'Brincando com vidas': o plano brasileiro de vacinação contra a covid-19 está mergulhado no caos


Entre brigas políticas, planejamento desordenado e um crescente movimento antivacinação, o Brasil dá exemplos de como não agir na era do coronavírus

Por Redação
Atualização:

Enquanto outros países apressaram os preparativos para inocular seus cidadãos contra o coronavírus, o Brasil, com seu programa de imunização renomado mundialmente e uma robusta capacidade de produção farmacêutica, deveria apresentar uma significativa vantagem.

Mas brigas políticas, planejamento desordenado e um incipiente movimento antivacinação deixaram o país, que registra o segundo maior número de mortes decorrentes de covid-19 no mundo, sem um programa claro de vacinação. Seus cidadãos atualmente não têm nenhuma noção de quando poderão estar protegidos do vírus que deixou de joelhos o sistema público de saúde e arrasou a economia do país.

Plano de vacinação brasileiro não fornece um cronograma detalhado Foto: Mount Sinai Health System/AFP
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“Estão brincando com vidas”, afirmou Denise Garrett, pesquisadora americana de origem brasileira do Instituto Sabin de Vacinas, que trabalha para ampliar o acesso a vacinas. “Isso é quase criminoso”.

Especialistas tinham esperança de que a excelência brasileira no campo da imunização poderia fazer com que o país lidasse melhor com o fim da pandemia do que no início.

Pouco após a covid-19 ser identificada pela primeira vez no país, em fevereiro, o Brasil se tornou um epicentro da crise global de saúde. O presidente Jair Bolsonaro refutou evidências científicas, chamou a doença de uma “gripezinha” que não justificaria o fechamento da maior economia da região e criticou duramente governadores que impuseram medidas de quarentena e fechamentos do comércio.

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Enquanto esforços para vacinação avançam no Reino Unido e nos Estados Unidos, dando às populações dos países uma chance para começar a imaginar a vida no pós-pandemia, essa nova etapa encontrou as autoridades brasileiras mais uma vez despreparadas e mergulhadas em barulhentas disputas envolvendo a política da vacina.

Na semana passada, o Ministério da Saúde apresentou um plano de vacinação, atendendo a uma ordem do Supremo Tribunal Federal. O plano estabelece a ordem na qual grupos vulneráveis deverão ser vacinados, mas não fornece um cronograma detalhado nem uma estimativa clara de quantas doses estarão disponíveis. Anteriormente, o ministério declarou que pretendia iniciar a campanha de vacinação em março.

Dias depois do anúncio, o Ministério da Saúde ainda se esforçava para fazer pedidos aos sobrecarregados fabricantes de vacinas. Os funcionários do ministério também eram questionados a respeito do motivo pelo qual o país não tem seringas e ampolas suficientes para atender à ambiciosa campanha de vacinação necessária para cobrir um país com 210 milhões de habitantes, no qual mais de 180 mil pessoas morreram vítimas do vírus.

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Além disso, a Anvisa, agência que regula a área da saúde no Brasil, ainda tem de aprovar qualquer vacina contra o coronavírus para uso geral.

"As pessoas vão começar a entrar em pânico se o Brasil ficar para trás nessa questão de ter um plano, uma estratégia clara e objetiva”, afirmou Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados, em 7 de dezembro, alertando que o Congresso tomaria frente do processo caso o Executivo continuasse atrapalhado.

A discussão entre acesso à vacina e sua segurança também entrou na disputa política. Bolsonaro difamou repetidamente a vacina CoronaVac, que está sendo desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac Biotech, e cancelou o plano do Ministério da Saúde de comprar 46 milhões de doses.

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Em vez disso, o governo resolveu apostar na vacina desenvolvida pela AstraZeneca e a Universidade de Oxford, que está atrás na corrida pela aprovação das autoridades sanitárias.

