6 milhões de jovens jogando no último ano. Deles, 10,3% relataram ter jogado online e 9,1% relataram apostar em esportes.

Devido à escassez de estudos, os pesquisadores não apresentam estimativas globais para qualquer dano de jogo ou transtorno do jogo em adolescentes. “As taxas de jogo problemático ou transtorno do jogo variaram de 0,5% para meninas e 4,7% para meninos na Europa Ocidental, a 4,9% para meninas e 14,5% para meninos na América do Norte”, afirmam.

Para eles, a exposição às mensagens da indústria e à publicidade de produtos influencia a propensão dos jovens a jogar e normaliza o jogo dentro de seus grupos. “O efeito é especialmente forte entre os fãs de esportes”, escrevem.

46,2% dos adultos no mundo se envolveram em atividades de jogo em um período de 12 meses, segundo o relatório Foto: REDPIXEL/Adobe Stock

Além das parcerias com o setor esportivo, os cientistas apontam uma estratégia de patrocínio com influenciadores digitais, “particularmente visíveis para crianças e jovens”. “O marketing de influenciadores é particularmente prevalente na promoção de apostas esportivas, onde os limites entre conteúdo promocional e de entretenimento são frequentemente obscuros.”

Eles destacam a cultura do streaming em espaços como o Twitch, no qual jovens assistem a transmissões de influenciadores jogando, e citam um “famoso jogador de futebol brasileiro” que fazia lives de apostas, apesar de a plataforma ter dito não permitir esse tipo de atividade. Os jogos não são necessariamente de azar, dizem os cientistas, mas as distinções estão cada dia mais difíceis (leia mais abaixo).

Também em outras redes sociais, os jovens costumam interagir com as marcas e influenciadores ligados a elas. Um estudo no Reino Unido descobriu que 317 (28%) das 1.132 crianças com menos de 16 anos interagiram com a publicidade de jogos de e-sports no Twitter, por exemplo.

Minoria crucial

Outro destaque do relatório é o que os pesquisadores chamam de “vital few” (minoria crucial, numa tradução livre): o modelo de negócio da indústria do azar depende desproporcionalmente de uma pequena parcela de usuários que consome uma porção substancial dos produtos e gera a maior parte dos lucros.

“O chamado ‘excedente da dependência’ é particularmente evidente em relação aos produtos e formatos de jogo mais prejudiciais, incluindo, mas não se limitando a, máquinas de jogo eletrônicas e jogos de estilo cassino — especialmente as versões online”, apontam.

Segundo o relatório, no Canadá, os 20% mais ativos entre os apostadores representam 92% das apostas esportivas ou 90% da atividade de cassino online. Nos EUA, 5,7% das pessoas que apostam em bets e 4,9% dos jogadores em cassinos online representam 80% da receita nos dois ramos.

As pessoas desse “vital few”, em geral, são indivíduos socioeconomicamente desfavorecidos, com menos condições financeiras de suportar perdas, afirmam os cientistas.

“Governos que apoiam a expansão do jogo comercial raramente reconhecem as possíveis desigualdades regressivas na geração de receitas de jogo de azar e tendem a ignorar como o crescimento do jogo pode agravar a desigualdade social ao gerar lucros corporativos às custas dos indivíduos mais propensos a sofrer danos”, critica o relatório, em linha com outros pesquisadores que denunciam a irresponsabilidade das corporações.

O documento menciona ainda um “paradoxo dos danos do jogo de azar”, no qual grupos específicos, menos propensos a se envolver com apostas, são mais propensos a sofrer consequências adversas se o fizerem. “No Reino Unido, esse paradoxo potencial foi destacado para indivíduos em grupos etários jovens, incluindo indivíduos de 18 a 24 anos, indivíduos de grupos étnicos não brancos, incluindo migrantes, e indivíduos com saúde mental e bem-estar precários”, comentam.

Linha tênue

Os pesquisadores alertam que a distinção entre os videogames ou jogos online e os jogos de azar se tornou “nebulosa”. “Elementos de jogos de azar foram incorporados em jogos online, expondo ainda mais crianças e adolescentes a atividades de jogo ou similares a jogo.”

