Antes do jantar de ano-novo, Gabriela Lotta, professora de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV), fez um exame RT-PCR — teste de covid-19 padrão ouro, de alta sensibilidade — com o filho. Como o resultado não saiu a tempo do encontro, que contaria com apenas outras duas pessoas, Gabriela usou os autotestes que trouxe do Reino Unido, onde passou uma temporada como professora visitante na Universidade de Oxford. Mesmo sem sintomas, o seu filho teve um resultado positivo. A reunião foi cancelada, barrando uma possível transmissão do vírus.
A professora conta que no Reino Unido a autotestagem já é um hábito. A população recebe dois kits por semana, que são distribuídos gratuitamente pelo correio, além dos testes que ficam disponíveis na porta de eventos e determinados estabelecimentos. Ao retornar ao Brasil, Gabriela trouxe alguns autotestes que sobraram com ela, a fim de proteger a si e a sua família “de forma barata e rápida”, explica a professora.
Além do Reino Unido, outros países da Europa, Ásia e América Latina também adotaram o autoteste como ferramenta no combate à pandemia, utilizado rotineiramente pela população. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não permite que o teste de antígeno, o mesmo do autoteste, seja realizado por pessoa leiga, sendo o manuseio liberado apenas para pessoas qualificadas na saúde. Em nota, a agência esclarece que a regulamentação dos produtos depende da vinculação a políticas públicas instituídas pelo Ministério da Saúde e acordadas com a Anvisa.
Na opinião de Gabriela, a lógica dos autotestes deveria estar conectada com uma política nacional de vigilância: “No Reino Unido, você realiza o teste, tira a foto do QR code e o resultado vai para o sistema de saúde. Deveria ser assim no Brasil, mas não temos uma política de enfrentamento à pandemia desde o começo. Adotamos a redução de danos e a sobrevivência pessoal”.
Porém, mesmo sem uma política pública eficaz, a professora acredita que a regulamentação do autoteste no País é importante porque facilita que os atores preocupados se testem de forma rápida, barata e efetiva. “Os municípios, por exemplo, poderiam adotar a medida em escolas e distribuir nas portas antes das aulas, podendo bloquear a entrada de pessoas contaminadas”, exemplifica.
A brasileira Mariana Koehler mora há 17 anos nos Estados Unidos e também fez questão de trazer autotestes de covid-19 na bagagem ao visitar a família no Brasil no final do ano. “Eu achei uma opção fácil para poder me encontrar com a minha família com segurança e proteger a minha irmã, que está grávida”, conta.
Outro motivo, aponta Mariana, foi a necessidade de apresentar um resultado negativo para a doença antes de retornar aos Estados Unidos. O seu filho, de 9 anos, realizou uma videoconferência seguindo instruções de como fazer o autoteste para apresentar o resultado, que pode ser verificado em até 15 minutos. Mariana explica que, depois das festas de fim de ano, não se encontrava mais os produtos nas farmácias do país, de tão populares que se tornaram.
Uma camada extra de proteção
Denise Garrett, médica epidemiologista e vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas, ressalta que a testagem é essencial no combate a covid-19 porque permite a tomada de decisões. “É o indicador mais apropriado para saber a situação da pandemia, diferente das taxas de ocupação de leitos, que são indicadores tardios. Precisamos de testagem para saber como podemos nos preparar e prevenir", explica.
Segundo a especialista, o Brasil sempre esteve entre os países que menos testa no mundo. Em um momento de incertezas com a variante Ômicron e com o apagão de dados epidemiológicos, o problema se acentua, diz a médica.
O autoteste deve ser entendido como complemento às diversas outras medidas de enfrentamento à pandemia, como o uso de máscaras, distanciamento social e vacinas. “O autoteste não substitui o PCR, mas é uma ótima estratégia para diagnosticar precocemente e interromper a cadeia de transmissão”, aponta Denise. O seu uso pode ser feito antes de reuniões de família ou de trabalho, aulas, visitas a pessoas vulneráveis, entre outras situações, cita a médica.
Denise também faz parte do grupo de brasileiros que trouxeram autotestes para o País. Como já sabia que a testagem não é tão acessível e prática quanto onde mora, nos Estados Unidos, a médica trouxe diversos autotestes para a sua viagem ao Brasil no final de 2021.
Segundo ela, foi uma ferramenta muito útil antes dos encontros, especialmente em relação à proteção de sua mãe, que é idosa. Denise também cedeu autotestes a amigos que suspeitavam ter sido infectados pelo vírus.
Para a médica, é necessária uma boa política de estado que apresente informações à população sobre como usar a ferramenta corretamente e as suas limitações. Um ponto importante a ser esclarecido é o de que um resultado negativo não descarta a possibilidade de se estar infectado pelo vírus, mas que um resultado falso positivo é mais difícil de acontecer.
No caso de teste negativo com sintomas, a recomendação é testar novamente em 24 horas. “Essa é a beleza desse teste. É barato, simples, posso testar todos os dias”, comenta a médica. O autoteste seria mais uma camada de proteção nesse momento, mas a testagem com o exame de PCR também deve ser ampliada no Brasil, defende Denise.
Regulamentação no Brasil
A médica alega que o País tem tudo o que precisa para implementar os autotestes de covid, com estrutura, capilaridade e programas de saúde da família. O que falta, porém, é primeiro a aprovação pela Anvisa.
“O papel da Anvisa seria avaliar a performance desses testes e aprovar aqueles que são bons. Se tem ou não uma política de Estado, não confere à Anvisa avaliar isso. É o mesmo do que aconteceu com a vacinação de crianças, que foi aprovada pela Anvisa independentemente se o Ministério da Saúde iria implementá-la ou não”, interpreta.
Para Gabriela e Denise, a aprovação do autoteste pela Anvisa poderia pressionar o Ministério da Saúde na implementação de uma política pública. Elas comentam que o processo seria ainda mais fácil do que a questão da vacina, uma vez que os riscos são menores que os benefícios, além de já existirem diversos exemplos internacionais de sucesso que podem inspirar políticas similares no Brasil.
O Ministério da Saúde concluiu nesta segunda-feira, 10, que o autoteste pode ser uma “importante ferramenta de apoio” na contenção do vírus e pedirá à Anvisa que avalie o tema. O secretário-executivo do Ministério da Saúde, Rodrigo Cruz, disse que a pasta enviará à agência uma nota técnica sobre o assunto solicitando a avaliação.
O secretário enfatiza que ter o autoteste em casa pode ajudar mais gente a testar, mas que ele não tem a mesma eficácia do diagnóstico feito por profissionais de saúde. “A mensagem é que o autoteste é uma ferramenta de apoio e não substitui o diagnóstico do profissional de saúde. A pessoa deve fazer o teste e, caso esteja com sintomas, deve ir ao posto de saúde ou hospital se certificar do diagnóstico”, afirmou Cruz.
Posso trazer autotestes do exterior para o Brasil?
Segundo a Receita Federal, os autotestes, por não serem liberados a usuários leigos pela Anvisa, não podem ser importados como bagagem. No caso de remessa internacional, por se tratar de um produto de saúde, o autoteste será selecionado para fiscalização da agência.
“Desta forma, não se vislumbra espaço para que um viajante traga tais produtos em sua bagagem, nem para que sejam recebidos via remessa internacional”, informa a Receita. Porém, as regras envolvidas nessa situação e as possíveis sanções para os viajantes que trouxerem autotestes do exterior não foram esclarecidas pelo órgão nem pela Anvisa.