A cruzada do presidente contra a vacina chinesa criou uma oportunidade de ouro para um de seus maiores rivais políticos, João Doria, o governador do Estado de São Paulo. Doria negociou diretamente com os chineses as doses da vacina, que está sendo desenvolvida em parceria com o instituto de pesquisa Butantan, localizado em São Paulo.

Doria afirmou que as autoridades estaduais não poderiam esperar pelo governo federal, que está no terceiro ministro da saúde desde o início da pandemia, se organizar.

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“Não podemos esperar até março para começar a usar uma vacina que pode ser usada em janeiro”, afirmou ele em uma entrevista. "Há um consenso no estado de São Paulo e em outros estados de que esperar representa um grande risco à população, e isso afetaria as taxas de mortalidade e o sistema público de saúde.”

Doria prometeu aos seus eleitores na semana passada que São Paulo pretende começar a vacinar as pessoas no fim de janeiro — uma promessa que depende da aprovação da vacina pelas autoridades federais, que ainda não receberam os resultados finais dos estudos da eficácia e segurança da vacina.

O gabinete do presidente condenou o plano de Doria de começar a vacinar as pessoas em janeiro, qualificando-o como “populismo barato e irresponsável”.

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A cada vez mais amarga disputa entre Doria, cuja candidatura à presidência em 2022 é tida como certa, e o governo federal politizou perigosamente os planos de vacinação no Brasil.

Carla Domingues, uma pesquisadora do campo da saúde pública que comandou o programa de imunização do Brasil até o ano passado, lamentou que a vacina contra o coronavírus tenha se tornado uma questão política.

“Isso nunca tinha acontecido durante esforços de imunização”, afirmou ela. “Isso vai deixar as pessoas confusas. É surreal.”

Enquanto o número de casos explodiu outra vez este mês, deixando hospitais de várias cidades com leitos para atender pacientes graves em falta, autoridades regionais cada vez mais preocupadas aumentaram a pressão sobre o governo federal.

Vários governadores foram à Capital, Brasília, semana passada, para se encontrar com o ministro da saúde e exigir um plano nacional de imunização. Em nome das prefeituras, um grupo da Confederação Nacional dos Municípios também emitiu uma declaração pedindo ao governo federal que compre e distribua “todas as vacinas reconhecidamente efetivas e seguras contra a covid-19”.

Alguns governadores — entre eles, do Paraná, Estado do Sul do Brasil, e da Bahia, no Nordeste — começaram a tentar obter e, em última instância, passar a produzir doses da vacina Sputnik V, de fabricação russa.

Carlos Lula, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, afirmou que o intenso fluxo de diplomacia e negociações de acordos em relação a vacinas partindo de governos estaduais é algo surpreendente em um país que passou décadas construindo um dos mais respeitados programas de imunização do mundo em desenvolvimento.

“Isso é uma fonte de orgulho para o Brasil, porque se tornou modelo para outros países”, afirmou ele. “Mesmo assim, de repente não conseguimos dar conta nem do mínimo necessário.”

Especialistas na área da saúde afirmam que, mesmo quando os desafios de abastecimento e logística forem transpostos, o Brasil enfrentará um novo problema: um crescente movimento antivacinação que, segundo eles, foi alimentado com inverdades pelo presidente e seus aliados.

Roberto Jefferson, ex-deputado federal e efusivo apoiador do presidente, declarou este mês em uma mensagem no Twitter que “os globalistas preparam uma vacina para mudar nosso DNA”.

A mensagem, que foi retuitada mais de 3 mil vezes, alegava que Bill Gates, o bilionário e filantropo americano, está por trás de um esquema “genocida" para "matar milhões de pessoas e trocar o nosso DNA pela marca da Besta”, uma referência ao diabo.

O crescente movimento antivacinação tem levado alguns governadores, incluindo Doria, a defender que certas vacinações sejam obrigatórias.