Eles apresentam dois exemplos. O primeiro são as loot boxes, comuns em jogos de celular, em que é possível usar dinheiro real ou “moedas” coletadas no universo do jogo em troca de uma caixa-surpresa com uma recompensa aleatória.

O outro recurso é o de “aposta em skins”, que envolve itens de personalização de uma personagem do jogo (skins). “Um estudo longitudinal de jovens adultos descobriu que a aposta em skins estava fortemente associada à continuidade no longo prazo de comportamentos problemáticos de jogo.”

Recomendações

O relatório é permeado de recomendações. Abaixo, estão as principais para países onde os jogos de azar estão sendo regulamentados:

  • As jurisdições que permitem o jogo de azar precisam de um órgão regulador bem financiado, independente e devidamente capacitado, focado na proteção da saúde pública e do bem-estar;
  • Proteção de crianças e adolescentes contra o jogo de azar;
  • Implementação de medidas eficazes de proteção ao consumidor, como sistemas universais de autoexclusão e registro de usuários;
  • Regulamentação de produtos de forma proporcional ao risco de danos, com base em suas características;
  • Adoção de medidas obrigatórias para limitar o consumo de jogos de azar, como limites de depósito e apostas aplicáveis e sistemas de pré-compromisso universais.

O relatório tem um foco global, mas as medidas também devem respeitar e considerar diferenças culturais e regionais.

“No Brasil, o avanço na proteção da saúde mental da população frente aos jogos de azar é bastante incipiente. Apesar de algumas autoridades políticas começarem a abordar o tema como um problema de saúde pública, na prática a responsabilização recai sobre o indivíduo”, avalia Freire.

Machado também considera que o Brasil está “atrasado” na discussão do jogo de azar enquanto problema de saúde pública. Para ele, o mais urgente é reunir uma comissão com representantes de várias esferas, incluindo especialistas em saúde, para avaliar e eleger medidas para lidar com o tema.

Embora o problema seja grave, ele aponta que a resolução é possível e lembra o sucesso do Brasil na redução do tabagismo. “É um exemplo muito claro do quanto políticas populacionais de saúde, de maneira macro, como essas que o relatório discute, foram bem-sucedidas, o quanto a gente conseguiu desidratar o acesso da população ao cigarro e diminuir o adoecimento.”

Os danos dos jogos de azar são mais substanciais e abrangentes do que se imaginava e configuram grave problema de saúde pública, de acordo com o relatório de uma comissão de especialistas reunidos pela revista científica The Lancet Public Health.

Os estudiosos avaliaram centenas de estudos e analisaram os resultados deles — o que é chamado de meta-análise, o padrão-ouro da evidência científica — para chegar a estimativas globais do impacto do jogo de azar na saúde pública.

Eles estimaram que aproximadamente 448,7 milhões de adultos em todo o mundo experimentam algum risco de jogo (any risk gambling, em inglês). Pessoas nessa categoria enfrentam pelo menos um sintoma comportamental ou consequência pessoal, social ou de saúde adversa do jogo de azar, sem necessariamente completar os requisitos diagnósticos para transtorno do jogo.

Desses, 80 milhões possuem transtorno do jogo, reconhecido em manuais de psiquiatria e descrito como um padrão de apostas repetidas e que continuam apesar de criar múltiplos problemas em várias áreas da vida.

Apesar de plataformas terem idade mínima, adolescentes integram o grupo de jogadores Foto: AA+W/Adobe Stock

De acordo com os pesquisadores, esses danos incluem problemas de saúde física e mental, ruptura de relacionamentos, aumento do risco de suicídio e violência doméstica — tanto de ser o agressor, quanto de ser a vítima —, aumento da criminalidade, perda de emprego e prejuízos financeiros. E eles não se restringem ao apostador em si. Pelo menos seis outras pessoas, em média, são negativamente afetadas por um indivíduo com transtorno do jogo.

Os pesquisadores destacam, porém, que essas estimativas são conservadoras, já que muitos países não têm sequer dados sobre o assunto — em especial os de baixa e média renda, que tendem a ser desproporcionalmente afetados por problemas como esse.