Bia Kicis, deputada federal e uma das mais graduadas seguidoras de Bolsonaro, argumentou que a vacinação contra o coronavírus não deveria ser obrigatória porque as vacinas são “experimentais” e poderiam alterar o DNA das pessoas. Especialistas em vacinas qualificaram as declarações como infundadas.

Bolsonaro afirmou que a vacinação deve ser obrigatória apenas para cachorros. Apesar de as vacinas nunca terem sido obrigatórias para os adultos no Brasil, sua eficácia e segurança nunca foram questionadas de maneira significativa.

Uma pesquisa publicada no fim de semana pelo Datafolha, um respeitado instituto brasileiro de pesquisa de opinião pública, revelou que 22% dos entrevistados afirmaram não ter intenção de tomar a vacina contra o coronavírus — em agosto, eles eram 9%.

A questão está agora no Supremo Tribunal Federal, que está analisando este mês dois pedidos que podem tornar certas vacinas obrigatórias.

Garrett, do Instituto Sabin de Vacinas, estudou a expansão do movimento antivacinação nos Estados Unidos, onde trabalhou por duas décadas nos Centros para Controle e Prevenção de Doenças. Ela afirmou que temia há muito tempo que o movimento encontrasse uma base no Brasil, mas ficou impressionada pela velocidade e a intensidade de seu crescimento na era Bolsonaro.

“Isso (a ascensão de Bolsonaro) encorajou os brasileiros antivacinação a sair do armário mais cedo”, afirmou ela. “Sentem-se fortes e falam alto.” / Tradução de Augusto Calil

Enquanto outros países apressaram os preparativos para inocular seus cidadãos contra o coronavírus, o Brasil, com seu programa de imunização renomado mundialmente e uma robusta capacidade de produção farmacêutica, deveria apresentar uma significativa vantagem.

Mas brigas políticas, planejamento desordenado e um incipiente movimento antivacinação deixaram o país, que registra o segundo maior número de mortes decorrentes de covid-19 no mundo, sem um programa claro de vacinação. Seus cidadãos atualmente não têm nenhuma noção de quando poderão estar protegidos do vírus que deixou de joelhos o sistema público de saúde e arrasou a economia do país.

Plano de vacinação brasileiro não fornece um cronograma detalhado Foto: Mount Sinai Health System/AFP

“Estão brincando com vidas”, afirmou Denise Garrett, pesquisadora americana de origem brasileira do Instituto Sabin de Vacinas, que trabalha para ampliar o acesso a vacinas. “Isso é quase criminoso”.

Especialistas tinham esperança de que a excelência brasileira no campo da imunização poderia fazer com que o país lidasse melhor com o fim da pandemia do que no início.

Pouco após a covid-19 ser identificada pela primeira vez no país, em fevereiro, o Brasil se tornou um epicentro da crise global de saúde. O presidente Jair Bolsonaro refutou evidências científicas, chamou a doença de uma “gripezinha” que não justificaria o fechamento da maior economia da região e criticou duramente governadores que impuseram medidas de quarentena e fechamentos do comércio.

Enquanto esforços para vacinação avançam no Reino Unido e nos Estados Unidos, dando às populações dos países uma chance para começar a imaginar a vida no pós-pandemia, essa nova etapa encontrou as autoridades brasileiras mais uma vez despreparadas e mergulhadas em barulhentas disputas envolvendo a política da vacina.

Na semana passada, o Ministério da Saúde apresentou um plano de vacinação, atendendo a uma ordem do Supremo Tribunal Federal. O plano estabelece a ordem na qual grupos vulneráveis deverão ser vacinados, mas não fornece um cronograma detalhado nem uma estimativa clara de quantas doses estarão disponíveis. Anteriormente, o ministério declarou que pretendia iniciar a campanha de vacinação em março.

Dias depois do anúncio, o Ministério da Saúde ainda se esforçava para fazer pedidos aos sobrecarregados fabricantes de vacinas. Os funcionários do ministério também eram questionados a respeito do motivo pelo qual o país não tem seringas e ampolas suficientes para atender à ambiciosa campanha de vacinação necessária para cobrir um país com 210 milhões de habitantes, no qual mais de 180 mil pessoas morreram vítimas do vírus.

Além disso, a Anvisa, agência que regula a área da saúde no Brasil, ainda tem de aprovar qualquer vacina contra o coronavírus para uso geral.

"As pessoas vão começar a entrar em pânico se o Brasil ficar para trás nessa questão de ter um plano, uma estratégia clara e objetiva”, afirmou Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados, em 7 de dezembro, alertando que o Congresso tomaria frente do processo caso o Executivo continuasse atrapalhado.

A discussão entre acesso à vacina e sua segurança também entrou na disputa política. Bolsonaro difamou repetidamente a vacina CoronaVac, que está sendo desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac Biotech, e cancelou o plano do Ministério da Saúde de comprar 46 milhões de doses.

Em vez disso, o governo resolveu apostar na vacina desenvolvida pela AstraZeneca e a Universidade de Oxford, que está atrás na corrida pela aprovação das autoridades sanitárias.

A cruzada do presidente contra a vacina chinesa criou uma oportunidade de ouro para um de seus maiores rivais políticos, João Doria, o governador do Estado de São Paulo. Doria negociou diretamente com os chineses as doses da vacina, que está sendo desenvolvida em parceria com o instituto de pesquisa Butantan, localizado em São Paulo.

Doria afirmou que as autoridades estaduais não poderiam esperar pelo governo federal, que está no terceiro ministro da saúde desde o início da pandemia, se organizar.

“Não podemos esperar até março para começar a usar uma vacina que pode ser usada em janeiro”, afirmou ele em uma entrevista. "Há um consenso no estado de São Paulo e em outros estados de que esperar representa um grande risco à população, e isso afetaria as taxas de mortalidade e o sistema público de saúde.”

Doria prometeu aos seus eleitores na semana passada que São Paulo pretende começar a vacinar as pessoas no fim de janeiro — uma promessa que depende da aprovação da vacina pelas autoridades federais, que ainda não receberam os resultados finais dos estudos da eficácia e segurança da vacina.

O gabinete do presidente condenou o plano de Doria de começar a vacinar as pessoas em janeiro, qualificando-o como “populismo barato e irresponsável”.

A cada vez mais amarga disputa entre Doria, cuja candidatura à presidência em 2022 é tida como certa, e o governo federal politizou perigosamente os planos de vacinação no Brasil.

Carla Domingues, uma pesquisadora do campo da saúde pública que comandou o programa de imunização do Brasil até o ano passado, lamentou que a vacina contra o coronavírus tenha se tornado uma questão política.

“Isso nunca tinha acontecido durante esforços de imunização”, afirmou ela. “Isso vai deixar as pessoas confusas. É surreal.”

Enquanto o número de casos explodiu outra vez este mês, deixando hospitais de várias cidades com leitos para atender pacientes graves em falta, autoridades regionais cada vez mais preocupadas aumentaram a pressão sobre o governo federal.

Vários governadores foram à Capital, Brasília, semana passada, para se encontrar com o ministro da saúde e exigir um plano nacional de imunização. Em nome das prefeituras, um grupo da Confederação Nacional dos Municípios também emitiu uma declaração pedindo ao governo federal que compre e distribua “todas as vacinas reconhecidamente efetivas e seguras contra a covid-19”.

Alguns governadores — entre eles, do Paraná, Estado do Sul do Brasil, e da Bahia, no Nordeste — começaram a tentar obter e, em última instância, passar a produzir doses da vacina Sputnik V, de fabricação russa.

Carlos Lula, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, afirmou que o intenso fluxo de diplomacia e negociações de acordos em relação a vacinas partindo de governos estaduais é algo surpreendente em um país que passou décadas construindo um dos mais respeitados programas de imunização do mundo em desenvolvimento.