É por isso que o relatório pede aos governos, que cada vez mais têm legalizado os jogos de azar, que assumam o compromisso de financiar estudos e fornecer dados.

“Um sistema de monitoramento sofisticado teria métricas integradas de diversas fontes. Por exemplo, teríamos dados de sistemas de saúde sobre o número de pessoas que procuram apoio por danos relacionados ao jogo; dados rotineiros sobre o quanto o jogo está implicado em suicídios; dados do sistema de justiça sobre se o jogo é um fator entre aqueles envolvidos no sistema de justiça criminal”, fala Heather Wardle, professora da Universidade de Glasgow, na Escócia, e uma das autoras do relatório da Lancet, publicado na noite de quinta-feira, 24.

“Também seria necessário um mecanismo para acessar dados da indústria de forma independente, sem que ela tenha influência sobre quais pesquisas são realizadas”, diz Heather, em entrevista por e-mail ao Estadão.

Alerta para o mundo

“A necessidade de mais pesquisas pode ser explorada pela indústria para fins táticos, principalmente para atrasar a ação. Os atores da saúde pública precisam aprimorar seu próprio manual para combater essa tática”, alerta Antonio Carlos Cruz Freire, professor do departamento de Neurociências e Saúde Mental da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Freire lembra ainda dos princípios de precaução que devem reger a saúde pública: “Tomar medidas preventivas diante da incerteza; transferir o ônus da prova para os proponentes de uma atividade; explorar uma ampla gama de alternativas a ações possivelmente prejudiciais; e aumentar a participação pública na tomada de decisões”. Ele não participou do relatório.

Para o psiquiatra Rodrigo Machado, médico colaborador do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), o relatório é “um grande sinalizador de alerta” ao mostrar que os jogos de azar são um problema global e que a maneira como têm sido enfrentados é insuficiente.

Machado, que não esteve envolvido na produção do documento, defende que as políticas de prevenção têm de focar toda a população, não mais um grupo aparentemente nichado. “O que o relatório fala é que toda a população do globo está suscetível e vulnerável (a danos do jogo de azar).”

Nesse sentido, a introdução do conceito de any risk gambling passa uma mensagem importante: os danos não se restringem a pessoas com transtorno do jogo, e estão presentes ao longo de todo o espectro de consumo. Isso coloca em xeque as legislações pelo mundo, que, conforme mostrou o Estadão, têm um foco excessivamente individual, baseado na narrativa do “jogo responsável”.

Projetados para o risco

O relatório também aponta que olhar para estimativas populacionais do transtorno de jogo pode mascarar a real dimensão do problema. Os estudiosos propõem um olhar mais específico para os diferentes tipos de jogo de azar e como eles afetam seus consumidores. Por essa análise, 15,8% dos adultos e 26,4% dos adolescentes que estiveram envolvidos em atividades de cassino online, como o Jogo do Tigrinho, no ano passado experienciaram transtorno do jogo. Para as bets ou apostas esportivas, essas taxas são de 8,9% dos adultos e 16,3% dos adolescentes.

Em relação ao impacto, os pesquisadores alertam que a digitalização da indústria de apostas mudou o jogo — literal e metaforicamente — e agora as pessoas podem ter uma caça-níquel 24h por dia, sete dias por semana, no bolso. Os riscos disso ainda não são totalmente conhecidos, mas alguns já vieram à tona: “Os produtos de jogos de azar online são projetados para serem rápidos e intensivos, características associadas a um maior risco de danos aos consumidores”, diz o documento.

“Aproveitando as infraestruturas digitais online e os dados de vigilância, as empresas de jogos de azar agora possuem capacidades sem precedentes para direcionar consumidores, incluindo o uso de redes sociais e influenciadores para engajar indivíduos, além de dados de usuários online para personalizar o marketing, vender produtos cruzados e prolongar o engajamento dos usuários”, acrescenta.

Esse engajamento dialoga com o recrutamento excessivo do sistema de recompensa, outro fator preocupante das dependências comportamentais — os comportamentos geradores de prazer que podem adoecer o cérebro—, como as apostas online.