“Isso é uma fonte de orgulho para o Brasil, porque se tornou modelo para outros países”, afirmou ele. “Mesmo assim, de repente não conseguimos dar conta nem do mínimo necessário.”

Especialistas na área da saúde afirmam que, mesmo quando os desafios de abastecimento e logística forem transpostos, o Brasil enfrentará um novo problema: um crescente movimento antivacinação que, segundo eles, foi alimentado com inverdades pelo presidente e seus aliados.

Roberto Jefferson, ex-deputado federal e efusivo apoiador do presidente, declarou este mês em uma mensagem no Twitter que “os globalistas preparam uma vacina para mudar nosso DNA”.

A mensagem, que foi retuitada mais de 3 mil vezes, alegava que Bill Gates, o bilionário e filantropo americano, está por trás de um esquema “genocida" para "matar milhões de pessoas e trocar o nosso DNA pela marca da Besta”, uma referência ao diabo.

O crescente movimento antivacinação tem levado alguns governadores, incluindo Doria, a defender que certas vacinações sejam obrigatórias.

Bia Kicis, deputada federal e uma das mais graduadas seguidoras de Bolsonaro, argumentou que a vacinação contra o coronavírus não deveria ser obrigatória porque as vacinas são “experimentais” e poderiam alterar o DNA das pessoas. Especialistas em vacinas qualificaram as declarações como infundadas.

Bolsonaro afirmou que a vacinação deve ser obrigatória apenas para cachorros. Apesar de as vacinas nunca terem sido obrigatórias para os adultos no Brasil, sua eficácia e segurança nunca foram questionadas de maneira significativa.

Uma pesquisa publicada no fim de semana pelo Datafolha, um respeitado instituto brasileiro de pesquisa de opinião pública, revelou que 22% dos entrevistados afirmaram não ter intenção de tomar a vacina contra o coronavírus — em agosto, eles eram 9%.

A questão está agora no Supremo Tribunal Federal, que está analisando este mês dois pedidos que podem tornar certas vacinas obrigatórias.

Garrett, do Instituto Sabin de Vacinas, estudou a expansão do movimento antivacinação nos Estados Unidos, onde trabalhou por duas décadas nos Centros para Controle e Prevenção de Doenças. Ela afirmou que temia há muito tempo que o movimento encontrasse uma base no Brasil, mas ficou impressionada pela velocidade e a intensidade de seu crescimento na era Bolsonaro.

“Isso (a ascensão de Bolsonaro) encorajou os brasileiros antivacinação a sair do armário mais cedo”, afirmou ela. “Sentem-se fortes e falam alto.” / Tradução de Augusto Calil

Enquanto outros países apressaram os preparativos para inocular seus cidadãos contra o coronavírus, o Brasil, com seu programa de imunização renomado mundialmente e uma robusta capacidade de produção farmacêutica, deveria apresentar uma significativa vantagem.

Mas brigas políticas, planejamento desordenado e um incipiente movimento antivacinação deixaram o país, que registra o segundo maior número de mortes decorrentes de covid-19 no mundo, sem um programa claro de vacinação. Seus cidadãos atualmente não têm nenhuma noção de quando poderão estar protegidos do vírus que deixou de joelhos o sistema público de saúde e arrasou a economia do país.

Plano de vacinação brasileiro não fornece um cronograma detalhado Foto: Mount Sinai Health System/AFP

“Estão brincando com vidas”, afirmou Denise Garrett, pesquisadora americana de origem brasileira do Instituto Sabin de Vacinas, que trabalha para ampliar o acesso a vacinas. “Isso é quase criminoso”.

Especialistas tinham esperança de que a excelência brasileira no campo da imunização poderia fazer com que o país lidasse melhor com o fim da pandemia do que no início.

Pouco após a covid-19 ser identificada pela primeira vez no país, em fevereiro, o Brasil se tornou um epicentro da crise global de saúde. O presidente Jair Bolsonaro refutou evidências científicas, chamou a doença de uma “gripezinha” que não justificaria o fechamento da maior economia da região e criticou duramente governadores que impuseram medidas de quarentena e fechamentos do comércio.

Enquanto esforços para vacinação avançam no Reino Unido e nos Estados Unidos, dando às populações dos países uma chance para começar a imaginar a vida no pós-pandemia, essa nova etapa encontrou as autoridades brasileiras mais uma vez despreparadas e mergulhadas em barulhentas disputas envolvendo a política da vacina.

Na semana passada, o Ministério da Saúde apresentou um plano de vacinação, atendendo a uma ordem do Supremo Tribunal Federal. O plano estabelece a ordem na qual grupos vulneráveis deverão ser vacinados, mas não fornece um cronograma detalhado nem uma estimativa clara de quantas doses estarão disponíveis. Anteriormente, o ministério declarou que pretendia iniciar a campanha de vacinação em março.

Dias depois do anúncio, o Ministério da Saúde ainda se esforçava para fazer pedidos aos sobrecarregados fabricantes de vacinas. Os funcionários do ministério também eram questionados a respeito do motivo pelo qual o país não tem seringas e ampolas suficientes para atender à ambiciosa campanha de vacinação necessária para cobrir um país com 210 milhões de habitantes, no qual mais de 180 mil pessoas morreram vítimas do vírus.

Além disso, a Anvisa, agência que regula a área da saúde no Brasil, ainda tem de aprovar qualquer vacina contra o coronavírus para uso geral.

"As pessoas vão começar a entrar em pânico se o Brasil ficar para trás nessa questão de ter um plano, uma estratégia clara e objetiva”, afirmou Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados, em 7 de dezembro, alertando que o Congresso tomaria frente do processo caso o Executivo continuasse atrapalhado.

A discussão entre acesso à vacina e sua segurança também entrou na disputa política. Bolsonaro difamou repetidamente a vacina CoronaVac, que está sendo desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac Biotech, e cancelou o plano do Ministério da Saúde de comprar 46 milhões de doses.

Em vez disso, o governo resolveu apostar na vacina desenvolvida pela AstraZeneca e a Universidade de Oxford, que está atrás na corrida pela aprovação das autoridades sanitárias.

A cruzada do presidente contra a vacina chinesa criou uma oportunidade de ouro para um de seus maiores rivais políticos, João Doria, o governador do Estado de São Paulo. Doria negociou diretamente com os chineses as doses da vacina, que está sendo desenvolvida em parceria com o instituto de pesquisa Butantan, localizado em São Paulo.

Doria afirmou que as autoridades estaduais não poderiam esperar pelo governo federal, que está no terceiro ministro da saúde desde o início da pandemia, se organizar.

“Não podemos esperar até março para começar a usar uma vacina que pode ser usada em janeiro”, afirmou ele em uma entrevista. "Há um consenso no estado de São Paulo e em outros estados de que esperar representa um grande risco à população, e isso afetaria as taxas de mortalidade e o sistema público de saúde.”

Doria prometeu aos seus eleitores na semana passada que São Paulo pretende começar a vacinar as pessoas no fim de janeiro — uma promessa que depende da aprovação da vacina pelas autoridades federais, que ainda não receberam os resultados finais dos estudos da eficácia e segurança da vacina.

O gabinete do presidente condenou o plano de Doria de começar a vacinar as pessoas em janeiro, qualificando-o como “populismo barato e irresponsável”.

A cada vez mais amarga disputa entre Doria, cuja candidatura à presidência em 2022 é tida como certa, e o governo federal politizou perigosamente os planos de vacinação no Brasil.

Carla Domingues, uma pesquisadora do campo da saúde pública que comandou o programa de imunização do Brasil até o ano passado, lamentou que a vacina contra o coronavírus tenha se tornado uma questão política.