“As pessoas que têm compulsão alimentar não vão ter compulsão por brócolis, mas por carboidrato simples, como o açúcar, que traz muito mais ativação do sistema de recompensa cerebral. O mesmo se refere ao jogo de azar”, compara Machado.

“A gente pode ficar dependente da loteria tradicional? Até pode, mas sabemos que os comportamentos mais sedutores dentro do espectro dos jogos de azar são os que trazem uma frequência de apostas maior, ou seja, o espaçamento entre o ato de apostar e resultado final é encurtado, o que traz uma hiperestimulação do sistema de recompensa.”

Adolescentes e ‘um famoso jogador brasileiro’

Enquanto 46,2% dos adultos no mundo se envolveram em atividades de jogo no período de 12 meses, de acordo com o relatório, 17,9% dos adolescentes fizeram o mesmo, apesar de os produtos teoricamente serem restritos por idade. Isso equivaleria a aproximadamente 159,6 milhões de jovens jogando no último ano. Deles, 10,3% relataram ter jogado online e 9,1% relataram apostar em esportes.

Devido à escassez de estudos, os pesquisadores não apresentam estimativas globais para qualquer dano de jogo ou transtorno do jogo em adolescentes. “As taxas de jogo problemático ou transtorno do jogo variaram de 0,5% para meninas e 4,7% para meninos na Europa Ocidental, a 4,9% para meninas e 14,5% para meninos na América do Norte”, afirmam.

Para eles, a exposição às mensagens da indústria e à publicidade de produtos influencia a propensão dos jovens a jogar e normaliza o jogo dentro de seus grupos. “O efeito é especialmente forte entre os fãs de esportes”, escrevem.

46,2% dos adultos no mundo se envolveram em atividades de jogo em um período de 12 meses, segundo o relatório Foto: REDPIXEL/Adobe Stock

Além das parcerias com o setor esportivo, os cientistas apontam uma estratégia de patrocínio com influenciadores digitais, “particularmente visíveis para crianças e jovens”. “O marketing de influenciadores é particularmente prevalente na promoção de apostas esportivas, onde os limites entre conteúdo promocional e de entretenimento são frequentemente obscuros.”

Eles destacam a cultura do streaming em espaços como o Twitch, no qual jovens assistem a transmissões de influenciadores jogando, e citam um “famoso jogador de futebol brasileiro” que fazia lives de apostas, apesar de a plataforma ter dito não permitir esse tipo de atividade. Os jogos não são necessariamente de azar, dizem os cientistas, mas as distinções estão cada dia mais difíceis (leia mais abaixo).

Também em outras redes sociais, os jovens costumam interagir com as marcas e influenciadores ligados a elas. Um estudo no Reino Unido descobriu que 317 (28%) das 1.132 crianças com menos de 16 anos interagiram com a publicidade de jogos de e-sports no Twitter, por exemplo.

Minoria crucial

Outro destaque do relatório é o que os pesquisadores chamam de “vital few” (minoria crucial, numa tradução livre): o modelo de negócio da indústria do azar depende desproporcionalmente de uma pequena parcela de usuários que consome uma porção substancial dos produtos e gera a maior parte dos lucros.

“O chamado ‘excedente da dependência’ é particularmente evidente em relação aos produtos e formatos de jogo mais prejudiciais, incluindo, mas não se limitando a, máquinas de jogo eletrônicas e jogos de estilo cassino — especialmente as versões online”, apontam.

Segundo o relatório, no Canadá, os 20% mais ativos entre os apostadores representam 92% das apostas esportivas ou 90% da atividade de cassino online. Nos EUA, 5,7% das pessoas que apostam em bets e 4,9% dos jogadores em cassinos online representam 80% da receita nos dois ramos.

As pessoas desse “vital few”, em geral, são indivíduos socioeconomicamente desfavorecidos, com menos condições financeiras de suportar perdas, afirmam os cientistas.

“Governos que apoiam a expansão do jogo comercial raramente reconhecem as possíveis desigualdades regressivas na geração de receitas de jogo de azar e tendem a ignorar como o crescimento do jogo pode agravar a desigualdade social ao gerar lucros corporativos às custas dos indivíduos mais propensos a sofrer danos”, critica o relatório, em linha com outros pesquisadores que denunciam a irresponsabilidade das corporações.

O documento menciona ainda um “paradoxo dos danos do jogo de azar”, no qual grupos específicos, menos propensos a se envolver com apostas, são mais propensos a sofrer consequências adversas se o fizerem. “No Reino Unido, esse paradoxo potencial foi destacado para indivíduos em grupos etários jovens, incluindo indivíduos de 18 a 24 anos, indivíduos de grupos étnicos não brancos, incluindo migrantes, e indivíduos com saúde mental e bem-estar precários”, comentam.

Linha tênue

Os pesquisadores alertam que a distinção entre os videogames ou jogos online e os jogos de azar se tornou “nebulosa”. “Elementos de jogos de azar foram incorporados em jogos online, expondo ainda mais crianças e adolescentes a atividades de jogo ou similares a jogo.”

Eles apresentam dois exemplos. O primeiro são as loot boxes, comuns em jogos de celular, em que é possível usar dinheiro real ou “moedas” coletadas no universo do jogo em troca de uma caixa-surpresa com uma recompensa aleatória.

O outro recurso é o de “aposta em skins”, que envolve itens de personalização de uma personagem do jogo (skins). “Um estudo longitudinal de jovens adultos descobriu que a aposta em skins estava fortemente associada à continuidade no longo prazo de comportamentos problemáticos de jogo.”

Recomendações

O relatório é permeado de recomendações. Abaixo, estão as principais para países onde os jogos de azar estão sendo regulamentados:

  • As jurisdições que permitem o jogo de azar precisam de um órgão regulador bem financiado, independente e devidamente capacitado, focado na proteção da saúde pública e do bem-estar;
  • Proteção de crianças e adolescentes contra o jogo de azar;
  • Implementação de medidas eficazes de proteção ao consumidor, como sistemas universais de autoexclusão e registro de usuários;
  • Regulamentação de produtos de forma proporcional ao risco de danos, com base em suas características;
  • Adoção de medidas obrigatórias para limitar o consumo de jogos de azar, como limites de depósito e apostas aplicáveis e sistemas de pré-compromisso universais.

O relatório tem um foco global, mas as medidas também devem respeitar e considerar diferenças culturais e regionais.

“No Brasil, o avanço na proteção da saúde mental da população frente aos jogos de azar é bastante incipiente. Apesar de algumas autoridades políticas começarem a abordar o tema como um problema de saúde pública, na prática a responsabilização recai sobre o indivíduo”, avalia Freire.

Machado também considera que o Brasil está “atrasado” na discussão do jogo de azar enquanto problema de saúde pública. Para ele, o mais urgente é reunir uma comissão com representantes de várias esferas, incluindo especialistas em saúde, para avaliar e eleger medidas para lidar com o tema.

Embora o problema seja grave, ele aponta que a resolução é possível e lembra o sucesso do Brasil na redução do tabagismo. “É um exemplo muito claro do quanto políticas populacionais de saúde, de maneira macro, como essas que o relatório discute, foram bem-sucedidas, o quanto a gente conseguiu desidratar o acesso da população ao cigarro e diminuir o adoecimento.”

Os danos dos jogos de azar são mais substanciais e abrangentes do que se imaginava e configuram grave problema de saúde pública, de acordo com o relatório de uma comissão de especialistas reunidos pela revista científica The Lancet Public Health.

Os estudiosos avaliaram centenas de estudos e analisaram os resultados deles — o que é chamado de meta-análise, o padrão-ouro da evidência científica — para chegar a estimativas globais do impacto do jogo de azar na saúde pública.

Eles estimaram que aproximadamente 448,7 milhões de adultos em todo o mundo experimentam algum risco de jogo (any risk gambling, em inglês). Pessoas nessa categoria enfrentam pelo menos um sintoma comportamental ou consequência pessoal, social ou de saúde adversa do jogo de azar, sem necessariamente completar os requisitos diagnósticos para transtorno do jogo.