“Isso nunca tinha acontecido durante esforços de imunização”, afirmou ela. “Isso vai deixar as pessoas confusas. É surreal.”

Enquanto o número de casos explodiu outra vez este mês, deixando hospitais de várias cidades com leitos para atender pacientes graves em falta, autoridades regionais cada vez mais preocupadas aumentaram a pressão sobre o governo federal.

Vários governadores foram à Capital, Brasília, semana passada, para se encontrar com o ministro da saúde e exigir um plano nacional de imunização. Em nome das prefeituras, um grupo da Confederação Nacional dos Municípios também emitiu uma declaração pedindo ao governo federal que compre e distribua “todas as vacinas reconhecidamente efetivas e seguras contra a covid-19”.

Alguns governadores — entre eles, do Paraná, Estado do Sul do Brasil, e da Bahia, no Nordeste — começaram a tentar obter e, em última instância, passar a produzir doses da vacina Sputnik V, de fabricação russa.

Carlos Lula, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, afirmou que o intenso fluxo de diplomacia e negociações de acordos em relação a vacinas partindo de governos estaduais é algo surpreendente em um país que passou décadas construindo um dos mais respeitados programas de imunização do mundo em desenvolvimento.

“Isso é uma fonte de orgulho para o Brasil, porque se tornou modelo para outros países”, afirmou ele. “Mesmo assim, de repente não conseguimos dar conta nem do mínimo necessário.”

Especialistas na área da saúde afirmam que, mesmo quando os desafios de abastecimento e logística forem transpostos, o Brasil enfrentará um novo problema: um crescente movimento antivacinação que, segundo eles, foi alimentado com inverdades pelo presidente e seus aliados.

Roberto Jefferson, ex-deputado federal e efusivo apoiador do presidente, declarou este mês em uma mensagem no Twitter que “os globalistas preparam uma vacina para mudar nosso DNA”.

A mensagem, que foi retuitada mais de 3 mil vezes, alegava que Bill Gates, o bilionário e filantropo americano, está por trás de um esquema “genocida" para "matar milhões de pessoas e trocar o nosso DNA pela marca da Besta”, uma referência ao diabo.

O crescente movimento antivacinação tem levado alguns governadores, incluindo Doria, a defender que certas vacinações sejam obrigatórias.

Bia Kicis, deputada federal e uma das mais graduadas seguidoras de Bolsonaro, argumentou que a vacinação contra o coronavírus não deveria ser obrigatória porque as vacinas são “experimentais” e poderiam alterar o DNA das pessoas. Especialistas em vacinas qualificaram as declarações como infundadas.

Bolsonaro afirmou que a vacinação deve ser obrigatória apenas para cachorros. Apesar de as vacinas nunca terem sido obrigatórias para os adultos no Brasil, sua eficácia e segurança nunca foram questionadas de maneira significativa.

Uma pesquisa publicada no fim de semana pelo Datafolha, um respeitado instituto brasileiro de pesquisa de opinião pública, revelou que 22% dos entrevistados afirmaram não ter intenção de tomar a vacina contra o coronavírus — em agosto, eles eram 9%.

A questão está agora no Supremo Tribunal Federal, que está analisando este mês dois pedidos que podem tornar certas vacinas obrigatórias.

Garrett, do Instituto Sabin de Vacinas, estudou a expansão do movimento antivacinação nos Estados Unidos, onde trabalhou por duas décadas nos Centros para Controle e Prevenção de Doenças. Ela afirmou que temia há muito tempo que o movimento encontrasse uma base no Brasil, mas ficou impressionada pela velocidade e a intensidade de seu crescimento na era Bolsonaro.

“Isso (a ascensão de Bolsonaro) encorajou os brasileiros antivacinação a sair do armário mais cedo”, afirmou ela. “Sentem-se fortes e falam alto.” / Tradução de Augusto Calil

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