Desses, 80 milhões possuem transtorno do jogo, reconhecido em manuais de psiquiatria e descrito como um padrão de apostas repetidas e que continuam apesar de criar múltiplos problemas em várias áreas da vida.

Apesar de plataformas terem idade mínima, adolescentes integram o grupo de jogadores Foto: AA+W/Adobe Stock

De acordo com os pesquisadores, esses danos incluem problemas de saúde física e mental, ruptura de relacionamentos, aumento do risco de suicídio e violência doméstica — tanto de ser o agressor, quanto de ser a vítima —, aumento da criminalidade, perda de emprego e prejuízos financeiros. E eles não se restringem ao apostador em si. Pelo menos seis outras pessoas, em média, são negativamente afetadas por um indivíduo com transtorno do jogo.

Os pesquisadores destacam, porém, que essas estimativas são conservadoras, já que muitos países não têm sequer dados sobre o assunto — em especial os de baixa e média renda, que tendem a ser desproporcionalmente afetados por problemas como esse.

É por isso que o relatório pede aos governos, que cada vez mais têm legalizado os jogos de azar, que assumam o compromisso de financiar estudos e fornecer dados.

“Um sistema de monitoramento sofisticado teria métricas integradas de diversas fontes. Por exemplo, teríamos dados de sistemas de saúde sobre o número de pessoas que procuram apoio por danos relacionados ao jogo; dados rotineiros sobre o quanto o jogo está implicado em suicídios; dados do sistema de justiça sobre se o jogo é um fator entre aqueles envolvidos no sistema de justiça criminal”, fala Heather Wardle, professora da Universidade de Glasgow, na Escócia, e uma das autoras do relatório da Lancet, publicado na noite de quinta-feira, 24.

“Também seria necessário um mecanismo para acessar dados da indústria de forma independente, sem que ela tenha influência sobre quais pesquisas são realizadas”, diz Heather, em entrevista por e-mail ao Estadão.

Alerta para o mundo

“A necessidade de mais pesquisas pode ser explorada pela indústria para fins táticos, principalmente para atrasar a ação. Os atores da saúde pública precisam aprimorar seu próprio manual para combater essa tática”, alerta Antonio Carlos Cruz Freire, professor do departamento de Neurociências e Saúde Mental da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Freire lembra ainda dos princípios de precaução que devem reger a saúde pública: “Tomar medidas preventivas diante da incerteza; transferir o ônus da prova para os proponentes de uma atividade; explorar uma ampla gama de alternativas a ações possivelmente prejudiciais; e aumentar a participação pública na tomada de decisões”. Ele não participou do relatório.

Para o psiquiatra Rodrigo Machado, médico colaborador do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), o relatório é “um grande sinalizador de alerta” ao mostrar que os jogos de azar são um problema global e que a maneira como têm sido enfrentados é insuficiente.

Machado, que não esteve envolvido na produção do documento, defende que as políticas de prevenção têm de focar toda a população, não mais um grupo aparentemente nichado. “O que o relatório fala é que toda a população do globo está suscetível e vulnerável (a danos do jogo de azar).”

Nesse sentido, a introdução do conceito de any risk gambling passa uma mensagem importante: os danos não se restringem a pessoas com transtorno do jogo, e estão presentes ao longo de todo o espectro de consumo. Isso coloca em xeque as legislações pelo mundo, que, conforme mostrou o Estadão, têm um foco excessivamente individual, baseado na narrativa do “jogo responsável”.

Projetados para o risco

O relatório também aponta que olhar para estimativas populacionais do transtorno de jogo pode mascarar a real dimensão do problema. Os estudiosos propõem um olhar mais específico para os diferentes tipos de jogo de azar e como eles afetam seus consumidores. Por essa análise, 15,8% dos adultos e 26,4% dos adolescentes que estiveram envolvidos em atividades de cassino online, como o Jogo do Tigrinho, no ano passado experienciaram transtorno do jogo. Para as bets ou apostas esportivas, essas taxas são de 8,9% dos adultos e 16,3% dos adolescentes.

Em relação ao impacto, os pesquisadores alertam que a digitalização da indústria de apostas mudou o jogo — literal e metaforicamente — e agora as pessoas podem ter uma caça-níquel 24h por dia, sete dias por semana, no bolso. Os riscos disso ainda não são totalmente conhecidos, mas alguns já vieram à tona: “Os produtos de jogos de azar online são projetados para serem rápidos e intensivos, características associadas a um maior risco de danos aos consumidores”, diz o documento.

“Aproveitando as infraestruturas digitais online e os dados de vigilância, as empresas de jogos de azar agora possuem capacidades sem precedentes para direcionar consumidores, incluindo o uso de redes sociais e influenciadores para engajar indivíduos, além de dados de usuários online para personalizar o marketing, vender produtos cruzados e prolongar o engajamento dos usuários”, acrescenta.

Esse engajamento dialoga com o recrutamento excessivo do sistema de recompensa, outro fator preocupante das dependências comportamentais — os comportamentos geradores de prazer que podem adoecer o cérebro—, como as apostas online.

“As pessoas que têm compulsão alimentar não vão ter compulsão por brócolis, mas por carboidrato simples, como o açúcar, que traz muito mais ativação do sistema de recompensa cerebral. O mesmo se refere ao jogo de azar”, compara Machado.

“A gente pode ficar dependente da loteria tradicional? Até pode, mas sabemos que os comportamentos mais sedutores dentro do espectro dos jogos de azar são os que trazem uma frequência de apostas maior, ou seja, o espaçamento entre o ato de apostar e resultado final é encurtado, o que traz uma hiperestimulação do sistema de recompensa.”

Adolescentes e ‘um famoso jogador brasileiro’

Enquanto 46,2% dos adultos no mundo se envolveram em atividades de jogo no período de 12 meses, de acordo com o relatório, 17,9% dos adolescentes fizeram o mesmo, apesar de os produtos teoricamente serem restritos por idade. Isso equivaleria a aproximadamente 159,6 milhões de jovens jogando no último ano. Deles, 10,3% relataram ter jogado online e 9,1% relataram apostar em esportes.

Devido à escassez de estudos, os pesquisadores não apresentam estimativas globais para qualquer dano de jogo ou transtorno do jogo em adolescentes. “As taxas de jogo problemático ou transtorno do jogo variaram de 0,5% para meninas e 4,7% para meninos na Europa Ocidental, a 4,9% para meninas e 14,5% para meninos na América do Norte”, afirmam.

Para eles, a exposição às mensagens da indústria e à publicidade de produtos influencia a propensão dos jovens a jogar e normaliza o jogo dentro de seus grupos. “O efeito é especialmente forte entre os fãs de esportes”, escrevem.

46,2% dos adultos no mundo se envolveram em atividades de jogo em um período de 12 meses, segundo o relatório Foto: REDPIXEL/Adobe Stock

Além das parcerias com o setor esportivo, os cientistas apontam uma estratégia de patrocínio com influenciadores digitais, “particularmente visíveis para crianças e jovens”. “O marketing de influenciadores é particularmente prevalente na promoção de apostas esportivas, onde os limites entre conteúdo promocional e de entretenimento são frequentemente obscuros.”

Eles destacam a cultura do streaming em espaços como o Twitch, no qual jovens assistem a transmissões de influenciadores jogando, e citam um “famoso jogador de futebol brasileiro” que fazia lives de apostas, apesar de a plataforma ter dito não permitir esse tipo de atividade. Os jogos não são necessariamente de azar, dizem os cientistas, mas as distinções estão cada dia mais difíceis (leia mais abaixo).

Também em outras redes sociais, os jovens costumam interagir com as marcas e influenciadores ligados a elas. Um estudo no Reino Unido descobriu que 317 (28%) das 1.132 crianças com menos de 16 anos interagiram com a publicidade de jogos de e-sports no Twitter, por exemplo.

Minoria crucial

Outro destaque do relatório é o que os pesquisadores chamam de “vital few” (minoria crucial, numa tradução livre): o modelo de negócio da indústria do azar depende desproporcionalmente de uma pequena parcela de usuários que consome uma porção substancial dos produtos e gera a maior parte dos lucros.

“O chamado ‘excedente da dependência’ é particularmente evidente em relação aos produtos e formatos de jogo mais prejudiciais, incluindo, mas não se limitando a, máquinas de jogo eletrônicas e jogos de estilo cassino — especialmente as versões online”, apontam.

Segundo o relatório, no Canadá, os 20% mais ativos entre os apostadores representam 92% das apostas esportivas ou 90% da atividade de cassino online. Nos EUA, 5,7% das pessoas que apostam em bets e 4,9% dos jogadores em cassinos online representam 80% da receita nos dois ramos.

As pessoas desse “vital few”, em geral, são indivíduos socioeconomicamente desfavorecidos, com menos condições financeiras de suportar perdas, afirmam os cientistas.

“Governos que apoiam a expansão do jogo comercial raramente reconhecem as possíveis desigualdades regressivas na geração de receitas de jogo de azar e tendem a ignorar como o crescimento do jogo pode agravar a desigualdade social ao gerar lucros corporativos às custas dos indivíduos mais propensos a sofrer danos”, critica o relatório, em linha com outros pesquisadores que denunciam a irresponsabilidade das corporações.

O documento menciona ainda um “paradoxo dos danos do jogo de azar”, no qual grupos específicos, menos propensos a se envolver com apostas, são mais propensos a sofrer consequências adversas se o fizerem. “No Reino Unido, esse paradoxo potencial foi destacado para indivíduos em grupos etários jovens, incluindo indivíduos de 18 a 24 anos, indivíduos de grupos étnicos não brancos, incluindo migrantes, e indivíduos com saúde mental e bem-estar precários”, comentam.

Linha tênue

Os pesquisadores alertam que a distinção entre os videogames ou jogos online e os jogos de azar se tornou “nebulosa”. “Elementos de jogos de azar foram incorporados em jogos online, expondo ainda mais crianças e adolescentes a atividades de jogo ou similares a jogo.”

Eles apresentam dois exemplos. O primeiro são as loot boxes, comuns em jogos de celular, em que é possível usar dinheiro real ou “moedas” coletadas no universo do jogo em troca de uma caixa-surpresa com uma recompensa aleatória.

O outro recurso é o de “aposta em skins”, que envolve itens de personalização de uma personagem do jogo (skins). “Um estudo longitudinal de jovens adultos descobriu que a aposta em skins estava fortemente associada à continuidade no longo prazo de comportamentos problemáticos de jogo.”

Recomendações

O relatório é permeado de recomendações. Abaixo, estão as principais para países onde os jogos de azar estão sendo regulamentados:

  • As jurisdições que permitem o jogo de azar precisam de um órgão regulador bem financiado, independente e devidamente capacitado, focado na proteção da saúde pública e do bem-estar;
  • Proteção de crianças e adolescentes contra o jogo de azar;
  • Implementação de medidas eficazes de proteção ao consumidor, como sistemas universais de autoexclusão e registro de usuários;
  • Regulamentação de produtos de forma proporcional ao risco de danos, com base em suas características;
  • Adoção de medidas obrigatórias para limitar o consumo de jogos de azar, como limites de depósito e apostas aplicáveis e sistemas de pré-compromisso universais.

O relatório tem um foco global, mas as medidas também devem respeitar e considerar diferenças culturais e regionais.

“No Brasil, o avanço na proteção da saúde mental da população frente aos jogos de azar é bastante incipiente. Apesar de algumas autoridades políticas começarem a abordar o tema como um problema de saúde pública, na prática a responsabilização recai sobre o indivíduo”, avalia Freire.

Machado também considera que o Brasil está “atrasado” na discussão do jogo de azar enquanto problema de saúde pública. Para ele, o mais urgente é reunir uma comissão com representantes de várias esferas, incluindo especialistas em saúde, para avaliar e eleger medidas para lidar com o tema.

Embora o problema seja grave, ele aponta que a resolução é possível e lembra o sucesso do Brasil na redução do tabagismo. “É um exemplo muito claro do quanto políticas populacionais de saúde, de maneira macro, como essas que o relatório discute, foram bem-sucedidas, o quanto a gente conseguiu desidratar o acesso da população ao cigarro e diminuir o adoecimento.”

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